terça-feira, 18 de dezembro de 2012

A HISTÓRIA DO SARGENTO ROGER


Sempre nos perguntam qual o cão ou raça da nossa preferência, se houve algum cujas façanhas não esquecemos e que ainda guardamos com saudade no nosso coração. É natural que pensem, pelo tanto que queremos e admiramos a raça, que seja o Cão de Pastor Alemão o nosso eleito e nisso não se enganam. Contudo, em termos individuais, vem-nos à memória o cão mais extraordinário que alguma vez tivemos: o Roger, um Rottweiler mais tarde alcunhado por “Sargento”, que nos foi oferecido com 1 ano de idade. Por respeito ao seu canil de origem, por sinal bastante afamado, não iremos aqui mencionar o seu nome nem tão pouco o número de registo no LOP, porque não queremos deitar achas para a fogueira num País onde todos tropeçam uns nos outros, talvez por sermos poucos.
O Roger não era um Rottweiler de encher o olho, era até pequeno para a raça, mas o que lhe faltava de apresentação, sobrava-lhe em carácter, força e valentia. Ficámos com ele para evitar que fosse abatido, já que o seu dono, um brasileiro com uma pizzaria lá para os lados da IC19, havia colocado o destino do cão nesses termos, depois do Roger ter atacado o infante lá de casa. Quando o cão nos foi entregue, avisaram-nos que ele detestava duas coisas: tomar banho e que lhe fizessem festas na barriga. Desprezando tal aviso, no mesmo dia, porque a reeducação tardava, fui fazer-lhe festas onde detestava, acabando por levar 18 pontos na mão esquerda, episódio que não me deixou ressentido e me fez interessar mais ainda pelo cão. Pouco a pouco, em grande parte pela cumplicidade e pela comunhão de vida, o cão foi aceitando a nova liderança e começou a revelar-se um companheiro de valor inestimável.
Certo dia, ainda com poucos dias de casa, num passeio pelo pinhal, sem que ninguém lhe tenha dado ordem para isso, começou a abocanhar pinhas e a colocá-las num monte. A pessoa que me acompanhava admirou-se do facto e tirou uma das pinhas amontoadas, acção que desagradou ao cão, que de imediato a jogou ao chão, recuperando e transportando a pinha para onde a havia deixado. A extraordinária territorialidade que revelava, ao ser convenientemente aproveitada, depois da liderança ter sido aceite, possibilitou o uso do cão muito para além do esperado.
Tinha por hábito, já com o cão condicionado nisso, no intervalo das nossas caminhadas, ir comer uma sandwich ricamente aviada a uma tasca da zona. De propósito, efectuava o pagamento com uma nota para receber o troco em moedas. Se por acaso o dono da tasca não me desse o troco, e experimentámos isso algumas vezes, o cão saltava para cima do balcão, encostava-o à parede e não o largava até que me devolvesse o que era meu. Certa vez, por ocasião dumas festas populares num lugarejo, porque o cão já se encontrava sociabilizado e extremamente obediente, um conhecido meu, já com os copos, diz-me: “Oh pá! Leva daqui o babalú. Ainda se isso fosse um cão a sério! “. Associei-me à brincadeira e dei o comando de “retrassa” ao Roger, que ao agarrar e sacudir o banco corrido, pregou com seis convivas no chão, terminando assim, apressadamente, com a sua gula por sardinhas assadas
Troquei de instalações no alto do Verão, a temperatura rondava os 35º graus centígrados e eu andava a espetar paus de madeira tratada com 2.5m de altura e a esticar rede que ainda hoje perdura. O cão acusava o calor e deitava-se ao meu lado. Sozinho e sem qualquer tipo de ajuda dizia para mim mesmo: “como seria bom se alguém aparecesse para me ajudar”. E não é que apareceu! Vindo do nada, chega-me um rapazola dos seus dezoito anos, disposto a ajudar-me (hoje terá 35). Acertámos em dividir o trabalho e a ele só caberia o transporte dos paus arrumados por detrás do barracão. Assim que ele foi buscar o primeiro, e ainda vinha a meio caminho, o Roger correu para ele e atirou-o ao chão, abocanhou-lhe o pau e levou-o de volta, exactamente para o mesmo sítio onde antes se encontrava, apesar do peso e do mau jeito. É evidente que o meu pedido de desculpas não evitou a perca súbita do tão desejado ajudante.
Se o particular cognitivo do cão era razão de espanto, a sua capacidade atlética não lhe ficava atrás, pois passava os dias a nadar dentro da piscina destinada aos cães, saindo de marcha atrás para não escorregar e a acartar um maço de bater calçada, que exibia amiúde, confiante e alegre. Ganhou o nome de sargento à conta da frase de um aluno nosso: “O que escapa ao chefe, não se escapa ao sargento!”, porque quando algum cão se escapava ou abandonava qualquer figura de imobilização, dentro do círculo de instrução, o Roger ia buscá-lo e rebocava-o pela trela até à pessoa do instrutor.
Infelizmente durou pouco e teve uma morte estúpida, causando-nos um desgosto que ainda hoje perdura.

No final do Verão de 95, quando nos encontrávamos a delimitar a pista de Agility, estranhamente, o Roger desapareceu sem deixar rasto. Durante uma semana efectuamos buscas no intuito de o encontrar, infelizmente sem sucesso. Dez dias depois, um dos nossos vizinhos diz-nos: “Está ali um cão grande afogado no meu poço, calculo eu que deve ser vosso!”. Calculámos logo quem fosse e as nossas  suspeitas estavam certas, era o Roger que ali jazia, inchado e inerte, bem diferente do que fora e acabado para sempre. Morreu a 100 metros de nós, num poço que desconhecíamos, encoberto por silvas e sem muros, a nadar até à exaustão, aflito e incapaz de pedir socorro. Espero que haja um céu para os cães, e se houver, eu sei que à entrada dele, a receber os recém-chegados, estará lá o meu sargento a dar-lhes as boas vindas.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

SIM, EU ACREDITO NO CÃO MACACO!


Pour moi sont tous le même chien et les différences qui peuvent avoir sont dues à différentes sélections opérées dans differents lieux geographiques” – assim falou um canicultor gaulês, à mesa do café, acerca das origens do Cão de Serra de Aires, quando questionado sobre a possível contribuição para a formação da raça dos Cães de Água (portugueses e espanhóis), do Pastor dos Pirinéus e do Briard. Por cá ninguém tem certezas quanto à sua origem, considerando-a uma variante das acima citadas ou resultante do beneficiamento de algum delas, no século passado ou nos anteriores. É evidente que a raça já andava pelas serras do Alentejo muito antes do surgimento dos cães do Conde de Castro Guimarães (briards), muito embora não nos custe acreditar que a sua aparência tenha sido ligeiramente diferente da actual. É nossa convicção e fazendo jus ao que disse o Francês, que o Serra d’Aires, os Briard, o Cão de Gado dos Pirinéus e os Cães de Água, têm uma origem comum e que ela aponta para um cão originalmente destinado à pastorícia, designado por “Turco”, oriundo dos Balcãs e difundido no Mediterrâneo pelos comerciantes otomanos. Quanto a isto, e não sabemos porque ainda não foi feito, suspeitamos que por razões económicas, o levantamento do DNA resolverá todas as dúvidas, as relativas a este cão sem sub-pêlo e às raças suas congêneres.
 
Mas mais importante que a origem é o potencial do cão, a sua extraordinária capacidade de aprendizagem, rusticidade e resistência, factores que aliados à fidelidade incontestável ao dono, à rapidez funcional, rara atenção e forte sentimento territorial, o transformam num excelente cão de trabalho, apesar de pouco visto e muito menos utilizado. A somar a isto, e que é de suma importância, atendendo às variedades cromáticas admitidas no seu estalão, a raça está longe de vir a sofrer os problemas endogâmicos que hoje vitimam a maioria dos cães com pedigree. Esperamos que os seus criadores tenham aprendido com os erros doutros e não optem pela consanguinidade, destruindo desse modo o rico património genético que receberam.
 
Estamos em crer que a pouca proliferação urbana da raça se deve ao falso aviso de que não serve para viver em apartamentos e que necessita de grandes passeios diários. Por outro lado, muita gente tende a confundir rusticidade com falta de higiene, ausência de companheirismo e propensão silvestre, o que sendo mentira se afasta da realidade. Todos os cães necessitam e adoram longos passeios diários, a menos que a selecção humana os haja incapacitado para isso. Precisará um cão caçador de menos exercício diário que um Serra de Aires? E um whippet? O que tanto faz engordar os retrievers? Se nos humanos se aconselha uma caminhada diária de 3km para a conservação dos índices atléticos, os cães na sua generalidade irão precisar de 5, porque são excursionistas e nasceram para bater território. A ausência de uma verdadeira excursão diária é a primeira responsável pelos desacatos ou prejuízos domésticos levados a cabo pelos cães, que espelham dessa forma a sua revolta.
A rusticidade presente no Serra de Aires, por má compreensão dos seus proprietários, tem isentado a raça da cumplicidade necessária à constituição binomial e duma selecção mais consentânea com as disciplinas básicas do adestramento, porque o cão é remetido para a quinta, monte ou rebanho e cresce longe da coabitação necessitária para o desenvolvimento dos vínculos afectivos que denunciarão todo o seu potencial. Será que os cães não sobrevivem pela experiência directa? Assim sendo, o que norteará os beneficiamentos dentro da raça: somente a estética ou também a parceria que garante a utilidade? Uma coisa é certa: os Serra de Aires criados nos apartamentos nada ficam a dever, em termos de prestação laboral e resultados, aos cães mais afamados, rivalizando com eles nos lugares de topo. Apesar disso, porque a obediência dá trabalho e a rusticidade serve de desculpa, poucos são os Serra de Aires que alguma vez frequentaram uma escola canina, como se os cães não fizessem o que querem quando não lhes dizem o que fazer!
Também se diz por aí, à guisa de conselho, numa altura em que já ninguém acredita em papões, que não se devem deixar estes cães sozinhos com as crianças. Será que um cachorro criado ao lado de um bebé se transformará num lobo mau? Com mais facilidade vestiria essa pele quando criado ao lado das ovelhas, facto que nunca aconteceu. A rusticidade da raça é uma vantagem que aponta para a força, recuperação, resistência, qualidade de vida e longevidade, e que nunca deverá servir para o isolamento e ausência de cuidados, quer eles sejam pedagógicos, sociais ou outros. Há quem diga ainda que este cão, enquanto cão de guarda, por ser inteligente e teimoso, é difícil de treinar, o que nos parece absurdo diante daquilo que é e se espera de um verdadeiro guardião, já que essas duas qualidades são essenciais para a sua sobrevivência e serviço, porque doutra maneira não resistiria ao suborno e ao envenenamento, não surpreenderia os intrusos, não assimilaria novos conteúdos de ensino e bem depressa abandonaria as suas funções. Ao contrário de outros cães, devido à fácil sociabilização, o Cão da Serra de Aires, trabalha sem dificuldade com outros cães, o que é uma vantagem quando se procura uma matilha funcional, já que a maioria das heterogêneas tem-se revelado de pouco préstimo e de dúbio resultado.
O verdadeiro problema do Serra de Aires reside no facto de ser tão meigo quanto desconfiado, fenómeno agravado pela pouca resistência à dor e pelo medo ao castigo, isto se intentarmos fazer dele um bom guardião, pressupondo o contra-ataque e a repetição das acções, porque é mais defensivo que ofensivo pelos limites da sua morfologia, particularidade advinda da ligeira envergadura e fraca potência de mordedura, o que o impossibilita de enfrentar alvos substancialmente maiores e mais fortes quando em oposição. Mas é para isso que cá temos os molossos, os alanos e os lupinos. O Serra de Aires nasceu para o bardo, para reunir o rebanho ou para congregar a sua família adoptiva, agregado que avisará atempadamente diante de um perigo iminente ou circunstância estranha. Queira Deus que assim continue! O problema da desconfiança pode ser ultrapassado pela soma de duas estratégias: por uma coabitação mais próxima e incisiva (que permite um estudo mais aprofundado dos cães), e pela contribuição das distintas variedades cromáticas presentes na raça, já que os cães pretos são mais sociáveis e os lobeiros mais arrediços e independentes. Com 3/8 de preto-afogueado na construção a evidência do problema é praticamente nula. Também o Pastor Alemão teve na sua origem cães pastores de pêlo crespo ou de arame, provavelmente descendentes da mesma raiz, legado que os Pastores Belgas ainda conservam através do Laekenois.
No passado recente, por volta dos anos sessenta, época dourada dos marchantes e negociantes de gado, ambos praticamente extintos ou em vias de extinção pelo encerramento das feiras a “céu aberto”, o gado alentejano era encaminhado para os arrabaldes saloios por ser amplamente procurado. Com ele chegavam também os cães do sul, os resultantes do cruzamento entre o Serra de Aires e do Rafeiro Alentejano, molossos na verdadeira acepção da palavra, “finos como aguardente”, conforme se dizia na gíria em função da sua esperteza, bravura e versatilidade. Esses rafeiros foram alcunhados de “4 olhos” por serem pretos e terem por cima de cada olho uma leve pigmentação afogueada, lembrando os antigos Rottweilers. Eram simultaneamente pastores e guardas de camionetas e ainda hoje as suas façanhas são relembradas. Também era comum encontrá-los entre os ciganos, atrelados às carroças e amplamente musculados. Num ápice desapareceram, desaproveitados e sem deixar rasto. Hoje são poucos os cães de raça indefinida resultantes da hibridação com o Serra de Aires, sendo mais fácil encontrar neles alguma ascendência em Podengo, Husky, Pastor Alemão, Pitbull e nalgumas raças miniatura. Falámos deste assunto porque pela hibridação também se conhece uma raça, todo o seu potencial, origem, mutações e história. Mas voltemo-nos para o Serra de Aires, e agora para a sua análise técnico-funcional, tendo como parâmetros os demais cães nacionais e os estrangeiros mais vistos no adestramento, nas vertentes sensorial, psicológica, cognitiva, social, morfológica e atlética.
Do ponto de vista sensorial o olfacto rivaliza com a audição pelo sentido director, havendo cães que usam mais um dos sentidos em prejuízo do outro, constituindo dois grupos distintos, a quem não é a alheio o tipo de instalação doméstica. Por norma, os cães caseiros usam mais o ouvido e os de campo o nariz, muito embora a extraordinária audição da raça, ligada ao tipo de eixos craniofaciais superiores que apresenta, se encontre bem acima da presente no Cão de Água Português, o que garante ao Serra de Aires estar em constante alerta e atenção, condições essenciais para a prontidão de qualquer serviço (em igualdade de circunstâncias com o CPA). O seu campo visual e visão monocular são médios e a sua acuidade aumenta com a transição dos andamentos naturais. Cão de extraordinária sensibilidade, acusa o toque e evita o embate. È propensamente tímido e desconfiado, mais tímido que o Border Collie e mais desconfiado que o Cão de Água. Pode ser arredio e necessita de uma boa instalação doméstica, fixa pouco e prefere observar, evita ser surpreendido e aparece de surpresa. Reage aos estímulos e obriga ao reforço positivo na sua educação e aprimoramento. Quando acossado produz ataques defensivos, desvia-se das provocações e só passa à ofensiva na presença do dono ou dentro do seu reduto. Pode obrigar à exclusividade de tratamento e não vê com bons olhos a repartição do seu espaço e pertences. Tolera bem os fenómenos naturais e as alterações por eles produzidas, é de tendência noctívaga e adora deslocar-se em campo aberto. Assimila sem dificuldade as rotinas e trabalha essencialmente pela memória afectiva, obriga a alguma novidade no trabalho sistemático e tende à autonomia. Precisa de tempo para a sociabilização e tende a eleger o seu líder e o seu grupo.
 
Do ponto de vista cognitivo é um assombro, não tanto como o Poodle, mas anda lá perto. Associa sem dificuldade os objectos às acções, tende a compreender os donos pelas suas expressões mímicas, responde muito bem aos comandos sonoros, não necessita de muito treino para a assimilação dos comandos ou figuras, consegue absorver em média 32 comandos e dentro deles um sem número de variantes. É um transportador nato e um exímio pastor. Como cão territorial que é, a sua sociabilização deve ser levada a sério, porque se ela for por água abaixo o aproveitamento do cão é nulo ou quase nulo, porque a desconfiança que gera o stress irá impedir a concentração necessária ao seu desempenho e ofuscar as mais-valias do seu manancial genético. Mais desconfiado do que belicoso, ele é mais arisco com os cães do que com os humanos. Não apresenta grandes dificuldades de sociabilização com os restantes animais domésticos, isto se desde cedo se familiarizar com eles.
A morfologia do Cão de Serra de Aires propicia andamentos leves e de fácil transição, tendo ainda a particularidade de transitar directamente do passo para o galope. O cão é pouco rectangular, forte de espádua (com uma flexibilidade extraordinária) e a sua garupa é ligeiramente descaída. As angulações traseiras são de média angulação e as suas patas estão preparadas para os pisos mais duros, acidentados e irregulares, porque a sua constituição é forte e assenta em “pé de gato”, vantagens que lhe garantem também uma marcha suspensa, rasgada e quase inaudível, segundo as características lupino-molossóides que apresenta. Apesar de ser rápido, é na resistência que reside a sua maior virtude, não só contra as doenças, mas também nas grandes caminhadas onde a sua marcha dificilmente abranda, porque normalmente apresenta baixa frequência de batimentos cardíacos. Mais do que para o Agility, o Cão de Serra de Aires poderá alcançar destaque no canicross ou na endurance e constituir-se num excelente cão de detecção tanto em terra como no mar. No que à disciplina de guarda diz respeito, este cão pastor terá melhores desempenhos como cão de alarme e defesa pessoal. Sempre será melhor na obediência dinâmica do que na linear e mais depressa absorverá os automatismos direccionais do que os de imobilização. Para além de tudo isto, ainda consegue manter os índices laborais em amplitudes térmicas entre os - 6 e os 45º centígrados. A velocidade que também o caracteriza, é advinda do seu coeficiente de envergadura que oscila dos machos para as fêmeas de 2.7 para 3.3 (índice de massa corporal), o que o coloca em igualdade com os Pastores Belgas e abaixo do peso atlético da maioria das raças caninas de médio porte. E muito mais haveria para dizer!
Para os cidadãos que não dispensam a coabitação de cães dentro dos seus lares, o Serra de Aires apresenta duas vantagens pouco comuns na maioria das raças caninas, uma higiénica e outra económica que importa considerar. A higiénica pretende-se com o facto de não ter subpêlo, não estando assim sujeito aos períodos de muda e à desagradável queda de pêlo a que obriga. A económica reside no facto de desnecessitar de uma dieta muito rica e por isso mesmo mais dispendiosa, já que se satisfaz e responde plenamente com rações de índice calórico mais baixo, o que lhe permite suportar (por mais tempo) períodos de austeridade, o que nos tempos que correm é como ouro sobre azul. Para além de não atentar contra a saúde e de não castigar a carteira, este cão, por ser leve e de andamentos pouco denunciados, irá poupar-nos incómodos junto dos vizinhos, o que o torna mais do que recomendável nesta crise, pródiga em fazer tempestades dentro de copos de água e em confrontos “por dá cá aquela palha!”

Eu acredito no cão macaco, assim designado por expressões, atitudes e movimentos tipicamente simiescos, factores intimamente ligados ao formato da sua cabeça, distância interocular, jogo de mãos, disposição da espádua e elasticidade de movimentos, enquanto cão de companhia, desporto e utilidade. Também acredito nele porque ainda respira saúde e dificilmente virá a ser estragado ou adulterado pelas mutações que afectam grande número das actuais raças caninas. Sei que sobreviverá, por muitos e longos anos, graças à sua rusticidade, resistência e adaptabilidade, características extraordinárias que ligam a longevidade doutros tempos à actual persistência na novidade de desafios. Temos cão!

BIA, A SUPER AVÓZINHA


Recebemos da Sofia Leite o seguinte email: “Bia, a cadela imigrante!!! Olá espero que se encontrem todos bem, aqui está uma fotografia da Bia com 12 anos e meio de vida, se encontra em forma, sem problemas de saúde, e adora nadar no lago, aqui bem perto de casa. A todos um feliz Natal. Daqui endereçamos os mesmos votos à Sofia, actualmente a residir em Inglaterra, desejando ao mesmo tempo que a Bia a acompanhe com saúde por mais anos, já que a cadela não parece a idade que tem e comporta-se como uma super avózinha (a foto acima confirma o que dizemos). Parabéns Sofia, por detrás de um grande cão sempre está um excelente dono.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

É POSSÍVEL TRANSFORMAR UM LOBO NUM CORDEIRO OU O CONTRÁRIO?


A questão levantada remete-nos para a reeducação, área ou disciplina do adestramento que procura, consoante os casos, o controlo (refreamento), o aumento da autonomia individual canina e a alteração de códigos (descodificação e recodificação, muitas vezes mal interpretadas como desprogramação), para solucionar problemas relativos à sociabilização dos cães (natos ou inatos) e operar a sua recuperação. Na verdade é mais fácil transformar um leão num cordeiro do que o inverso, porque todos os animais têm um limite para a resistência e normalmente optam pela sobrevivência. A somar a isto, a domesticação operada há milhares de anos e a consequente selecção humana vêm em nosso auxílio, já que o independente lobo silvestre acabou transformado no dependente lobo familiar - em cão.
A descodificação de um cão muito agressivo obriga à descoberta das causas desse comportamento, se genéticas, ambientais ou resultantes da combinação entre ambas, assim como dos meios e graus usados para a sua potenciação e posterior aproveitamento. Dificilmente um cão excursionista (caçador) desenvolverá um comportamento assim, muito embora possa canalizar a sua agressividade para outros alvos com igual intensidade e dolo (para outros cães e para outros animais). Este comportamento, entendido agora como marginal, que nunca deixou de ser fratricida, é mais frequente e de piores repercussões nos cães territoriais, nomeadamente nos lupinos e molossos de médio e grande porte, puros ou híbridos.
A recuperação destes cães, que deverá acontecer longe da presença dos donos (para lhes enfraquecer a resistência e não lhes servir de pretexto para o ataque), não irá dispensar a troca de rotinas e de territórios, a alternância de horários laborais, da distribuição da comida e dos locais de pernoita ou descanso, estratégias que visam diminuir a sua autonomia e aumentar a sua dependência, condições que gradualmente contribuirão para aceitação e supremacia da liderança. Uma vez aceite a nova liderança, primeiro passo para a descodificação, é chegada a hora da recodificação, altura em que recriaremos os simulacros que despoletavam o comportamento a eliminar, dando-lhes outro final pelo concurso da inibição e da recompensa.
O sucesso na reeducação, para além doutros factores ou condições, sempre dependerá do perfil psicológico do reeducador, pessoa que não deverá temer a desgraça e que se escudará no apego aos procedimentos, evitando assim todos os atropelos e improvisos passíveis de causar desventuras, a si e aos outros. Cada reeducador terá o seu timing próprio e nisto não deverá ser forçado, porque a sua vulnerabilidade em nada ajudaria à recuperação dos cães ao seu encargo.
 
Ainda que isso não passe pela cabeça da maioria das pessoas, os cães medrosos também precisam de reeducação, de abandonar os temores com que nasceram e alcançar a autonomia condicionada que os tornará mais fortes, sociáveis e mais confiantes, mercê da filiação extraordinária que os liga à liderança e que se espraia pelos códigos que melhor garantem a comunicação interespécies. Jamais serão leões, mas deverão viver sem medo de encontrar um em cada esquina.  

DOG WALKING: YOU’LL NEVER WALK ALONE


Não vamos aqui evocar Richard Rodgers ou Oscar Hammerstein II, autores da canção ”You’ll never walk alone” apresentada no musical “Caroussel” em 1945. Também não queremos fazer coro com os supporters do Liverpool ou do Celtic de Glasgow, apesar de nos espantar a sua paixão clubista ou “clubite aguda”. Queremos apenas falar de mais uma opção tangente à cinotecnia nestes momentos de crise, opção já abraçada por alguns nos grandes centros populacionais, onde o dog walking é uma realidade e vem surgindo como alternativa ao desemprego dos mais jovens, que o fazem a tempo inteiro ou em part-time, lembrando os seus precursores nas grandes metrópoles do Tio Sam. Os preços praticados encontram-se relacionados com o número dos cães a passear (se forem mais, o preço por animal é mais barato e se forem menos, ele aumenta um pouco, mas nada fora do alcance do comum proprietário canino, que ainda tem emprego e recebe, neste crepúsculo de forçada austeridade). E como nestas coisas do infortúnio é bom não estar só, mais vale atravessar a presente crise acompanhado por uma matilha de cães.

A PARAQUEDISTA E A LOBEIRA


Certo dia, por acaso ao cair da noite, lá para as bandas do Ribatejo, em conversa com um reputado zootécnico e ex-responsável por uma coudelaria de renome entre nós, a propósito da transmissão genética e da importância dos padreadores, ouvi-lhe a seguinte exclamação: “Em termos de transmissão genética, mais do que nos cavalos, é nas éguas que assenta o sucesso duma coudelaria. E eu demorei alguns anos para perceber isso!” Também nós até então havíamos enveredado pelo mesmo rosário, numa época em que os computadores ainda não se encontravam acessíveis, registando à mão o produto de 25 machos e igual número de fêmeas, quando cruzados entre si, visando o melhor dos beneficiamentos, tendo como objectivo a excelência do cão de trabalho. Acabámos por descobrir a mesma verdade, graças ao empirismo e sujeitos ao dispêndio e à delonga que ele não dispensa.
Desse tempo lembramos a contribuição de duas cadelas, completamente díspares, de diferentes variedades cromáticas e de préstimo diverso: a paraquedista e a lobeira, ambas há muito arredadas do nosso pensamento, o que espelha a nossa ingratidão face ao muito que lhe devemos (nem sequer nos lembramos do seu nome se não consultarmos os registos). A lobeira era uma cadela pouco vistosa, extremamente interactiva e uma mãe zelosa. Gerava ninhadas numerosas e normalmente servia de ama de leite para outros cachorros, chegando a amamentar 15 em diversas ocasiões. Os seus filhos eram por norma fáceis de ensinar, grandes atletas e de bom trato, com um alto coeficiente de aprendizagem e de uma disponibilidade extraordinária. Lembramos aqui o Jazz Die Morgenglantz, seu neto e herói de uma série policial televisiva, que era filho da Nail d’Acendura Brava e do Lobo. Ela foi a nossa “carregadora de piano” e muitos dos nossos garbosos cachorros foram salvos por ela.
A paraquedista, como o próprio nome sugere, era uma cadela oriunda das antigas linhas dos paraquedistas (do final da década de 50), preta-afogueada, de grande porte, extremamente activa e belicosa, que tinha como particularidade a selecção dos seus filhotes, desprezando e comendo aqueles que não lhe agradavam (entre o 4º e 5º dia). Normalmente seleccionava 4 cachorros no máximo e desses cuidava e protegia como poucas mães o fariam. Mas se do ponto de vista económico era uma lástima, em termos de transmissão genética era excelente, porque gerava cães poderosos e valentes, daqueles que enchiam, enchem e continuarão a encher o olho de quem procura guardiões sérios e decididos. Como o número de valentes que gerou não se esgota facilmente, não os enumeraremos aqui, pois não queremos que ninguém se sinta menosprezado pelo esquecimento do seu cão. Fartos do canibalismo ou do excesso de zelo da cadela, e já conhecedores dos seus hábitos, por várias vezes, resgatámos cachorros seus e entregamo-los à lobeira para os acabar de criar. E não é que a paraquedista tinha razão?! Os filhotes resgatados vieram a revelar-se de fraco préstimo e distantes da qualidade dos eleitos pela matriarca. Depois das tentativas frustradas, aceitámos a nossa sorte e confiámos na cadela. Às costas da lobeira e da paraquedista erigimos um canil e prestamos-lhes aqui a nossa homenagem, ainda que tardia por ser a título póstumo. Mas elas continuam por aí, talvez num cachorro Pastor Alemão a passear no jardim perto da nossa casa.  

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

ONDE ESTIVEREM OS OLHOS, AÍ ESTARÁ TAMBÉM A SUA ATENÇÃO

Foi a ineficácia da coerção e da persuasão que transportou a cinotecnia para a adopção do reforço positivo como prática corrente e sustentáculo dos actuais métodos de treino, tornando-os assim mais próximos das respostas naturais caninas e ao alcance de todo e qualquer binómio apostado no sucesso. É a operação da fixação exclusiva na pessoa do dono ou condutor que melhor garante o aproveitamento no adestramento, já que doutro modo teríamos os donos a “falar para o boneco” e os cães despertos noutros interesses. A prática da recompensa e o convite para a brincadeira, estratégias que melhor servem o aproveitamento e desenvolvimento dos impulsos herdados, ao contrário do que até então se julgava, têm encurtado de sobremaneira a permanência escolar, aumentado a longevidade dos comandos e melhor contribuído para a indispensável cumplicidade entre homens e cães. Infelizmente alguns animais não irão dispensar o concurso tanto da coerção quanto da persuasão, em particular entre os adultos condenados ao isolamento, vítimas de uma má experiência directa ou traídos por uma deficitária selecção genética, responsabilidades que lhes são alheias e que não os isentarão de algum transtorno ou incómodo. Como a fixação antecede a fuga e o ataque, cão que não se fixa no dono, está condenado ao disparate, porque aguarda ocasião para o desmando. O cão com os olhos postos no dono aguarda ordens e aquele que nem olha para ele, anda deserto de o ver pelas costas! Para melhor salvaguardar o nosso fiel amigo, é melhor ir ao encontro das suas necessidades do que enveredar pelo artificialismo, já que vã é a disciplina diante da afectividade.

QUANDO O ANÃO SE AGIGANTA, ENCOLHE-SE O GIGANTE

Por norma, o amatilhamento de cães obsta ao seu desempenho como guardiões, uma vez que o viver social canino tende a estabelecer a hierarquia que leva os indivíduos à submissão, o que de imediato é um atentado à autonomia individual e ao desempenho esperado de cada animal. Para melhor compreensão do que acabámos de dizer, lembramos aqui o ocorrido com os cães de um amigo nosso, que faltando-lhe espaço, optou por juntar dois cães no mesmo canil: um Setter Inglês já maduro sexualmente e um cachorro Pastor Alemão substancialmente mais novo. Pouco a pouco, como seria de esperar, o Setter começou a capitanear as acções e a submeter o Pastor Alemão, obrigando-o à submissão pelo recurso à violência. Como resultado disso, o Pastor deixou de ladrar, escondia-se no fundo do canil quando alguém se aproximava, deitava-se de barriga para cima quando o Setter o fixava e dava-lhe a primazia na hora das refeições, apesar de pesar o dobro do seu antagonista. Finalmente (dois meses depois), o novo canil ficou pronto e o Pastor Alemão foi lá colocado. No espaço de uma semana transformou-se totalmente, “passou do dia para a noite” e o seu ladrar já se ouve pelos quatro cantos da quinta. Está sempre atento e reage à aproximação de estranhos, está mais forte e apresenta-se desafiante dentro do seu canil, onde se sente rei e senhor. Quando ambos são soltos já não teme o Setter e intenta dominar sobre ele, ainda que receoso e de modo subtil. Caso continuasse alojado com o cão inglês, a sua recuperação seria difícil ou praticamente impossível, porque o Setter jamais permitiria a sua ascenção e aceitaria de bom grado ser despromovido. Inúmeras vezes, com o decorrer do tempo, acontece a revolta do cão mais forte, o que não é desejável diante da salvaguarda dos cães, da possível formação de traumas e da instalação de comportamentos antissociais de difícil eliminação. A diferença de idade nos cães pode transformar um fraco ou um cobarde num líder, temporária ou definitivamente, o que não deixa de ser um absurdo.

OS CÃES DOS MIÚDOS


Bem que poderíamos abraçar o tema com a estrofe de Fernando Pessoa que diz: “Mas o melhor do mundo são as crianças”, porque elas e os cães entendem-se perfeitamente, numa sintonia emocional que sustenta qualquer paixão, mercê da paridade que melhor garante a coabitação. Só espanta quem não sabe ou quem nunca viu: é fácil constituir binómios com condutores infantis, desde que activos, minimamente responsáveis e com a robustez própria para a idade, porque mais depressa atingem a cumplicidade e alcançam a unidade binomial. Por causa disto, muitos cães acabam por não ver com bons olhos a repreensão dos infantes, tomando imediatamente a sua defesa e impedindo que alguém os agrida. Uma palavra aos pais: é melhor que os vossos filhos partam para a aventura com um companheiro (que os ajudará a crescer), do que se divirtam infinitamente a matar “klingons” em cima do sofá ou a engordar sistematicamente diante do televisor.

O MANGALARGA E O PASTOR ALEMÃO

Sem ofensa, dos muitos cavalos que há no Brasil, eu prefiro o Cavalo Crioulo, as gentes e o mundo à sua volta, o pique do animal e a sua versatilidade, o garbo e a raça dos gaúchos que o criaram, talvez porque não queira entregar a vida aos pontos ou porque o avançar dos anos é pródigo em nos fazer sonhar. Abandonando as preferências e enverando pelos factos, sendo possível a comparação, o Mangalarga está para os cavalos como o Pastor Alemão está para os cães, enquanto trotadores e criados para melhor servir. A biomecânica de ambos aproxima-os e a elegância de andamentos é-lhes também comum, para além da nobreza que dispensa qualquer tipo de publicidade. Por isso não é de estranhar, para quem gosta de cavalos e adora cães, acabar proprietário ou criador dos dois, apesar dum ser genuínamente brasileiro e outro inequívocamente germânico.