segunda-feira, 22 de agosto de 2011

UM VÍDEO “ENCANTADOR” SOBRE A TERAPIA DO BARRIL




Tudo o que seja inovação em matéria de adestramento interessa-nos, desde que sejam salvaguardados tanto o bem-estar quanto o superior aproveitamento dos cães, porque sem o contributo da erudição o progresso nesta arte sairia seriamente comprometido, coisa que não desejamos face à necessidade de um melhor entendimento interespécies. Não temos como hábito comentar o trabalho de outros, ainda que ocasionalmente possamos questionar alguns métodos ou conteúdos de ensino. Ao invés, e várias vezes o fizemos, temos enaltecido o contributo de muitos para o nosso êxito educacional. Perante a insistência de alguns amigos e alunos, excepcionalmente, vamos aqui comentar o vídeo http://www.youtube.com/watch?hl=pt&v=zgjcIaVwYYs, relativo a um caso terapêutico do Sr. César Millan, tido como “encantador” de cães e hoje muito na berra, um mexicano bem sucedido em Terras do Tio Sam. Antes da análise propriamente dita e para facilitar a compreensão objectiva de todos, sintetizaremos a história e o caso do CPA Garrett, propriedade dos Sr.s Sheila Malavasi e Joel Cohen, um cão com o mau hábito de perseguir incessantemente a sua própria cauda. Segundo o que nos é feito saber no vídeo, tanto pela narração quanto pelas imagens, o citado cão foi adquirido para fazer companhia a uma CPA (Keela), na altura com seis meses de idade. Talvez o facto do vídeo se encontrar dobrado em português do Brasil possa conter algumas paráfrases ou inexactidões face à tradução operada do inglês para essa variante da língua portuguesa, solução que nos desagrada e à qual somos alheios, considerando o habitual rigor das nossas observações. Parece que o Garrett chegou ao novo lar já com o problema e que com o passar do tempo agravou-o, rodopiando ainda mais sobre a sua cauda e chegando inclusive a mordê-la. É curioso reparar que esse rodopiar acontecia maioritariamente no sentido dos ponteiros do relógio e não no sentido inverso, o que em si é revelador e indicia um grave estado de ansiedade, já que os cães normalmente, para se descontraírem e disso obterem benefício, descrevem círculos contrários ao movimento da terra para satisfazerem as suas necessidades fisiológicas. Perante o problema houve quem aconselhasse a amputação da cauda e um clínico inclinou-se para um problema na coluna. Como a dona do animal não o queria ver amputado (porque o considerava como um filho) e o tratamento sugerido não alcançou os resultados esperados, entra em cena o “encantador” que ao jeito de Xamã apresenta os seus bons ofícios (com um dos pés em cima do sofá).

Pela inquirição do “encantador” ficamos a saber que o Garrett foi objecto dum adestramento inconclusivo, de uma cirurgia ineficaz e sujeito ao Prozac, que ao momento apenas saía duas vezes por semana e que no passado chegou a sair todos os dias em excursões de 3 a 4 km, sem contudo ter alcançado o “junto” alguma vez. Com o tacto que a situação exigia e perante o desespero dos donos, cuja responsabilização em nada ajudaria, o terapeuta começa por enaltecer a excelência das qualidades laborais dos pastores alemães, da sua necessidade de trabalho, da importância da excursão diária e da necessidade que têm das rotinas, verdades que aceitamos e confessamos em género, grau e número. Quase como um mágico a tirar um coelho da cartola, o “encantador saca de uma mochila e coloca-a sobre o dorso do Garrett, dispondo-se depois a passeá-lo com esse apetrecho carregado de algumas garrafas de águas vazias em ambos os flancos. A saída para o exterior aconteceu à “arreata” (com os dois cães em paralelo e do mesmo lado), com a cadela entre o terapeuta e o Garrett, manobra que só por si impedia o cão de rodopiar, uma vez que a cadela se constituía em muro e o atraso do cão era veementemente solicitado, quer pela linguagem verbal quer pela indução da trela. A somar a isto importa reparar no tipo de estrangulador utilizado, acessório omisso de qualquer plano de pormenor, mas que contribuiu para o alcance quase instantâneo do “junto”, o que é caso para se dizer: “ novidades só no Continente!”

Liberto do peso da liderança e da coerção da trela, o cão volta a rodopiar quando em liberdade e dentro do quintal dos seus donos, como sempre fez e não evidenciando qualquer melhoria. Aí o terapeuta interrompe-lhe as acções chamando-o para si (“aqui”). Depois decide-se por aumentar o peso das garrafas e de estipular um horário diário para o uso da mochila, para que passe a rotina e contribua assim para a supressão do problema. Não sabemos se o Garrett chegou a ultrapassar a tara, porque só nos é adiantada a receita e em momento algum se vê a cura do paciente. Julgamos possível ter acontecido e já diremos porquê. O que não podemos deixar passar em branco é a interpretação dada à mímica das orelhas do cão, na terceira posição e entendida como de contentamento, porque ela desnuda idêntico estado de ansiedade e descontentamento, não o prazer do Garrett em se transformar em cão de tiro (aquando do transporte da mochila), mas sim uma manifestação inequívoca da sua submissão diante duma indução forçada (coerciva). Estamos em crer que tal interpretação não resultou da ignorância, mas da tentativa conseguida para sossegar os proprietários do animal, face à sua sensibilidade e ao desconforto do cão. Como diz o povo: “quem não sabe ser caixeiro, fecha a loja!”

Pela nossa observação e já nos passaram pelas mãos milhares de cães, o desvio de comportamento visível no Garrett, indubitavelmente associado à ansiedade, é mais comum entre os cães submissos, assenta sobre determinados indivíduos e pode ter uma origem genética, predisposição que poderá ser agravada pelo viver social dos indivíduos e pelo particular da sua instalação. Os cães à revelia confinados a exíguos espaços, normalmente acorrentados e sujeitos ao isolamento a maior parte dos seus dias, podem abraçar este desvio desde que biologicamente mais propensos ao stress. Quando a Sr.ª Sheila Malavasi fala do episódio em que o Garrett ao morder a cauda se feriu, o animal encontrava-se encerrado na garagem e é visível uma corrente no chão desse anexo, o que facilitou a transição da perseguição para a tentativa de amputação da cauda. Quando dois cães se encontram numa moradia e ambos tentam ladrar aos seus portões, com o decorrer do tempo, o mais valente irá inibir o outro e impedi-lo de fazer o mesmo, o que poderá induzir o segundo à aquisição dessa tara pela imposição. Dificilmente as razões ambientais despoletarão a tara se não houver uma predisposição genética que se aposse delas, a menos que a violência exercida seja de tal monta que arrebente qualquer valente.
E porque inúmeras vezes já resolvemos este problema sem recorrer à técnica do barril, porque é isso que a mochila está a reproduzir, impedindo o cão de se dobrar sobre si, uma solução engenhosa que espanta pela originalidade e não esconde a coerção, adiantamos que o adestramento convencional pode solucionar o problema pela constituição binomial, enquanto meio para estabelecer a liderança, alcançar a cumplicidade, equilibrar os cães e dotá-los da necessária uma autonomia condicionada, benefícios inatingíveis sem a disponibilidade física e anímica dos donos, que apostados no bem-estar dos seus animais tudo farão para que se sintam felizes, dando assim combate à ansiedade, ao stress e à inquietação presentes nos cães actuais, também eles vítimas dos desequilíbrios do nosso quotidiano individual e social. Por causa deste e de outros problemas de igual monta optámos pelo método da precocidade, tentando dessa forma equilibrar aqueles que outros desequilibraram, mercê de más selecções ou de comportamentos impróprios e indignos para os cães. Fazendo jus ao que atrás dissemos, continuamos a defender a boa instalação doméstica, a excursão diária e o adestramento de todos os cães, independentemente do seu grupo somático, carga instintiva, propensão laboral, raça, idade ou sexo.

De volta ao vídeo, pareceu-nos exagerado o tipo de estrangulador utilizado e a impropriedade da mochila colocada no Garrett, já que esses acessórios são por demais agressivos, sendo inclusive lesivos para cães deste tipo : submissos e de linha do dorso recta, a menos que se procure a cura por um trauma maior e se aposte no selamento como a melhor das terapias ortopédicas. Somos conhecedores da transferência física e anímica dos donos para os cães, reconhecemos a importância da liderança, estamos cientes dos benefícios da “condução à arreata”, sabemos da necessidade das rotinas no adestramento e reconhecemos qual o real valor da excursão diária para o equilíbrio e bem-estar dos cães. Se os donos do Garrett cumpriram com as disposições do “encantador”, tudo leva a crer que foram bem sucedidos. No entanto, a terapia indicada é radical e abusiva dos direitos do animal, já que é despropositada e recai sobre um indivíduo anteriormente desprezado, desleixado ou descuidado. Quem não cumpre a sua parte sempre espera milagres, algum tipo de encanto ou de encantador, um anjo que lhe bata à porta e lhe resolva todos os problemas. Que ninguém se deixe embarrilar: os cães nasceram para a actividade e só a cumplicidade poderá produzir alteração e trabalho objectivo, a satisfação e o equilíbrio entre cães e homens. Mais vale trabalhar com o seu cão do que esperar por um Xamã, porque o apelo às divindades tem o seu preço e não deverão ser os cães a pagar a pagá-lo!

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O DOM PARA ENSINAR CÃES

Desmond Morris, Granderath, Hagendorf, Jean-Henry Fabre, Konrad Lorenz e Trumler, por ordem alfabética e citando apenas alguns etólogos e entomologistas, muito contribuíram para a melhor compreensão dos cães e doutros animais, sendo percursores de uma nova ciência: a antrozoologia, vocacionada para o estudo das relações entre o homem e os restantes animais. Qualquer indivíduo mediano de inteligência e mal aviado de habilidades pode ensinar um ou mais cães desde que procure esse propósito, porque eles, ao fim e ao cabo como nós, entendem a linguagem da recompensa e do castigo, as manifestações de júbilo e desagrado e as emoções que as acompanham ou desnudam. A tarefa ser-lhe-á suavizada pelo uso da técnica advinda do condicionamento e pela extrema habituação presente no lobo doméstico, que tendo poucos instintos e sendo rico em “personalidade”, bem depressa se submeterá aos desejos de quem o sustenta e conduz. A grande revolução na etologia relativa aos cães, para além das suas duas maiores lições: que mais vale considerar o indivíduo do que o propósito da raça e que um cão pode ser ensinado em qualquer idade para qualquer fim, veio a acontecer pela questão: “O que fazer para que o meu cão me entenda?”. Esta dúvida teve o mérito de alterar e inovar os métodos de treino canino até então, realçando de imediato a responsabilidade humana no sucesso ou insucesso do adestramento, apesar de há muito se saber do domínio natural do inteligente sobre o irracional. Contudo, a pergunta pressupõe apenas a comunicação unilateral do homem para o cão, omitindo a comunicação possível do animal para o seu líder e protector, como se tal fosse irrelevante ou o especicismo fosse a melhor das políticas. A pergunta revolucionária e inovadora deveria ter sido complementada por uma outra: “ O que fazer para entender o meu cão?”, já que os cães têm diferentes vozes e expressões mímicas que evidenciam distintos estados de ânimo, hoje entendidos tardiamente como sentimentos.
Se ao adestramento for exigível um dom, ele resultará certamente da resposta às duas questões: da capacidade de compreender e se fazer compreender. Um nosso aluno de tempos idos, natural do lugar da Ordasqueira, Freguesia de Matacães e Concelho de Torres Vedras, homem simples e parco em palavras, quando questionado acerca da diferença gradativa dos mestres cinotécnicos perante a mesma técnica, costumava responder que ela resultava da “estaleca” individual, subentendo-se o termo por um conjunto de predicados únicos e apenas presentes nalguns indivíduos. Ao que parece, estamos na era dos “encantadores” tanto de cães como de cavalos, exaltando-se a saga de um humilde mexicano por terras gringas, um notabilíssimo adestrador que apresenta solução para tudo, inesperadamente e num ápice, e sobre o qual muito se tem escrito (ele mesmo virou escritor). Depois de lermos e relermos o que publicou, assim como os relatos dos seus êxitos, leituras que recomendamos para que se faça luz e se confirme a justeza da nossa opinião, chega-se à conclusão que nada trouxe de novo, que a chave do seu sucesso resultou do apego aos procedimentos correctos sobre a confusão operativa dos proprietários caninos norte-americanos, gordos em antropomorfismos e carenciados como sempre de um manual de instruções.
Os actuais métodos de treino canino não são os ideais, mas são até ao momento os que melhor servem o adestramento, face ao bem-estar dos cães e ao necessário aproveitamento dos seus impulsos herdados para o alcance das respostas artificiais procuradas no treino, o que não significa que os métodos menos recentes estivessem completamente errados e não possam pontualmente ser aplicados ainda hoje, atendendo às diferenças entre cães, ao seu particular instalador e à sua experiência directa, características advindas da sua selecção, perfil psicológico, lições de vida e viver social. O que o passado não dispensou, o presente reclama e o futuro aperfeiçoará é a autêntica comunicação interespécies, baseada no entendimento mútuo entre homens e cães que possibilita a aplicação dos estímulos certos para as acções requeridas, algo que ultrapassa os métodos, estabelece a diferença e que está para além da comum técnica, graças à intimidade presente em cada binómio por força da cumplicidade. E para que não restem dúvidas, importa fazer saber que a generalização de qualquer método acontece pela sua simplicidade, busca a mediania e granjeia por isso muitos adeptos.
A genialidade no adestramento, vulgarmente entendida como um dom nalguns indivíduos, resulta da fusão psicológica entre homens e cães que garante a sua unidade e acontece quando o cão certo vai parar às mãos do homem certo, uma responsabilidade tanto de criadores como de adestradores. A qualidade dum adestrador virá da capacidade de interpretar os diferentes cães e de encontrar para cada um deles os estímulos certos, as suas tendências e potencial individuais, suprimindo incapacidades e descobrindo mais-valias, mesmo que para isso se veja obrigado a alterar o comportamento de alguns condutores, também eles alunos e primeiros agentes de ensino, enquanto líderes, codificadores e emissores da mensagem. O dito dom para o adestramento vem do impulso ao conhecimento individual aqui transformado em vocação, da capacidade de interpretação e de se fazer compreender, de um novo relacionamento entre homens e cães.

A TENTATIVA DE SUICÍDIO DO TOT

Depois da morte do Carlos Veríssimo (e já lá vão quase três meses), o Tot acusou o desaparecimento do seu dono e líder, começando por partir alguns pertences do quintal e enveredando por uma série de disparates aparentemente injustificáveis. A letargia tomou o lugar da revolta e gradualmente desinteressou-se das iguarias do seu agrado, permanecendo prostrado e arredio, de olhar vago e desinteressado. A família preocupada com o sucedido contactou-nos, porque não lhe encontrava sinais exteriores de doença e não sabia o que fazer. A solução por nós encontrada foi a de o trazer para o treino e entregá-lo aos cuidados do Monitor Tiago Soares, que “substituindo” o líder desaparecido e valendo-se dos códigos, o convidou para um conjunto de tarefas do seu agrado. Com as calças demasiado apertadas no princípio, porque se tratava de um valente cão de guarda, o Tiago foi vencendo gradualmente os seus receios e o cão aceitou a sua liderança. Logo após o primeiro treino, o cão voltou à normalidade, retomou o apetite e recuperou a alegria. Doravante fará equipa com este monitor da escola até à constituição binomial, já que na família adoptiva ninguém apresenta essa disponibilidade. Graças ao uso dos códigos, o cão está de volta, voltou à matilha escolar, recuperou a sua utilidade e alcançou a excursão. Não lhe podemos trazer de volta o seu amado dono, mas tudo faremos para que se sinta bem entre nós, na escola donde veio e que muito bem conhece. Sê bem-vindo Tot, sempre teremos um lugar para ti nas nossas fileiras!

O ABU E OS 5 CÃES DE LONDRES: A NECESSIDADE DE REPÔR A ORDEM

Os recentes distúrbios em Londres fizeram-nos lembrar do Abu, um CPA amigo da dona que zela pela harmonia familiar, não hesitando em pôr na ordem o infante lá de casa, quando ele não cumpre com as suas obrigações ou desrespeita as regras instituídas, valendo-se para isso da persuasão necessária e inerente ao seu porte. Na capital inglesa vimos 5 cães com igual incumbência, perante uma turba de ladrões e saqueadores, meninos a pôr na ordem, extasiados pela destruição e tomados pela violência. Não é bonito usar cães contra cidadãos, mas talvez se justifique o seu uso como presença dissuasora e ostensiva, particularmente diante da barbárie que assume o fratricídio, que nada respeita e quer passar impune. A avaliar pelas imagens televisivas, parece que os bichos foram bem sucedidos e as investidas dos saqueadores travadas. Bem aventurados sejam os cães quando usados contra o abuso, quando zelam pela nossa protecção e não descansam para que tenhamos segurança.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

O CLAUSTRO PRÀS BESTAS E OS CÃES DA “LEVADA”

Pelo estado de conservação dos monumentos e do nosso património histórico parece que os portugueses são pouco cuidadosos na preservação da sua cultura, desprezando os tesouros da nossa identidade que nos foram legados pelas gerações passadas. Esta política do “deita a baixo” tem raízes milenares e sempre volta à tona nos momentos de alguma convulsão social, onde a ocasião faz o ladrão e o que é de todos passa para o quintal dalguns. Talvez isso se deva ao abismo entre a erudição e a ignorância, à procura de um lugar ao sol mais fácil e à ancestral inveja que teima em largar-nos. E como se tudo isso já não nos bastasse, o “pragmatismo” de alguns acaba por arruinar muito daquilo que é nosso. Na dita capital do gótico, em Santarém, está situado o Convento de S. Francisco, fundado em 1242 por D.Sancho II, a quando da chegada dos Franciscanos àquela cidade. Classificado como Monumento Nacional pelo IPPAR desde 1917, há mais ou menos noventa anos que se encontra em obras de restauro. A determinada altura aconteceu por ali algo de insólito e inesperado, um Sr. Comandante Militar mandou arrancar as lajes do solo de grande parte do claustro, e fê-lo porque quis lá colocar cavalos e o piso era por demais escorregadio para o efeito, profanando sepulturas e arrancando inscrições. Hoje já não existem ali cavalos, somente umas câmaras poeirentas e um amontoado de lajes à espera de serem recolocadas. Longe vão os tempos em que os cães eram de uma obediência inquestionável, tanto os civis como os militares, independentemente do serviço a que se destinavam e perante qualquer situação. A avaliar pelo comportamento dos cães actuais, parece que nada aproveitámos do passado e que esquecemos a mestria dos adestradores que nos antecederam, gente que se notabilizou pela excelência do seu conhecimento, arte, empenho e prestação. Por todo o lado se vêem cães pendurados pelo pescoço, apoiados nos jarretes e de patas dianteiras suspensas, lembrando a levada dos cavalos iniciada nos pilões, com os seus tratadores ou condutores debaixo de sério embaraço, tal qual dedo trémulo sobre o gatilho, denunciando o desequilíbrio entre a acção e o travamento, tanto pela força do estímulo como pela ausência de controlo. O caricato da situação, quando entendido pelo chauvinismo, parece uma reminiscência barroca e quando avaliado friamente, à luz da técnica e diante do desempenho necessário, prefigura-se um autêntico disparate. No nosso caderninho de dúvidas a apresentar ao Pai Celeste, na devida altura, queremos acrescentar mais duas: porque será que em Portugal actualização significa rompimento com o passado? Num País tão antigo como o nosso, porque é que tanta gente insiste em ser geração espontânea? Não são só os claustros que são cultura, o adestramento também o é, e ambos parecem condenados a igual amargura, os primeiros ao arrancar das suas lajes e o segundo à ignorância da sua mestria. O claustro para as bestas e os cães da levada são duas faces da mesma moeda, obra da mesma filosofia e fardo que tarda em largar-nos.

1, 2, 3, 4… CONTACTO, ESTICÃO, BRAÇO DOBRADO, BISCOITO NA MÃO

O velho e respeitável modelo alsaciano para treinar cães, responsável directo por umas quantas modalidades desportivas, ao contrário do que se julga e longe de ter sido abolido ou substituído, continua em uso no mundo do adestramento, ainda que pretensamente suavizado ou usado como medida de recurso. A progressão em linha recta com retorno, a condução de mão direita, a acção do joelho esquerdo do condutor e a coerção continuam a ser utilizados sem maior contestação, responsabilizando exclusivamente os cães pelo sucesso ou insucesso do processo pedagógico, prática que atenta contra o que Hagendorf e Granderath sugeriram: “ o que fazer para que o meu cão me entenda?”. No nosso entender de pouco préstimo, mas profundamente cativo ao melhor entendimento entre cães e homens, julgamos mais acertada a progressão circular, a condução de mão esquerda, a naturalidade de movimentos do binómio e a substituição da coerção pela advertência verbal, porque sabemos que o stress obsta ao melhor desempenho e entrega os animais aos seus instintos mais básicos, o que é deveras reprovável face ao desenvolvimento do seu impulso ao conhecimento. Com isto estamos a apelar para uma excelente instalação doméstica, para um quadro de crescimento funcional que antecede a escola propriamente dita, para a mais-valia técnica dos condutores e para a relação óptima entre tratamento e treino, maioritariamente responsável pelo estabelecimento dos vínculos afectivos inerentes ao sucesso educacional. Movidos pela curiosidade e assim como quem não quer a coisa, fomos espreitar uma escola canina, dita de reforço positivo e anti-stress. No adestramento, assim como noutras áreas do conhecimento humano, toda a reciclagem é bem-vinda e todos teremos sempre a algo a aprender. Debaixo desse interesse assistimos demoradamente a algumas lições, humildes e à torreira do sol, concentrados e ávidos de novidade. Os automatismos procurados (“junto” e tri-comando básico), a despeito da memória afectiva canina e sem prévio aquecimento dos animais, aconteciam pelo condicionamento mecânico numa toada de: contacto, esticão, braço dobrado e biscoito na mão. O contacto reportava-se à distribuição de biscoitos e o esticão à “correcção” das figuras, violência encoberta pela distribuição da paparoca. Do ponto de vista técnico não assistimos a qualquer novidade resultante da erudição e a haver reforço positivo, o que duvidamos seriamente, seria no “lavar de uma mão pela outra” na distribuição de guloseimas, na tentativa de suavizar a coerção ou de posteriormente a evitar. O método pareceu-nos altamente lesivo para os cães menos atléticos e mais frágeis do ponto de vista articular, fatal para os cardíacos e prós sujeitos a ataques de vária ordem. Os condutores ali não são considerados como alunos, somente como clientes, tornando-se mestres na arte de arrojar os cães e na prática dos subornar. O andamento preferencial não obriga à marcha canina e pode acontecer a passo, geralmente em pequenas distâncias e por breve espaço de tempo, o que não produz a desejável alteração atlética, atrasa a assimilação das respostas artificiais e reforça de sobremaneira a coerção. Como as aulas são individuais a sociabilização sai comprometida, a menos que a veemência dos esticões e a política de boca aberta produzam efeito, terapia já gasta e que de positiva pouco tem. Acabámos por redescobrir o velho método alsaciano, mais perto do seu homónimo na confeitaria e mais distante daquele que viabilizou o treino dos cães militares. O que vimos lembrou-nos a doma tradicional em uso nos pampas, um atabalhoamento técnico entre o pau e o pão.

COMPANHEIRO E ANJO DA GUARDA

Como é bom crescer com um companheiro que é ao mesmo tempo um anjo da guarda, um amigo sempre presente que vela os nossos sonhos. Nos momentos que se avizinham é bom não estar só, principalmente quando se é criança e o perigo tende a espreitar. A Maria pousa para o retrato e o Black inteira-se da sua segurança. A imagem dispensa as palavras, porque tanto é clara a alegria da criança como a preocupação do animal. Feliz é o infante que cresce com um cão ao lado.

CÃO DE GUARDA: FICÇÃO E REALIDADE

A venda de gato por lebre e a procura da pechincha, quando associadas à cegueira e às verdades subjectivas, levam inúmeras vezes à escolha errada de um cão para determinado fim. Os cães destinados à guarda não caiem das árvores como folhas no Outono, não são fáceis de encontrar e exigem uma liderança incontestável, porque resultam de uma apurada selecção genética e não dispensam o treino aturado. Diante destes factos importa considerar a opção pela mais-valia canina, porque ela não é a mais barata, exige trabalho, não dispensa o esforço e reclama rara disponibilidade.

A LIÇÃO DA PEQUENADA

No último Domingo constitui-se uma classe para a pequenada e os nossas infantes experimentaram o papel de líderes, coadjuvadas por duas jovens condutoras e sob o olhar atento do monitor Tiago Soares. Apesar da média das suas idades rondar os 7 anos, numa classe inteiramente feminina, nenhuma experimentou sérias dificuldades e todas se encantaram com o convite, demonstrando assim a sua atenção nas aulas e o seu gosto em aprender e participar. Os cães não lhes ofereceram resistência e entenderam que estavam ali para a sua protecção. O carinho das crianças fez-se sentir no final da sessão, emanando a ternura que os cães reclamam e tanto gostam. Porque elas mereceram e cumpriram acima das expectativas, iremos certamente repetir momentos iguais a este. Para além do gozo da pequenada e o do olhar embevecido dos seus pais, importa ensinar aos cães o respeito pelas crianças, meta que foi alcançada e que necessita constantemente de ser reavivada.