segunda-feira, 2 de abril de 2018

DÊEM-LHES AMOR!


Não vou dizer que o faço todos os dias ou que o faço quando me sinto mais abatido, mas tenho por hábito ler a Bíblia, costume que remonta à minha meninice e que mais se enraizou quando frequentei uma escola de exegetas. Nesta colectânea de livros, considerados sagrados para muitos, há alguns que parecem suscitar menor curiosidade, apesar da sua importância ser igual à dos outros. Nesse grupo incluo eu o Livro de Eclesiastes, que comecei a reler a partir de meados do mês passado. Hoje fiquei a meditar sobre o constante no seu Capítulo 4, versículos 9 a 10, onde se pode ler: “9 Melhor é serem dois do que um, porque têm melhor paga do seu trabalho. 10 Porque, se um cair, o outro levanta o seu companheiro; mas ai do que estiver só; pois, caindo, não haverá outro que o levante.
Não tenho por hábito misturar teologia com cinotecnia, apesar de serem duas áreas que me fascinam e encantam, porque não posso tomar o todo pela parte nem criar barreiras para quem precisa de auxílio. No entanto, posso afirmar por experiência própria, que o Livro que venero e o ofício a que me dedico não são inconciliáveis, porque entendo a Bíblia como um manual de amor e sei que sem ele é uma violência ensinar cães. Excepcionalmente, para que não restem dúvidas, irei servir-me do versículo que diz: “Porque, se um cair, o outro levanta o seu companheiro; mas ai do que estiver só; pois, caindo, não haverá outro que o levante”, para abordar a temática dos cães que acompanham os “sem-abrigo”.
São muitas as causas que levam gente como nós para “o olho da rua” e apenas uma leva estes desafortunados a procurar a companhia de um ou mais cães. Para melhor compreensão do problema importa estabelecer a diferença entre mendigos e sem-abrigo, apesar dos últimos serem invariavelmente as duas coisas. Um mendigo não é necessariamente um sem-abrigo, há-os até profissionais, porque normalmente tem um tecto para se abrigar, nem sempre um casebre e ainda tem o apoio de algum familiar. Na esmagadora maioria dos casos, o mendigo, quando se apresenta com um cão, serve-se do animal para exponenciar a miséria, como o faria se não tivesse uma perna ou se a tivesse totalmente ulcerada, o cão faz parte da sua personagem e do seu “uniforme de trabalho”, funcionando como um agente altamente persuasivo para a aquisição de esmolas. Crianças a pedir com cãezinhos ao lado são a melhor receita possível, que o digam os ciganos romenos!
Como o pedinte não se escusa a exigir do cão algum trabalho, vê-se obrigado a treiná-lo anteriormente, escolhendo para o efeito um cão miniatura (Pinscher, Chihuahua ou Yorkshire) que, ralo de pêlo e malvestido de carnes, treme desconjuntado ao vento com o pequeno cesto das esmolas pendurado na boca, geralmente de plástico e tirado a partir do corte de uma garrafa de água vazia e desprezada. Há mendigos que também se valem de cães e que não os têm treinados para coisa alguma, dando a impressão que os apanharam recentemente pelo desencanto visível nos animais, que amarrados a qualquer poste e inquietos, não se cansam de ladrar.
Ao invés, os cães dos sem-abrigo seguem os seus donos para todo o lado sem serem amarrados, permanecem ao seu lado soltos, quietos e silenciosos, carregando no olhar o mesmo desencanto visível nos seus companheiros de infortúnio, líderes que não largam por preço nenhum, ainda que possam desaparecer por breves momentos para se alimentar. O cão do sem-abrigo é a família que lhe resta e tudo quanto tem no mundo, um companheiro a quem primeiro saciará, mesmo que fique sem nada para comer. O apego ao animal é tão forte, que o sem-abrigo chega a desprezar o tecto de uma instituição para não se separar dele, porque não lhe permitem entrar nela com o cão.
Quem animará o sem-abrigo quando estiver prestes a desistir da vida? Quem lhe dará afecto quando estiver carenciado? Quem velará o seu sono e o avisará de algo anormal? Quem o acompanhará pelos caminhos da miséria sem queixume? Quem sempre o considerará e jamais o abandonará? O sem-abrigo que tem cão sabe que sem ele ainda ficaria pior, só e abandonado e que a solidão mata, entendendo perfeitamente a sentença “mas ai do que estiver só”, porque sente que a amizade e o amor não têm preço e que são o melhor que este mundo tem para dar.
Assim, ajudar a cuidar dos cães dos sem-abrigo, é evitar que sofram mais, suavizar a sua caminhada neste mundo frio e impessoal, é dizer que nos preocupamos com eles e que acreditamos na sua reintegração social, é dizer-lhes que não estão sós e reconhecer a importância dos seus cães para a sua felicidade! A este respeito vale a pena ler o constante em https://www.mirror.co.uk/news/real-life-stories/meet-woman-who-dedicated-life-12273102. Na Acendura Brava, desde o seu início até hoje, considerando a formação binomial, para além dos cães que nos são dados a observar, nunca nos desprendemos de quem os segura pela trela, porque viemos para servir e assim continuaremos até que nos seja possível.
Quando se deparar com um sem-abrigo, mesmo que não tenha nada para lhe dar, fale com ele e afague-lhe o cão, porque o animal merece e o homem agradece a distinção, já que todos aqui, sem excepção, somos peregrinos em terra estranha e só o Amor nos mantém para diante.

Sem comentários:

Enviar um comentário