terça-feira, 22 de maio de 2012

ECOS DA CRISE, PATRANHAS ANTIGAS

Sucedânea à criação de “pintos do dia” que tantos aviários gerou, no hábito enraizado da economia paralela que o interior trouxe para a cidade, a criação de cães aconteceu um pouco por toda a parte, substituindo nos quintais as tradicionais hortas, capoeiras, coelheiras, currais, charcos e pombais. Num ápice e de modo inesperado, fruto do tempo e por auspício do consumo exagerado, o número de canicultores cresceu assustadoramente. Hoje decresce vertiginosamente e há quem tudo faça para se ver livre dos cães na celebérrima política do “passar da batata quente”, ressuscitando desse modo velhas patranhas que de novas só têm os seus intervenientes, já que a canicultura não é auto-suficiente e sempre dependerá doutra actividade para o seu sustento. Recentemente ouvimos uma patranha digna de destaque que queremos dividir com os nossos leitores. Fulano tal, que diz de si mesmo ser um adestrador reputado e com promissores contactos internacionais, na ânsia de angariar um seguidor, mão-de-obra barata e de se ver livre de um cão, solta para o incauto: “ Este cão está vendido para uma polícia estrangeira por 3.400€, mas como eu gosto de ti e tenho prazer em ensinar-te, vendo-te somente por 340!” Em tempos idos conhecemos um sujeito que esteve prestes a vender o Convento de Mafra, apesar de não ser seu, ser de custo incalculável, de manutenção astronómica e ter 365 portas e janelas. É preciso descaramento, mas há sempre alguém que embarca! 

A PARAGEM DO TEMPO ÀS 10 PARA AS DUAS

Há quem diga e nisto parece ter alguma razão, que os cães de trabalho são normalmente feios e mal-amanhados, toscos de morfologia e de qualidade duvidosa, isto se considerarmos que nas classes ditas laborais, pelo menos na nossa latitude, superabundam cães com essas características. Ninguém duvida que existem por cá excelentes exemplares de trabalho, que juntam à aptidão uma morfologia invejável, contudo são muito poucos. Paralelamente, os canicultores de cães de utilidade parecem não se preocupar com isso, produzindo animais com uma biomecânica desprezível onde sobressaiem desaprumos de toda a ordem que irão gerar animais côncavos e por isso mesmo impróprios. Dá ideia que o relógio parou em Portugal às dez para as duas para os criadores de cães de trabalho, considerando o número de exemplares que apresenta o peito estreito ou invertido, abatimento de metacarpos e mãos divergentes, incapacidades responsáveis pelo selar do dorso, pelo desprendimento de bolsas de líquido sinovial e pelo aparecimento de higromas, dando a idéia que o cão de trabalho já nasce estoirado pelo serviço. Sabe-se que na maioria dos casos o problema não é genético e resulta da falta de acompanhamento dos cachorros, verdadeiros sobreviventes sujeitos à subnutrição e isentos do parecer médico-veterinário. Está mais do que na hora de dar corda ao relógio e apostar na criação de exemplares capazes, capazes de nos surpreender e capazes para o serviço que deles esperamos.

QUE GRANDE CÃO EU LHE VENDI!

Muita gente já fechou as portas e entre ela grande número de sensatos, um sem número de oportunistas e outro tanto de gente imprópria, graças à actual crise económica que inevitavelmente acabou por atingir a canicultura e os seus apaixonados, também ela vítima e reflexo do outrora crédito fácil que teve como consequências o aumento da procura e a supervalorização dos cães, como se o dinheiro não tivesse fim e nunca nos viessem a pedir contas. Nunca foi tão fácil comprar um cão, considerando que algumas raças são agora vendidas a 1/6 do preço encontrado nos finais da década de 90, altura áurea para a importação e ocasião para grandes negociatas. Como a crise não é só falada em português e ultrapassa largamente as nossas fronteiras, também porque alguns países de leste fazem hoje parte da Comunidade Europeia, exportando para aqui cães a baixo preço e nem sempre de boa qualidade, por toda a Europa o preço dos cães baixou drasticamente e encontra-se tabelado quase ao preço dos gastos. Salvo honrosas excepções, que são motivo de inspiração, a maioria das ninhadas nacionais acaba também por pagar com a barriga o preço da crise, havendo por aí muitas subnutridas e até famélicas, lembrando ratos carecas em ecossistema de parco alimento. Por força da austeridade, ao contrário do que antes sucedia, irá caber aos futuros proprietários a recuperação desses cachorros, façanha alheia aos seus criadores que aproveitarão esse investimento para justificarem a qualidade do seu produto, soltanto frases do género: “ Está ver… que grande cão eu lhe vendi!”

QUARTO DE VOLTA: O REGRESSO DO SOLDADINHO DE CHUMBO

Lá, por onde andaram franceses e ingleses pelo domínio da Europa no Séc.XIX, numa localidade onde os seus moradores insistem em trocar a acentuação tónica do seu nome, num sítio remoto, nada convidativo e mal apetrechado, assistimos ao regresso do soldadinho de chumbo, quiçá tornado efeméride por força do seu passado histórico. Estamos a referir-nos ao uso e abuso do “quarto de volta” na disciplina de obediência canina, como se tal fosse premente, insubstituível ou carregasse vantagens nunca vistas. O movimento, tornado ali em “ordem unida”, lembra as intermináveis filas para o recebimento do “pré”, muito embora a continência acabe substituída pelo ajustar do cão com a mão.

Ainda que o movimento requerido tenha como objectivo a fixação do “alto, do “junto” ou a fixação exclusiva do cão na pessoa do seu condutor, já há muito que se descobriram modos mais eficazes e céleres para esses propósitos, tais como o recurso ao reforço positivo e a instalação do “meia-volta”, muitas vezes codificado como “volta” ou “roda” de acordo com o comando alemão “zurück”. O “quarto de volta”, quando usado sistematicamente, tende ao aumento do travamento e a contribuir para uma autonomia condicionada pouco visível e nalguns casos piegas, ficando isso a dever-se aos diferentes perfis psicológicos presentes nos cães. A somar a isto, porque o ensino canino é dinâmico, exige celeridade no cumprimento das ordens, procura a minimização do esforço humano e a maximização do esforço animal, não dispensando por isso a velocidade funcional inerente aos diferentes serviços a prestar pelos cães, o “quarto de volta” acaba por atentar contra tudo isto, o que de todo não é desejável.

É evidente que cada qual dentro da sua casa é rei e isso deve ser respeitado, no entanto e porque começámos por uma evocação histórica, interessa-nos manter o mote e usá-lo para uma melhor compreensão da problemática ligada à insistência no “quarto de volta”, evolução típica dos imóveis soldadinhos de chumbo que a foram beber aos exércitos regulares no apogeu da Revolução Francesa. Por culpa dos espanhóis que inventaram a guerrilha (do castelhano guerrilla: pequena guerra), o modo de guerrear alterou-se e a partir daí a derrota dos Franceses consumou-se na Península Ibérica. Exceptuando a praxis de alguns membros da histórica e extinta escola alsaciana, não sabemos se alguma vez o “quarto de volta” fez parte do currículo base da obediência a ministrar a um cão, mas se isso aconteceu algum dia, foi lá para os primórdios dos cães de utilidade e muito antes da II Guerra Mundial, porque a partir daí tal nunca foi visto, já que as inversões do sentido de marcha sempre aconteceram de modo mais pronto pela “meia-volta” e resolvidos os “quartos” pelo auxílio do “junto”, nomeadamente nas evoluções de “direita e esquerda volver”, comandos militares e por isso mesmo distantes das práticas civis.


Assim como o “troca” (tauschen) exige nos ensinos dinâmico e nuclear modos mais céleres que não dispensam a rotação de tronco que possibilita a condução a duas mãos direccionais, também o “quarto-de-volta” deverá ceder lugar a outras formas de “junto” que garantam o mesmo propósito (o “junto instantâneo” por pirueta ou o confirmado a partir do ladear). Assim como a prontidão dos ataques deve ser igual à sua cessação, também qualquer imobilização deverá garantir a partida automática para a acção. O uso abusivo das figuras de imobilização, muitas vezes usurpando o lugar da ginástica nos 1º e 2º Ciclos Infantis (dos 4 aos 6 meses e dos 6 aos 8 meses), tem funcionado como um inibidor da velocidade e castrado muitos cães para um conjunto de acções necessárias às restantes disciplinas cinotécnias, inutilizando assim a sua vocação, propensão natural, mais-valia e complementaridade. Por outro lado, o abuso da toada “alto e pára” que o “quarto-de-volta" propicia acabará por enfraquecer os impulsos herdados que garantem a defesa do dono e dos seus bens, particularmente na sua ausência, graças à exagerada submissão operada que obstará a qualquer autonomia pretendida. E como importa dar a cada um o que é seu e a César o que é de Cesar, os adeptos do “quarto-de-volta” deveriam uniformizar os seus alunos com fardas de cotim ao invés dos comuns fatos de treino.

terça-feira, 1 de maio de 2012

GINÁSTICA CINOTÉCNICA: A FORMAÇÃO DO CÃO-GATO



Desde cedo se percebeu, quando se pretendeu usar o cão como guerreiro nos tempos modernos e treiná-lo como militar, da necessidade de um adestramento específico visando a supressão de algumas dificuldades e a potenciação das suas capacidades ou complementaridades, da emergência de pistas tácticas com obstáculos próprios e capazes para o simulacro do teatro operacional, nascendo assim, um pouco por toda a parte, o conceito e elaboração da pista táctica (nalguns casos tratada como pista de fogo), requisito que viria a revelar-se fundamental para o treino do cão de guerra. O modo diverso de fazer a guerra e a perca galopante de atribuições militares por parte dos cães, levaram ao desuso e desaparecimento das outrora famosas pistas tácticas, que subsistiriam ainda até aos alvores do cão-polícia, transição natural que tanto creditou algumas raças e uma ou duas em particular.

E como não estamos aqui a tratar do fenómeno de Tunguska e tudo tem o seu início, todas as pistas que hoje vemos tiveram a sua origem comum nas pistas militares, a menos que consideremos a actividade circense como madre de algumas modalidades ou disciplinas caninas, o que nos parece pouco provável. Apesar da novidade de propósitos ter levado a diferentes filosofias e outros tantos objectivos, o hábito sistemático de treinar cães é um legado militar sobre os cães ditos de utilidade ou de trabalho, mesmo que eles se tenham vindo a transformar em simples guardiões, caçadores ou companheiros, porque ainda definimos o treino como rigor, apostamos na constância das acções, buscamos o condicionamento, procuramos a uniformidade, o apego aos procedimentos e temos como base de todo e qualquer adestramento a disciplina de obediência, ainda que os meios para o seu alcance tenham mudado, diga-se que felizmente, em abono dos cães, na defesa da sua integridade e individualidade, defesa operada pelo reforço positivo e pelo uso requerente à memória afectiva presente nestes animais.

A passarelle já existia e dela se fazia uso antes de um “sonhador” ter inventado o agility pela observação das provas equestres, o mesmo aconteceu com os esconderijos hoje usados para o treino do cão de guarda e os retrievers são anteriores aos novos métodos de ensino. Valerão as pistas tácticas somente como referência para os actuais cães paisanos ou serão também importantes para a sua formação e capacitação? Estamos em crer que elas não perderam a sua actualidade e que muito podem subsidiar os actuais cães de trabalho, considerando o alcance dos seus indices atléticos, superior capacitação, bem-estar e longevidade, enquanto preparação específica para o trabalhado vindouro, alvos muitas vezes aquém das pistas em voga e que se transformaram no melhor dos marketings para quem tem rações ou acessórios para vender, porque não promovem o conhecimento biomecânico, o seu aproveitamento e potenciação, subsidiando ao invés o show e gozo efémero dos donos.

Para além destes aspectos, as pistas tácticas foram e devem ser concebidas para dar combate e levar de vencida os medos mais comuns presentes nos cães, geralmente transformados em traumas que inibem de sobremaneira a prestação canina e a sua saúde como um todo. Como a lista desses medos é interminável adiantaremos apenas alguns: acrofobia, acustofobia, batofobia, cainofobia, cimofobia, claustrofobia, cleitrofobia, escotofobia, ligirofobia e mictofobia, o rol é deveras extenso! As mais-valias das pistas tácticas não se esgotam nos benefícios psicológicos e na melhoria dos índices atléticos, no aumento da prontidão e na preparação específica dos cães, estendendo-se também à correcção morfológica e à melhoria dos aprumos, isto se convidarmos os cachorros para a sua prática aquando da face plástica que os ciclos infantis oferecem.

Os inimigos das pistas tácticas e que delas dizem horrores são na sua maioria gente que na década de 80 ainda não tinha atingido a maioridade e que assustada com os relatos que foi ouvindo, não raramente exagerados, as tem conotado como hediondas e desprezíveis quando comparadas com as actuais, de índole desportiva, de técnica rudimentar e de fácil resolução, o que compromete de sobremaneira o seu parecer, por não ser tangencial e não resultar da experiência objectiva que induz à comprovação. Assim também nasceu a história do lobo mau e o mito da avestruz com a cabeça debaixo da terra! Há quem também diga que a pista táctica é uma fomentadora de lesões e que por causa disso entrou em desuso, o que é falso, uma vez que o seu objectivo aponta claramente na direcção contrária e tem como prioridade a salvaguarda da integridade global dos cães, preparando-os para os perigos e desafios que encontrarão no seu quotidiano, valendo-se para isso de obstáculos idênticos àqueles com que irão ser confrontados.

O adestramento perderia o seu significado se em cada cão houvesse um gato, pelo menos na sua vertente atlética, porque o felino dispensa nesta matéria de qualquer tipo de aprendizado mercê das suas características inatas. Ao invés, o cão necessita de aprender a saltar correctamente, a distribuir prontamente o seu peso corporal pelos dois pares de membros nas recepções ao solo, o que lhe permitirá impactos menos violentos e garantirá a progressão por mais tempo e sem delongas. Ele irá necessitar de aprender a escalar, quer para prestar socorro quer para se libertar ou salvar, terá que aprender a nadar com os dois pares de membros abaixo da linha de água, caso contrário entrará em colapso e virá a morrer afogado. Terá que aprender a escapar-se do fogo e a evoluir em diferentes superfícies, pisos e acidentes (naturais ou artificiais), e ser condicionado na resolução de todo e qualquer obstáculo que encontrará pela frente.

Também terá de acostumar-se à vida urbana, à novidade de materiais e a evitar os danos que estes lhe possam causar, a vários tipos de transporte e a toda a casta de gente na progressão alinhada que lhe será exigida. Ser experimentado e aprovado nas situações em que importa socorrer-se e socorrer o seu dono, necessitando para isso de usar toda a ferramenta morfológica ao seu dispor, meta que a pista táctica não dispensa e que abraça como objectivo, resultando daí a sua actualidade e utilidade. Cortar, escalar, escavar, nadar, rasgar, rastejar, saltar, subir escadas, transportar e aprender a ocultar-se, são algumas das acções que a pista táctica lhe oferecerá e que irão capacitá-lo para a sua sobrevivência e mais-valia. A somar a isto, pelo peso do trabalho binomial que não dispensa a cumplicidade, a sua condução em liberdade e autonomia acontecerão mais cedo e tornar-se-ão mais eficazes. 

A natureza dos obstáculos propostos pelas pistas tácticas, para além de fomentar a escolha correcta dos andamentos naturais presentes nos cães pràs tarefas, tende e normalmente consegue, dotar determinadas raças de características funcionais que a sua selecção desprezou ou omitiu, algo a que a diferenciação estética não é alheia e que tem sido responsável por várias afecções e não raras aberrações. Os milagres operados pelas pistas tácticas ficam a dever-se à diversidade dos seus obstáculos e propósitos, ao respeito salutar pelos mais elementares princípios pedagógicos de ensino e à qualidade dos mestres de campo, gente experimentada na arte de ensinar cães e que disso faz uma verdadeira paixão, indivíduos que vieram para servir e que nisso se sentem bem, ainda que por vezes não sejam compreendidos, porque não esperam retribuição e sempre procuram o aprimoramento.

Uma pista táctica digna desse nome deve estar equipada com obstáculos típicos para os cachorros, ter um perímetro exterior de aquecimento, um conjunto de aparelhos para a correcção morfológica, obstáculos de diferente índole e outros específicos para o desenvolvimento interdisciplinar, ser um simulacro das acções reais que o cão terá pela frente e que exigem a sua pronta resolução. Pensar e agir ao contrário, é desejar que o cataclismo surja para que o treino aconteça. Situações destas fazem lembrar aquele crente pouco crédulo que só se lembrava de Santa Bárbara quando a borrasca estoirava.
Apesar das múltiplas vantagens que as pistas tácticas oferecem, o seu número é diminuto quando comparado com as de competição, facto que se fica a dever ao seu custo, à escassez de técnicos capazes e à ignorância de grande parte dos proprietários caninos, mais interessados naquilo que os cães têm para lhes dar do que em dar-lhes subsídios de longevidade.