Não vou dizer que o faço
todos os dias ou que o faço quando me sinto mais abatido, mas tenho por hábito
ler a Bíblia, costume que remonta à minha meninice e que mais se enraizou
quando frequentei uma escola de exegetas. Nesta colectânea de livros, considerados
sagrados para muitos, há alguns que parecem suscitar menor curiosidade, apesar
da sua importância ser igual à dos outros. Nesse grupo incluo eu o Livro de
Eclesiastes, que comecei a reler a partir de meados do mês passado. Hoje fiquei
a meditar sobre o constante no seu Capítulo 4, versículos 9 a 10, onde se pode
ler: “9 Melhor
é serem dois do que um, porque têm melhor paga do seu trabalho. 10 Porque,
se um cair, o outro levanta o seu companheiro; mas ai do que estiver só; pois,
caindo, não haverá outro que o levante”.
Não tenho por hábito
misturar teologia com cinotecnia, apesar de serem duas áreas que me fascinam e
encantam, porque não posso tomar o todo pela parte nem criar barreiras para
quem precisa de auxílio. No entanto, posso afirmar por experiência própria, que
o Livro que venero e o ofício a que me dedico não são inconciliáveis, porque
entendo a Bíblia como um manual de amor e sei que sem ele é uma violência
ensinar cães. Excepcionalmente, para que não restem dúvidas, irei servir-me do
versículo que diz: “Porque, se um cair, o outro
levanta o seu companheiro; mas ai do que estiver só; pois, caindo, não haverá
outro que o levante”, para abordar a temática dos cães que acompanham
os “sem-abrigo”.
São muitas as causas que
levam gente como nós para “o olho da rua” e apenas uma leva estes desafortunados
a procurar a companhia de um ou mais cães. Para melhor compreensão do problema
importa estabelecer a diferença entre mendigos e sem-abrigo, apesar dos últimos
serem invariavelmente as duas coisas. Um mendigo não é necessariamente um
sem-abrigo, há-os até profissionais, porque normalmente tem um tecto para se
abrigar, nem sempre um casebre e ainda tem o apoio de algum familiar. Na
esmagadora maioria dos casos, o mendigo, quando se apresenta com um cão,
serve-se do animal para exponenciar a miséria, como o faria se não tivesse uma
perna ou se a tivesse totalmente ulcerada, o cão faz parte da sua personagem e
do seu “uniforme de trabalho”, funcionando como um agente altamente persuasivo
para a aquisição de esmolas. Crianças a pedir com cãezinhos ao lado são a
melhor receita possível, que o digam os ciganos romenos!
Como o pedinte não se
escusa a exigir do cão algum trabalho, vê-se obrigado a treiná-lo
anteriormente, escolhendo para o efeito um cão miniatura (Pinscher, Chihuahua ou
Yorkshire) que, ralo de pêlo e malvestido de carnes, treme desconjuntado ao
vento com o pequeno cesto das esmolas pendurado na boca, geralmente de plástico
e tirado a partir do corte de uma garrafa de água vazia e desprezada. Há
mendigos que também se valem de cães e que não os têm treinados para coisa alguma,
dando a impressão que os apanharam recentemente pelo desencanto visível nos
animais, que amarrados a qualquer poste e inquietos, não se cansam de ladrar.
Ao invés, os cães dos
sem-abrigo seguem os seus donos para todo o lado sem serem amarrados,
permanecem ao seu lado soltos, quietos e silenciosos, carregando no olhar o
mesmo desencanto visível nos seus companheiros de infortúnio, líderes que não
largam por preço nenhum, ainda que possam desaparecer por breves momentos para
se alimentar. O cão do sem-abrigo é a família que lhe resta e tudo quanto tem
no mundo, um companheiro a quem primeiro saciará, mesmo que fique sem nada para
comer. O apego ao animal é tão forte, que o sem-abrigo chega a desprezar o
tecto de uma instituição para não se separar dele, porque não lhe permitem
entrar nela com o cão.
Quem animará o sem-abrigo
quando estiver prestes a desistir da vida? Quem lhe dará afecto quando estiver
carenciado? Quem velará o seu sono e o avisará de algo anormal? Quem o acompanhará
pelos caminhos da miséria sem queixume? Quem sempre o considerará e jamais o
abandonará? O sem-abrigo que tem cão sabe que sem ele ainda ficaria pior, só e
abandonado e que a solidão mata, entendendo perfeitamente a sentença “mas
ai do que estiver só”, porque sente que a amizade e o amor não têm
preço e que são o melhor que este mundo tem para dar.
Assim, ajudar a cuidar dos
cães dos sem-abrigo, é evitar que sofram mais, suavizar a sua caminhada neste
mundo frio e impessoal, é dizer que nos preocupamos com eles e que acreditamos
na sua reintegração social, é dizer-lhes que não estão sós e reconhecer a importância
dos seus cães para a sua felicidade! A este respeito vale a pena ler o
constante em https://www.mirror.co.uk/news/real-life-stories/meet-woman-who-dedicated-life-12273102.
Na Acendura Brava, desde o seu início até hoje, considerando a formação
binomial, para além dos cães que nos são dados a observar, nunca nos desprendemos
de quem os segura pela trela, porque viemos para servir e assim continuaremos
até que nos seja possível.
Quando se deparar com um
sem-abrigo, mesmo que não tenha nada para lhe dar, fale com ele e afague-lhe o
cão, porque o animal merece e o homem agradece a distinção, já que todos aqui,
sem excepção, somos peregrinos em terra estranha e só o Amor nos mantém para
diante.
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