sexta-feira, 30 de julho de 2010

A paz sem pernas e a escola ginásio

A maioria dos portugueses não tem a estrutura física visível nos nórdicos, os vikings passaram por aqui meia dúzia de vezes e de surtida, os povos germânicos mesclaram-se com os que já cá estavam, os francos da I Dinastia fizeram mais filhos fora de portas do que dentro dos seus castelos, daí sermos todos, de um modo ou de outro, por portas e travessas, descendentes de D. Afonso Henriques e não só. Prevaleceu o tipo mediterrânico, que como o próprio nome indica, prolifera por todas as suas margens. Não sabemos que tipo prevalecerá no futuro, atendendo às migrações actuais, mas isso também não vem ao caso. Os eugenistas nacionais dos finais do Sec. XIX e do primeiro quarto do Sec. XX, na ânsia de provarem a nossa ascendência germânica, talvez na procura da edelweiss no meio das urzes, omitiram propositadamente a contribuição de muitos povos (a si anteriores ou posteriores), que se fizeram presentes na nossa formação e dos quais somos exemplo vivo. Um português saudável, e agora são cada vez menos, muito por culpa do sedentarismo e da alteração dos hábitos alimentares, tem em média, para a mesma altura, menos 7 quilos que um alemão, um galês ou um sueco, o que lhe confere características próprias, diferentes propensões e outras qualidades, não sendo de espantar as boas prestações que os nossos atletas atingem nas corridas de fundo – o português nasceu para andar e correr!

Todavia, pouquíssimas são as famílias que têm uma tradição desportiva, grande número de miúdos abomina a ginástica escolar, a obesidade infanto-juvenil cresce assustadoramente e neste Pais de rotundas, que parecem crescer sem predadores naturais, somos confrontados com slogans do tipo: “Faça exercício pela sua saúde”. Nunca tivemos tantas pistas para ciclistas, pistas de manutenção ou itinerários pedestres, alguns deles verdadeiramente paradisíacos, como é o caso do passeio marítimo que circunda a Costa do Sol. Apesar de se ver mais gente a mexer-se, o salutar concurso à ginástica ao ar livre é esporádico e parece destinado às mesmas caras. A moda agora é ir para os ginásios, para o step, para os levantamentos e para os pretensos benefícios de toda a casta de máquinas. Dir-se-á: do mal, o menos! A maioria dos seus frequentadores faz dos ginásios um lugar social, um entreposto comercial, um local de encontros e desencontros sentimentais, beneficia dos seus “Spa’s”, usufrui dos seus bares e serve-se deles com pretexto, porque são poucos os que têm ou mantêm um calendário de exercício regular, deslocando-se ali somente como atletas de corpo presente, quiçá, talvez, à imitação do seu pendor histórico-religioso.

Um pequeno número destes atletas confinados acabará por surgir no adestramento, porque tem cães e dificilmente os controla, entendendo a escola como um ginásio e ignorando em simultâneo a necessidade excursionista canina. Quando alertados para a necessidade da sua disponibilidade física, enquanto agentes de ensino e condutores cinotécnicos, logo adiantam o seu currículo ginasial e aceitam sobranceiros o encargo. Normalmente acabam por “não ter pernas” para o cão, descobrindo assim, perplexos, a sua má forma física. Diante de tal logro, alguns deles acabarão por deixar os ginásios, não lhes vendo grande préstimo para a nova função e abraçarão os seus cães como personal trainers. Com eles irão caminhar uma légua diária, subir serras e outeiros, bater charnecas e vales, atravessar rios lado a lado, pernoitar em diferentes ecossistemas e redescobrir o contacto com a mãe natureza. Um condutor cinotécnico zeloso dos seus deveres e apostado no bem-estar binomial chega ao final do ano com 1.800 km andados! Infelizmente são muito poucos, já que a maioria percorrerá somente uma média de 240 km anuais, efectuados exclusivamente no decorrer dos trabalhos escolares, se mantiver uma carga horária mensal de 8 horas, o que nos obriga à procura de diferentes ecossistemas, considerando o interesse dos donos e o aumento da experiência directa dos cães.

O velho conceito pedagógico que restringe o adestramento unicamente ao espaço escolar, transformando-o desse modo numa escola-ginásio, está ultrapassado, porque se encontra dependente da recapitulação doméstica que nem sempre acontece e obriga a um sem número de adaptações para além dos seus muros, condições incómodas, por vezes de difícil resolução, tanto para homens como para cães, considerando a novidade dos desafios. Ademais, a escola não é um fim em si mesmo, senão um recinto para a posterior adaptação ou capacitação dos binómios, algo para além de um amontoado de esconderijos, um monte de pneus, uma taleiga de varas ou um aglomerado de bidons, pintados de cores berrantes e escondidos num campo exíguo, estéril e distante da realidade, geralmente nos subúrbios, rematado por uma estrada ou encostado a uma linha-férrea. Diante do panorama e das necessárias adaptações binomiais, mais depressa se justificaria o ensino porta-a-porta do que o fornecido por uma escola deste tipo. Acresce ainda que a maioria dos centros caninos se encontra mal apetrechada do ponto de vista logístico-didáctico, excepção feita àqueles que se destinam a modalidades específicas e destinadas a provas, onde o grosso dos alunos nem quer ouvir falar delas, porque não tem tempo ou tem mais o que fazer. Ainda que os cães possam confundir a ficção com a realidade, e os homens também, é obrigatório transitá-los da simulação para o dia-a-dia das situações concretas.

Deveremos abandonar o recinto escolar? Não! De maneira nenhuma! Isso seria a mais insana das loucuras, violaria os mais elementares princípios pedagógicos, causaria maior delonga no processo de aprendizagem e obrigaria a alterações que não estariam ao alcance de todos (instrutores, instruendos e cães). Todavia, a escola também deverá fornecer estágios para os seus alunos fora de portas, minimizando dessa forma os riscos do seu insucesso, transitando para o exterior a aplicação dos códigos e exercícios que valerão para o quotidiano dos binómios. Não estamos a falar de duas ou três saídas esporádicas anuais, de curta duração, pouca aplicação, dedicadas à galhofa e à pança cheia, que também são importantes para a unidade do grupo, mas da execução prática dos conteúdos de ensino em ambientes mais tangíveis aos lares de adopção e para além da segurança oferecida pela escola, que deverão acontecer sistematicamente e que complementarão o ensino ministrado – a escola enquanto meta deve rumar ao objectivo. A opção tem-se revelado um contributo alegre para os cães, porque a sua percepção não abrange o futuro e acabam por absorver a liderança como meio para a sua sobrevivência. A escola em excursão acaba por dotar os condutores para a excursão diária, revestindo-os da experiência que necessitam prà tarefa, tornando-lhes alcançável a recapitulação doméstica que garantirá um maior desenvolvimento do processo pedagógico comum. Não somos tolos ao ponto de pensarmos que todos os alunos a executam, ao invés temos a certeza que muito poucos a fazem, o que nos obriga a aumentar o quadro experimental dos cães e a irmos para o olho da rua, em abono do seu bem-estar, capacitação e posterior adaptação. Alcançar a sociabilização na escola é mais fácil do que alcançá-la em parques e jardins densamente concorridos. Mas onde iremos necessitar mais dela? Parece mentira mas é verdade, já tivemos alunos que compraram casa nas imediações da escola para minorarem os riscos da excursão diária! Escola que não sai é como um candidato a piloto que não descola da cadeira simuladora!

A paz sem pernas, visível nos maus frequentadores dos ginásios, porque sossegam a sua cabeça pelo simples acto de se inscreverem, não deverá estender-se à cinotecnia, debicar a sua dinâmica ou comprometer os seus objectivos. Ensinar é uma acção continuada para produzir resultados, um subsídio para a vida e para a sobrevivência. Nós estamos cá para que os cães tenham vida em abundância! E como o adestramento é também desporto, poucas actividades desportivas são tão abrangentes, próprias para todas as idades, sexos e tipos físicos. O ensino canino é feito em movimento e não pode ser só travamento, aumenta com a experiência e procura vencer a novidade. A escola-ginásio só serve para os cães que nunca saem de casa, papagaios desengonçados em gaiolas de betão.

O desejo do infante

O Francisco Marques adora o Nick, o seu cachorro CPA e não o quer ver atrasado em relação aos outros. Sempre quer aprender mais e nisso irá ser bem sucedido, porque é um ouvinte atento, um observador inato, disciplinado, pragmático e meticuloso, qualidades raras num petiz de 11 anos de idade. Por estes dias, depois de observar os outros cães a fazê-lo, ele queria que o seu cachorro já se deitasse também e perguntou quanto tal seria possível. Foi-lhe explicado que mais adiante isso acontecerá, quando o cachorro estiver melhor aprumado e musculado de traseira, esclarecimento que compreendeu e aceitou. Fica o desejo do infante, o seu apego ao adestramento e o cuidado que dedica ao seu cão, razões prò nosso contentamento e alento prò nosso ofício. Parabéns miúdo!

Os nervos do canzarrão e as dores de cabeça do Toninho

Quem vê brotar a nascente de um rio dificilmente adivinhará qual o caudal que terá na sua foz, quilómetros adiante e depois de reforçado pelos seus afluentes. Do mesmo modo, ainda que inversamente, os proprietários caninos ignoram a ligação entre o problema e a sua origem, a relação passado-presente e o reflexo dos problemas mal resolvidos. Sempre será mais cómodo dizer-se surpreendido do que assumir os erros e reverter a situação, ainda que alguns deles possam provir do desconhecimento. Este é o caso visível no binómio fictício Toninho/ Canzarrão, um problema muito comum, uma novela que se repete ano após ano, sujeita a determinadas condições instaladoras que trama os donos e vitima os cães. Começaremos por apresentar o problema como nos é apresentado, denunciaremos a sua origem e finalmente adiantaremos a sua solução.




O Canzarrão é um cão valente que detesta andar à trela, pendura-se nela, afasta-se da perna do dono e reboca-o. Invariavelmente anda em passo de andadura e de vez em quando dispara a galope. A transição para a condução em liberdade tem-se revelado um desastre, porque invariavelmente furta-se aos exercícios e põe-se em fuga. Apesar de temer os outros cães ladra-lhes, sempre intenta copular as cadelas, desinteressa-se da ginástica e lesiona-se com facilidade. Desencanta-se com a obediência, não raramente transita do “senta” para o “deita”, resiste aos seus automatismos e se puder invalida o “quieto”. Evolui no treino nervoso e desconfiado, só gosta de andar a seu bel-prazer, como se fosse doutra galáxia ou intentasse procurá-la. Apesar de ter mais de 1 ano de idade, nem sempre levanta a perna para urinar, afunda-se perante as repreensões e por vezes ronca para o dono. O Toninho anda desesperado e o caso não é para menos, porque os ascendentes do cão são de qualidade insofismável. Quem se encantará por um cão assim? Nem parece que treina desde os quatro meses de idade!



À partida, aqueles adestradores que nunca se enganam e que raramente têm dúvidas resolveriam os efeitos sem considerar as causas, apostando na mudança de processos que lhes daria um crédito extra, valendo-se de métodos e meios mais coercivos para a recuperação do cão e alegria do dono, ignorando o seu preço e sem quererem saber a quem endereçar a factura. Para eles o cão necessitaria de apanhar umas boas lições e para isso haveria que aumentar a autoridade do dono. Aqueles que geralmente se enganam e que são dominados pela dúvida suavizariam os métodos e esperariam pelos resultados de tal erudição, confiados que o treino, por si mesmo, produziria as alterações desejadas pelas manobras de estímulo empreendidas. A sua ênfase recairia sobre a cumplicidade e procurariam subornar o animal para atingirem a sua dependência. Caso não fossem bem sucedidos, não hesitariam em lançar as culpas sobre o animal, a sua raça ou sobre o seu criador, uma vez que tal afecção seria coisa nunca vista e teria certamente uma origem genética! Será somente o cão a causa do descalabro ou será a genética de que é portador? Serão as duas coisas em conjunto? E se não for nem uma coisa nem outra, quem será o culpado?



Os problemas visíveis no cão são sintomas que desnudam menos valias físicas, psicológicas e sociais, de origem ambiental, isoladas ou combinadas, que apontam para a mesma causa e denunciam o mesmo responsável – o dono. A contribuição genética para o problema deverá ser posta de parte, considerando o histórico familiar adiantado e a mais do que evidente razão ambiental para os fenómenos. A causa principal aponta para a precariedade da excursão diária e por inerência para a ausência de uma verdadeira recapitulação doméstica dos exercícios escolares. O desrespeito pelo “junto”, o mau relacionamento com a trela, a instalação do passo de andadura, os arranques inesperados prò galope, o desinteresse pelos exercícios, a aversão pela ginástica e a propensão para as lesões, são evidências de uma excursão diária imprópria, irregular, atabalhoada, de duração variável e caracterizada pelo travamento, que não produz alteração e que estabelece a confusão entre os momentos lúdicos, os inerentes às necessidades fisiológicas do animal e os de trabalho propriamente ditos, resultando daí a justificada tendência para rebocar o dono, aspecto ligado à experiência directa do cão (experiência anterior; rotinas ou hábitos adquiridos que se constituem em lições de vida).



Chegámos a estas conclusões pelo comportamento do Canzarrão em classe, porque para além do que já foi dito, mais três manifestações corroboram o nosso diagnóstico. São elas: o desejo incontido pela liberdade, a fuga do cão quando é conduzido desatrelado e a resistência sistemática à obediência. Todas elas revelam a ausência de um condicionamento activo e uma cumplicidade circunstancial, sendo efeitos duma excursão diária imprópria, curta, pouco cuidada, desregrada e sem calendário predefinido (o Toninho gosta de amanhecer na cama, à noite já chega cansado a casa e a porra do cão ainda reclama por ir à rua!). Se a situação não se reverter, o passo de andadura se mantiver e a marcha não for instalada, breve o Canzarrão selará o dorso, encostará os membros posteriores e divergirá de mãos, tornando-se num lupino côncavo sem alma. Indo para além dos aspectos físicos e psicológicos, a ausência de uma excursão capaz está também a comprometer o desenvolvimento sexual do cão e o seu viver social, contribuindo dessa forma para a infelicidade do animal, para uma saúde articular precária, para uma menor qualidade de vida e para o seu envelhecimento precoce. As pessoas sensíveis pouco fazem pela vida dos seus cães, mas podem prolongar-lhes a agonia.



É próprio dos machos, a partir dos 7 meses e quando atingem a maturidade sexual, começar a marcar território ao longo dos seus passeios, urinando por cima dos odores deixados pelos outros, desenvolvendo também desse modo o seu sentimento territorial. Não havendo território a marcar, se for sempre o mesmo e não for frequentado por outros cães, mais tarde levantará o cão a perna, dissabor que o atentará contra o salutar desenvolvimento do seu carácter e que o porá em dissonância com a idade, relegando para mais tarde o aparecimento da sua maturidade emocional. O atraso das manifestações sexuais induz a um comportamento receoso e obsta à ascensão social dos cães, levando-os a aceitar a dominância de outros que naturalmente não aceitariam. Tal é também o caso do Canzarrão, que apesar de ladrar para os outros cães, breve se sujeita e não reage às suas ameaças, quer eles sejam cachorros ou cães adultos, tornando-o no alvo preferencial dos seus pares e num macho acoitado entre as cadelas. É importante não esquecer que o domínio da hierarquia canina é patriarcal e que ela é encimada por um macho alfa. Quem imaginaria à partida, quão importante é o passeio diário dos seus cães? Qual será o número daqueles que os passeiam regularmente?



Não são só os cães agressivos que necessitam de sociabilização, os medrosos carecem dela muito mais, porque a sua operação ajudá-los-á a recuperar o seu carácter e contribuirá para o seu bem-estar. Os primeiros aprendem a regra e os segundos a reunir-se. O Canzarrão pertence ao segundo caso, ainda que por condicionamento ambiental, porque sem ser consultado, viu-se arredado da companhia dos cães das redondezas, possivelmente seus mestres e camaradas de brincadeira, enquanto agentes de ensino e percursores para o seu melhor desempenho escolar. O facto do cão se afundar perante as repreensões do dono na escola ou de se insurgir contra ele, numa ameaça incerta que é desnudada pela mímica empregue, denuncia a disparidade de procedimentos do seu líder, os havidos em casa e os requeridos na escola, porque a recapitulação doméstica não existe e a novidade obriga ao abuso da inibição – o cão não entende aquilo que o dono quer! Se à sobrecarga inibitória juntarmos o despreparo físico, um conjunto de fragilidades psicológicas, algum desaguisado emocional e uma sociabilização ineficaz, como poderá o Canzarrão aguentar-se no “quieto”? Não será de esperar que se ponha em fuga? Assim como o tempo das “benzeduras dos animais” tende à extinção, também a ocorrência de milagres na cinotecnia é muitíssimo rara, muito embora não faltem por cá falsos milagreiros, gente de ciência mal aplicada ou paladinos de muita reza.



Segundo o nosso rude entender empírico, aqui e ali salpicado pela erudição alheia, aquela que conseguimos compreender, adiantamos de seguida a solução para os nervos do Canzarrão e para as dores de cabeça do Toninho, sem tratarmos o cão como um delinquente ou um alienado e responsabilizando exclusivamente o dono como autor do problema. Apesar da inequívoca razão ambiental, aqui decifrada e exposta, paira no ar uma certa propensão genética concorrente ao problema, atendendo ao tipo de respostas e ao status assumido pelo cão. Na verdade ele é descendente directo de uma variedade serôdia (6/8), daquelas de forte impulso ao conhecimento, com uma curva de crescimento mais longa e que tardam em amadurecer (geralmente depois dos 18 meses de idade). No entanto, o Toninho já havia sido previamente alertado para o particular individual do seu companheiro, coisa que desconsiderou face ao seu viver social, outras prioridades e parcimónia cognitiva, acção que mais agrava a sua culpa, porque sabendo o que fazer, não o fez e ainda abraçou a inibição do Canzarrão como prática corrente e modo operativo, usando-a como bengala para o desequilíbrio que provocou.



A solução é simples e vai ser dada já, não venha por aí alguém com uma naifa de capador ou carregado de mezinhas (calmantes, relaxantes, anti-histamínicos e alucinógenos naturais ou sintéticos), afim de eliminar as cefaleias do dono e aumentar o melão do cão, substituindo o parecer da etologia, da biomecânica e da zoognóstica por uma terapia sujeita ao desmame, de resultados duvidosos e de possíveis efeitos contrários, sobre um paciente que pouco ou nada poderá dizer sobre a sua eventual melhoria, porque nisto de médicos e loucos, todos temos um pouco. Como é óbvio, não nos estamos a referir aos veterinários, profissionais a quem reconhecemos insondável competência e que votam a sua vida à saúde dos animais, mas a curandeiros ancestrais que guardam medicamentos em gavetas para futuras ocasiões. A solução para o problema aponta para a alteração da excursão diária, dotando-a de um novo modo operativo que garanta a recapitulação doméstica dos exercícios escolares, adopte a marcha como andamento preferencial, possibilite o contacto com outros cães, suspenda a inibição pelo concurso da recompensa e dos subsídios direccionais, aconteça em horários predefinidos (que se transformarão em rotinas), opere a variação dos trajectos e respeite a sua tríplice divisão (passeio higiénico, momentos de actividade apreensível e momentos de evasão). Tudo isto só será possível pela alteração de comportamentos do dono, enquanto é tempo e a mudança é possível. Não será ele o primeiro interessado na recuperação do cão? Há alturas em que não temos a certeza disso!



A recapitulação doméstica dos conteúdos de ensino ministrados na escola é uma tarefa pedagógica indispensável ao condicionamento canino, deve ser efectuada diariamente para garantir a supremacia dos automatismos funcionais, tarefa indispensável para a sua fixação, aprimoramento e evolução, sendo um requisito obrigatório face à fraca assiduidade escolar. Deve acontecer no 2º momento da excursão diária, no destinado à actividade apreensível. A adopção da marcha como andamento preferencial nas saídas ao exterior prende-se com os seus benefícios, porque oferece um maior desenvolvimento muscular, melhora os ritmos vitais e fortalece as articulações e tendões dos cães. O seu concurso possibilita ainda o equilíbrio membro a membro e fortalece o carácter canino, já que o seu embalo aumenta a predisposição laboral e apresenta-se como o melhor dos antídotos contra a manha. Aconselhamos uma cadência de marcha nunca inferior aos 5 km/h. Como sem familiarização dificilmente haverá sociabilização, o Canzarrão deverá cruzar-se com outros cães ao longo dos seus trajectos, vencendo medos, estabelecendo contactos e alcançando assim a tolerância necessária, mais-valia que contribuirá para uma melhor prestação em classe.



O Toninho tem um vício comum a um grande número de condutores: o de fazer da inibição tábua de salvação e pau pra toda a colher, usando invariavelmente o “não” no lugar dos automatismos que o dispensariam. Há uns anos atrás foi-nos oferecido um papagaio cinzento que acabou instalado na pista. Como a ave repetia tudo quanto ouvia, bem depressa dominou os comandos e passou a dar ordens aos cães, o que para além da graça causou algum transtorno aos binómios pela intromissão. Passados poucos dias já imitava três coisas: o barulho da água a correr da torneira, o grasnar dos patos e o comando de “não”, acções ligadas ao refrescar dos cães, à companhia dos patos e à predominância desse comando. O “não” pode e deve ser substituído por comandos não-inibitórios que não induzam à perca da velocidade, à quebra de ânimo e à suspeita, maleitas que sempre acompanham o seu abuso. O Treino canino, doméstico ou escolar, não deverá ser sistematicamente dominado pela lengalenga do “beijinho-pau, pau”, porque é arte, criatividade, sensibilidade e entendimento, não uma marcha forçada pelo ribombar dos tambores. Tanto o atraso como o adiantamento de um cão podem ser resolvidos de outro modo, pelo concurso dos automatismos direccionais: “à frente quando ele se atrasa e “atrás”quando se adianta, sendo posteriormente “agarrado” pelo “junto”. Para além de ser menos lesiva para o cão, esta prática contribui para a fixação desses automatismos, aumentando de sobremaneira a cumplicidade requerida aos binómios. Tendo em vista a recuperação do Canzarrão adiantamos também este procedimento prò Toninho.



Os cães são animais de hábitos e se não tivermos cuidado ficarão com maus hábitos. Os seus maus hábitos domésticos são responsáveis pela maior fatia das pessoas que nos procuram, uma decorrência da sua falta de preparo. Feliz é o cão que vive de rotinas, porque sabe com o que pode contar! Ele não vê com bons olhos a sua alteração, porque esse embaraço sempre lhe causa alguma suspeita. Tal foi o caso do sucedido com o Káká, um Pastor Alemão do Ti Filipe Pereira, nosso amigo e de quem já falámos noutras edições. Obrigado a ir trabalhar num dia de folga, transtorno que o impedia de distribuir o penso ao animal, chamou a sua mulher e disse-lhe: “Fernanda, toma atenção aos procedimentos. Como eu não estarei cá, serás tu a dar de comer ao cão. Depois de o chamares, senta-o à frente da tigela da comida e diz-lhe: Káká come”. Ela descansou-o e o homem lá foi para o trabalho. Ao cair da noite, o Ti Filipe voltou para casa e foi de imediato foi ver a tigela do cão, que se encontrava repleta e sem sinais de ter sido tocada. “Mas afinal o que é que tu fizeste? De certeza que não foi como eu te disse. O cão nem lhe tocou! Ora repete lá como fizeste” – dizia ele para a mulher. A pobre da Ti Fernanda repetiu os procedimentos e lá ia dizendo: “Kákácome, Kákácome, Kákácome!”. O marido pôs as mãos à cabeça num claro sinal de desconserto e respondeu-lhe: “ Ah! Agora já sei, o comando é Káká come e não Kákácome ou lá o raio como dizes!”. Também a excursão diária deve obedecer a um horário rígido e constituir-se em rotina, facto que tornará os cães mais asseados, ávidos pela saída e predispostos para o trabalho – a chamada hora do cão! O Toninho deverá respeitá-la e não alterá-la de acordo com a sua disposição, porque os seus amoques tornam o Canzarrão ansioso e lançam-no na mais profunda confusão.



O passeio diário transformado pela cinotecnia em excursão diária, pela necessidade do condicionamento e pela premência da sua recapitulação e utilização, para além dos diferentes objectivos diários, deve respeitar os 3 momentos distintos que o integram, a bem da saúde dos cães, em prol da sua concentração laboral e de acordo com as suas necessidades biológicas individuais. Dos 75 minutos que lhe devem ser atribuídos, dedicaremos 15 para as necessidades fisiológicas dos cães, 30 para o trabalho propriamente dito e os restantes 30 para a evasão. Como o 1º momento não suscita dúvidas a ninguém, passaremos de imediato para o dedicado ao trabalho, altura em que recapitularemos e aperfeiçoaremos o ensino adiantado pela escola. Nele desenvolveremos os diferentes automatismos e as acções que eles facultam, havendo o cuidado de não sobrecarregar os animais ou abandoná-los à resistência contra os exercícios, pois saímos para trabalhar e não para cimentar vícios. No 3º momento, que pressupõe o regresso a casa, aliviaremos a pressão, seremos mais tolerantes e daremos maior liberdade aos cães. Poderemos juntar o 2º com o 3º momento e constitui-los num momento só? Podemos, desde que isso não quebre a boa disposição dos animais, atente contra a sua adaptação ou ultrapasse as suas capacidades, pois há que respeitar a idade dos instruendos, o seu grau de ensino, índice atlético e o seu particular racial ou somático. Não devemos é juntar o 1º aos outros momentos, prática comum e que teima em sair de moda, porque é cómoda para os donos e tende a esconder a sua falta de disponibilidade. O desprezo pelo 1º momento retardará a assimilação do trabalho, comprometerá a higiene doméstica e levará os cães a satisfazerem as suas necessidades em classe por força da experiência anterior, actos que servirão de convite para os seus colegas e que obrigarão a desnecessárias interrupções, evidenciando assim um sério despropósito à seriedade laboral. Primeiro passeia-se o cão e só depois se pede licença para entrar na escola. Bem sabemos que o Toninho raramente ultrapassa o 1º momento ao longo das semanas, que o adultera com momentos de trabalho ineficaz e que viola as necessidades e apelos do seu amigo Canzarrão. Meu rapaz, há que mudar, arrepiar caminho que se faz tarde!



Tanto a escolha como a variação dos percursos deverão considerar o momento actual do desenvolvimento do cão e a capacidade que ele tem para levar de vencida as metas propostas. A variação dos percursos serve para uma capacitação específica ou para garantir a certeza das respostas caninas, sobrepondo-as desse modo aos desafios encontrados. Ela deverá pressupor o avanço cognitivo canino e acompanhar o desenvolvimento fornecido pela escola. Só se deverá passar para um segundo percurso depois da inteira satisfação no primeiro, facto desnudado pela certeza das respostas caninas. Todos os cães deverão ter percursos para a sociabilização, para o desenvolvimento da capacidade de marcha, próprios para o trabalho específico e indicados para o robustecimento do seu carácter, porque são subsídios pedagógicos inestimáveis para a melhor coabitação e para uma superior prestação. Um condutor de cães não é um handler de laçarote ou um nova-iorquino a biscate, daqueles que levam à rua os cães das madames, mas alguém que sai de casa com um propósito definido e que regressa depois de o haver alcançado. Todo e qualquer percurso, seja ele diurno ou nocturno, deverá considerar a temperatura e o teor de humidade que o acompanharão, para que não se venha a revelar contraproducente, de nenhuma utilidade e ponha em causa quer a integridade quer a sobrevivência dos cães. Aconselhamos uma légua diária de marcha (5 km), porque isso basta como exercício para os cães, produz alteração, garante a sua boa forma e torna-os aptos para novos desafios. Eventualmente poder-se-ão efectuar percursos com maior distância, mas nunca por sistema, a menos que nos dediquemos a uma modalidade desportiva específica ou queiramos fazer dos nossos cães uns papa-léguas. Os cães também se saturam! A excursão diária poderá e deverá ser subdivida sempre que tal seja possível. Sabemos que o aumento da capacidade de aprendizagem é oferecido pela experiência variada e rica e nunca ocultámos isso a ninguém. Porque razão andará o Canzarrão sempre a chapinhar no mesmo sítio? Será um génio ou transfigurar-se-á num burro preso a uma nora? Há cães e cães, mas alguns não têm sorte nenhuma!

O serra de Belém

Deambula pelo Jardim de Belém um Cão da Serra da Estrela, abandonado ali há alguns dias e acoitado entre o arvoredo. Aparenta ter entre 4 a 6 anos de idade, vê-se que é puro e indicia ser descendente de cães cor de marfim. Os empregados dos restaurantes têm-lhe vindo a atravancar o estômago e segundo eles está mais magro. Apesar do infortúnio, o bicho conserva o porte altivo e mostra-se aristocrata, desfilando calmo e seguro entre as gentes, não demonstrando medo e evidenciando um carácter irrepreensível. Parece conformado com a sua sorte, seja ela qual for, apesar de não ser difícil adivinhá-la. Algum dos nossos leitores estará interessado na sua adopção? Se estiver, não hesite e corra para Belém. A Acendura garante o seu treino gratuito e dispõe-se a acompanhar a adopção.

Boas notícias!

O Sr. Dr. José Gabriel de Almeida Rocha, nosso aluno e condutor do CPA Master, regressou a casa no passado dia 26 deste mês, após ter sido sujeito a uma intervenção cirúrgica, Este nosso amigo encontra-se bem e a sua recuperação aconteceu em tempo recorde, em apenas seis dias, o que muito nos alegrou, sossegou a sua família e foi motivo de júbilo para os seus cães. Desejamos-lhe também uma convalescença rápida e definitiva, porque o queremos de volta às nossas fileiras, presença que muito nos honra e que é de préstimo inestimável. Os votos de todos exprimem-se num simples comando: “Em frente!”.

Frase da semana

Há gente assim e o Luís Leal é uma delas, homens que fazem da cumplicidade o melhor dos veículos para alcançar os seus cães. À parte disto, o rapaz tem intuição para o adestramento, apesar de pouco aplicado e nada chegado aos procedimentos. Vale-lhe o excelente relacionamento que tem com a sua CPA negra, a Teka. Quando ela se senta de forma anómala ou parcial, ele diz-lhe carinhosamente: “Ò Teka, isso é à vaca” e imediatamente a cadela corrige a posição. Não basta ter talentos, há que aplicá-los!

Caderno de ensino: XXIII. O "retraça"

O “retraça” é um automatismo próprio para os cães de resgate e pode ser usado noutras disciplinas ou especialidades cinotécnicas. Consiste no despedaçar de um obstáculo ou objectos avante que obstem à prestação de socorro canina, constituindo-se numa acção típica de desencarceramento. Os cães que tendencialmente destroiem os seus brinquedos, mais rapidamente assimilam o automatismo. Tendo em vista o aproveitamento desta característica, mais vale dar-lhes brinquedos inquebráveis ou proceder à sua substituição do que inibi-los. O treino começa com jornais e cartões, evoluindo-se depois para materiais mais duros (plástico e madeira). Para além do uso dos dentes, requer-se do cão o uso das patas dianteiras e o concurso do seu dorso, porque importa tirar o máximo partido da sua força física. A acção é típica dos grandes e médios molossos, mormente aqueles com maior força de mordedura, cujo focinho mantém a mesma largura ao longo da sua extensão. Os cães só devem operar à ordem e o automatismo é também fundamental para os que se destinam ao cinema e à televisão.

A cortar o cordão umbilical

Neste fim-de-semana, o menos concorrido da Escola, optámos por ensinar o “cruza” e o APC aos cães mais velhos, solicitando ainda o “troca” em liberdade. No Domingo convidámos todos os binómios para a condução em liberdade e completámos essa acção com o convite para a transposição de pequenos obstáculos naturais e artificiais. Gradualmente vamos cortando o cordão umbilical aos cães, alterando a condução à trela com momentos de condução desatrelada, Cortar o cordão umbilical (nome que damos à trela), significa transitar da persuasão para o domínio dos comandos verbais, da condução à trela para a condução em liberdade. Ensinámos também o “corta” aos cães presentes e obtivemos um aproveitamento superior aos 83% (só houve um cão que não foi aprovado). A Irina não compareceu porque foi para “Portalhegre”, substantivo próprio do seu linguajar eslavo-português com que identifica a cidade alentejana de Portalegre.
Participaram nos trabalhos os seguintes binómios: Célia/Igor, Francisco Marques/Nick, Luís Leal/Rocky, Roberto/Turco e Teka II, Rui Coito/Shara, Rui Ribeiro/Babel, Tatiana/ Teka I, Tiago/Sane, Teresa/Buster e Vitor Hugo/Yoshi.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

O cão CPA azul: Die gespenst hund ( O cão fantasma )

A esmagadora maioria dos criadores de CPA desconhece-o, os apaixonados pelos cães ignoram a sua existência, esporadicamente alguém fala dele, porque teve ou viu algum em tempos que já lá vão. Porém, ainda que em pequeno número, ele continua vivo entre nós, resguardado e salvaguardado em isolados nichos de criação. Estamos a falar do CPA totalmente cinzento (azul), um cão de rara beleza e que nunca foi muito visto, atendendo à proto-dominância dos lobeiros, à rejeição dos brancos, ao desprezo pelos negros e à posterior dominância preto-afogueada. “Lobeiro” é um adjectivo português que designa um cão de cor idêntica à dos lobos, que é cinzento no dorso e calçado de fulvo (afogueado), sendo por isso bicolor e maioritariamente cinzento, identificado universalmente por azul parcial e nalguns casos simplesmente por azul-fogo.

O CPA nasceu lobeiro e negro, estabeleceu-se a partir da fusão destes dois factores cromáticos e evoluiu por opção para o preto-afogueado, exactamente a mesma que excluiu os brancos. Quase por milagre, os lobeiros não desapareceram, apesar de minoritários nesta raça de e para o trabalho. Como qualquer lobeiro carrega o factor azul, será a partir dele que chegaremos aos cães totalmente azuis, não sem o contributo doutra variedade cromática uniforme (branco ou negro), porque a pré-existência de uma garante o aparecimento da outra. A divisão histórica, chauvinista e caricata que impera dentro dos Pastores Alemães, que a uns considera de beleza e a outros de trabalho, manifesta na pseudo diferença entre linha antiga e linha moderna, fortemente ligada à economia que sustenta a estética, não consegue esconder a origem comum e reside essencialmente na diferença dos padreadores escolhidos, muitas vezes irmãos, do mesmo tronco e de pouca diferença. Todos tiveram com ancestrais o Honrad von Grafrath e o Hektor von Schwaben, ainda que alguns tenham rejeitado mais tarde o Utz Haus Schütting (por exemplo). A redenção do CPA, que tarda em chegar e se vier a acontecer, antes que outros ocupem o seu lugar, virá do reconhecimento dos erros e da fusão das linhas, redescobrindo dessa forma o potencial laboral da raça, para outras inatingível e ainda possível se procurado.

As mais-valias do Cão de Pastor Alemão não passaram desapercebidas a ninguém, a raça estendeu-se de Sul para Norte na Alemanha, chegou aos sudetas e acabou também abraçada pelos ingleses, que apesar da resistência inicial, movida pela sua condição insular e exacerbado sentimento patriótico (eram na altura a 1ª potencial mundial), acabaram por importar vários cães da raça preconizada por Max von Stephanitz, estendendo-os também às suas colónias ultramarinas. Nove anos após a criação da Verein für Deutscher Schaferhund, em 1908, chegam os primeiros CPA’S a Inglaterra. Em 1919 o Kennel Club do Reino Unido já regista 54 exemplares e em 1926 eles atingem o número de 8.000, facto a que não foi alheio o seu desempenho enquanto cão militar na I Guerra Mundial, apesar da Alemanha ter saído derrotada nesse conflito. O apadrinhamento precoce da raça efectuado tanto pelos ingleses como pelos sudetas, tangencial à sua origem, acabou por firmar nesses territórios grande número de cães parcialmente azuis (lobeiros) e os azuis uniformes deles decorrentes. O particular geográfico de Inglaterra, o ódio ao tempo a tudo o que era germânico e seu desejo incontido de direito à diferença, levaram os criadores ingleses à perpetuação das linhas originais em contraponto com as selecções continentais. Ainda hoje são visíveis essas diferenças e o património genético da raça é mais rico na Inglaterra e na América do Norte do que na Alemanha, o que se compreende. Como resultado do desfecho da II Guerra Mundial, a Cortina de Ferro acabou por preservar também na Checoslováquia grande número de cães azuis (totais ou parciais), extremamente funcionais e muito procurados, ainda que abalados pelo espectro da consanguinidade, praga também extensível aos exemplares nascidos nos territórios da antiga RDA (DDR). Os afamados CPA’s russos do Exército Vermelho ou de criadores a ele ligados tiveram a mesma origem e muitos vieram parar a Portugal, particularmente depois da “Perestroika”.

Com a queda do Muro de Berlim e com o alargamento da CEE, com a abolição das fronteiras e com a livre circulação de pessoas e mercadorias, também porque o Leste da Europa estava depauperado, os cães do Leste chegaram ao Ocidente com preços irrisórios, bem abaixo dos praticados por aqui e geralmente transaccionados por intermediários espanhóis. Na Holanda ainda subsistem centros de treino canino que recebem cães dessa proveniência, de outras raças e de qualidade duvidosa, que depois de treinados, se destinam aos países meridionais da CEE para uso nas empresas de segurança privada. Como a continuidade de qualquer raça canina se encontra ligada ao factor económico, onde a procura alcança lugar de destaque, rapidamente os cães azuis foram assimilados pelos da variedade dominante, mais rentável, bem conhecida, melhor aceite e mais procurada. A formação do Lobo Checo, resultante do cruzamento do lobo europeu com o CPA, acabou também por contribuir para o desaparecimento do cão azul uniforme naquelas paragens, dotando-o de uma pelagem bicolor e mais próxima do seu progenitor silvestre. Para se aquilatar da influência do factor azul no Lobo Checo basta compará-lo com o Lobo Italiano, resultante do cruzamento do Lobo da Sardenha com o CPA, notoriamente mais vermelho ou achocolatado, mas igualmente desconfiado e de idêntico préstimo, pouco ou nenhum, considerando as dificuldades que apresentam na constituição binomial.

Ao Canadá, país profundamente dependente da Coroa Britânica nos alvores da raça, irão chegar CPA’S oriundos de Inglaterra e outros do final da I Guerra Mundial, exemplares azuis parciais, negros e brancos, para além dos afogueados que estão na origem dos actuais, acontecendo exactamente o mesmo nos Estados Unidos da América, prole que fundamentou o Pastor de Shiloh e o Pastor Canadiano, havendo nesses territórios pastores alemães cor de areia, tidos como dourados ou de manto vermelho (ver pág. 222 da obra “Enciclopédia do Cão, da autoria do Dr. Bruce Fogle, Ed. Livros e Livros, cuja 1ª edição remonta ao ano de 1998), que acabarão também por chegar à América Latina. A Inglaterra nunca se despojou totalmente dos exemplares que fundamentaram a raça no seu Kennel Club, muito embora os seus descendentes sejam raros, pouco badalados e procurados somente por apaixonados ou estudiosos do legado do Deutscher Schaferhund, apesar de mais robustos, funcionais, de garupa mais forte e desenvolvida. Foi graças a ter participado no contingente da Força Expedicionária Americana na I Guerra Mundial, que o Cabo Lee Duncan encontrou o Rin-Tin-Tin (Rinty), herói do cinema nas décadas de 20 e 30, que foi resgatado de um canil alemão bombardeado em Toul-Aux-Lorraine (França), também ele parcialmente azul (lobeiro) e que salvou a Warner Brothers da falência eminente.

Apesar de um bom Pastor Alemão poder custar o quádruplo dum Malinois de créditos firmados, não tem sido essa a razão principal para a sua substituição ou menor procura, muito embora não se possa ignorar o peso do factor económico. Estamos em crer, pela experiência que temos e pelo uso que fazemos destes cães ao longo de três décadas e meia, que o desuso do Pastor se deve à sua menor qualidade, ao desprezo pelo factor cromático azul que o levantou sobre os demais, enquanto génese das características psicológicas lupinas, porque para além da forma, o CPA é conteúdo e o cão cinzento isso garante. Na Europa já é difícil encontrar criadores de CPAS cinzentos, agora que o Leste ficou desfalcado e os ex-alemães orientais andam à procura de boleia. Contudo, lá para as bandas do Distrito de Wittenberg, ainda existem alguns criadores, pouco conhecidos mas conscientes da sua importância, gente que não vem anunciada nas revistas caninas e que não se sente molestada com a falta de deferência. Na Bélgica também os há, mas é na Inglaterra e dos Estados Unidos que existem em maior número. Os actuais lobeiros, chegados tarde e a más horas, fortemente ligados às linhas estéticas e pouco diferindo delas, são produzidos para o seu melhoramento e para a perpetuação da cor dominante, o que impede o retorno à variedade azul uniforme e quando a produz, mescla-a com lunares ou franjas vermelhas, como se o astro-rei (sol) sobre ela operasse. Em Portugal os cães cinzentos morreram com o Lobo da Alsácia, epitáfio francês que nunca escondeu a mentira que à data produziu.

Devido à sua raridade e possível interesse, também porque a diferença vende e o exotismo cativa, aqui e ali, tal negócio que desponta, surgem alguns criadores na procura do cão azul uniforme (cinzento total). Havendo excepções, a maioria deles ronda os cinquenta e poucos anos de idade, são gente que conheceu os cães do passado e que aposta agora no seu retorno ou ressurreição. Como é escasso o número de exemplares negros, variedade mal quista nas exposições de beleza, porque é recessiva e necessitam de uma cor sólida que propicie o aparecimento dos azuis totais, é comum valerem-se de exemplares brancos, descendentes indevidos da sua prole padronizada ou oriundos de outras raças congéneres (Pastor Suíço ou Canadiano). A opção pelo branco é a mais profícua, porque do cruzamento resultarão poucos indivíduos dessa cor e o número de cinzentos aumentará, ainda que possam surgir indivíduos com alguma diferença de tom ou pigmentação. A assimilação do branco não é novidade nenhuma, porque a selecção racial nunca se prestou à sua dominância, já que dois indivíduos brancos podem, sem maior dificuldade, gerar filhotes preto-afogueados. Quando visitamos estes criadores, sempre somos surpreendidos, geralmente num canil dos fundos ou arredado da entrada principal, com um ou mais cães brancos, secundados por exemplares de pelo comprido, de quem obtemos pouca ou nenhuma explicação, o que a ninguém espanta, porque os brancos não podem ser registados no Livro de Origens e os seus descendentes virão a aparecer com um pedigree inquestionável. Uma coisa é chegar ao azul total pela recessividade e outra bem diferente é alcançá-lo pela despigmentação, apesar dela ter acontecido nos alvores da raça. Nada temos contra os Pastores brancos, muito pelo contrário, porque neles são invisíveis muitas das maleitas presentes nos actuais Pastores. Estamos é contra a mentira, contra a trapaça que cega e burla os mais confiados, que ainda reconhecem rara erudição a quem tão bem os engana.

Na década de 90, a Acendura propôs-se a produzir Pastores cinzentos uniformes, valendo-se de cães oriundos das fileiras da GNR, negros e lobeiros, produto da esmerada selecção operada pelo Sr. Capitão Colares Rodrigues na década anterior, que ordinariamente se deslocava à Alemanha afim de adquirir bons cães policiais. Isso obrigou-nos a abraçar uma política de “quadro aberto”, aos beneficiamentos entre os negros e os lobeiros, dando a cada uma das variedades a presença da outra. Alguns exemplares negros mostravam essa evidência com pelos lobeiros no pescoço e no remate das coxas, os chamados lobeiros-negros, geralmente com a cor dos olhos mais clara e maiores que os exemplares homozigóticos negros. Os exemplares lobeiros provenientes desses beneficiamentos apresentavam-se mais pequenos que os lobeiros homozigóticos e mais cedo aceitavam a sua investidura policial. Quando a construção dos progenitores era maioritariamente negra, o número de cinzentos totais rondava entre 1/5 e 1/6 do total das ninhadas e quando era maioritariamente lobeira, o seu número não sofria grande alteração, porque os lobeiros proliferavam. Em ambos os casos apareciam exemplares preto-afogueados, ainda que mais cinzentos do que vermelhos nos membros. Produzimos ao todo 15 exemplares cinzentos uniformes (totalmente azuis) e nunca operámos qualquer beneficiamento entre eles. Sobrevive até hoje um exemplar desses em Vale de Adares, no Restaurante O Moleiro, na estrada que vai da Lourinhã para Peniche. Dele são algumas das fotos que ilustram este texto.

Cabe agora ao nosso aluno Eduardo Santos, a viver temporariamente em França e agora de férias em Portugal, aceitar a tarefa sem nenhuma incumbência da nossa parte, porque voluntariamente se dispôs a procurar e a reproduzir cães totalmente azuis, tendo já encetado alguns contactos com criadores ingleses e franceses, porque entre nós o factor está a desaparecer e sentimos que já fizemos a nossa parte. Há que dar o lugar aos novos! O cão totalmente azul proveniente do preto é um cão fantasma, alguém que aparece quando menos se espera, que tem um raro sentido policial e que é duma lealdade inquestionável. Sem a contribuição dos lobeiros já há muito teriam desaparecido os cinzentos, cães raros que unem a raça desde os seus primórdios até aos nossos dias.

Intuição, capacidade de sacrifício e apego à erudição

Há quem julgue que um candidato a adestrador deva ser um trinca-fortes, um flautista de Hamelin, um valentão das dúzias, um mago ou bad boy. Dependendo das expectativas de quem selecciona, alguns candidatos ver-se-ão sujeitos a cerimónias iniciáticas próximas do final dos tempos, vistas na ficção e desafortunadamente tornadas realidade. Independentemente do perfil psicológico de cada um, que necessitará de se adequar à técnica e arte do adestramento, três qualidades devem ser procuradas entre os candidatos para agilizar a sua formação, rentabilizar o investimento e trazer benefícios para a cinotecnia. São elas: a intuição, a capacidade de sacrifício e o apego à erudição, porque ainda que o treino canino seja um trabalho oficinal, ele não é para malhar ferro, ser encarado de ânimo leve ou ser separado do avanço científico. Estas qualidades raras são genéticas e podem despontar sem qualquer contacto prévio, surpreendendo inclusive os indivíduos seus portadores. Sim, nasce-se ou não para o adestramento, muito embora alguns permanecem nele forçados por outras condições, entupindo assim a paixão que nos une aos cães e condenando-os ao subaproveitamento.

A intuição que reclamamos é aquela que leva o indivíduo a “adivinhar” aquilo que poderá acontecer, um acto do conhecimento que o leva à apreensão dum objecto de forma directa e imediata, geralmente inconsciente, alheio ao raciocínio simples e desprovido dos favores da prática, do tipo 3 como alguns a classificariam, uma vez que ela possibilita a resolução de um problema complexo sem o recurso o raciocínio. Desconhecemos se essa intuição é um processo divino ou paranormal, mas sabemos que ela existe e é necessária à comunicação interespécies, estabelecendo a diferença gradativa entre os adestradores de acordo com as respostas afirmativas dos cães. Esse dom parece-nos genético e prefigura-se instintivo, lembra a telepatia, ultrapassa a regra, abrange um novo capítulo da antrozoologia e possibilita a constituição binomial automática, sendo geralmente subentendido como vocação. Ainda que muitos falem para os cães, somente alguns obterão deles resposta, factor dependente da reciprocidade que leva à identificação mútua sem o concurso do condicionamento (coercivo, indutivo ou persuasivo). Os indivíduos portadores desta excelente característica, porque a receberam gratuitamente e sem qualquer esforço da sua parte, não são competitivos, são naturalmente desleixados e tendem a desusá-la, desaproveitando assim o muito que lhes foi dado. Poucos permanecerão no adestramento e cedo partirão à procura doutros encontros, inter pares e na procura de um estatuto próprio. Os que ficam irão necessitar da constância de desafios como estímulo. No adestramento, a sublimidade desta característica individual é estéril sem o contributo da capacidade de sacrifício e do apego à erudição, necessários ao crescimento do indivíduo e à transmissão dos seus conhecimentos.

A capacidade de sacrifício que adiantamos pode ser aqui entendida, num âmbito mais vasto, como espírito de sacrifício, atendendo à relação causa-efeito, uma capacidade que nos leva aceitar, aqui e agora, momentos ou ocasiões desagradáveis no treino, em função de uma meta ou objectivo posteriores, que reputamos mais valiosos. As limitações do adestrador colocam-no sempre aquém do seu desejo, do seu sentimento e do seu pensamento. Por isso essa capacidade de se dividir, temporalmente, entre um objectivo posterior e uma meta deficitária anterior é-lhe co-natural, necessita de ser desenvolvida e exercitada, atendendo também ao particular dos alunos e às suas dificuldades apreensíveis. Saber lidar com as contrariedades e não desanimar, suportar os erros e encontrar soluções, incentivar perante o descalabro, confiar nas vitórias e nunca esmorecer, são manifestações inequívocas da capacidade de sacrifício, uma tarefa didáctica que o treino exige aos adestradores. Como adestrar é tratar com pessoas, importa estar preparado, porque elas não apresentam grandes dificuldades na identificação das suas fraquezas, mas têm dificuldade em aceitá-las e em levá-las de vencida, o que lhes causa transtorno, lança-nos no embaraço e prejudica de sobremaneira o rendimento das classes. O bom adestrador é aquele que, a despeito da sua simpatia pessoal, consegue criar empatia com todos os seus instruendos, formando um discipulado caracterizado pela força do colectivo e pela ajuda mútua. A maioria dos adestradores da nossa praça sobrevive pela sua capacidade de sacrifício, colmatando dessa forma a ausência duma intuição inata, vale pela parceria e vai adiante pela simpatia, ainda que os cães pouco evoluam, porque importa que os condutores se sintam bem e reconheçam a amizade que lhes é oferecida. A intuição define o mestre e o espírito de sacrifício a camaradagem, a primeira vale aos cães e a segunda socorre os donos. Disponibilidade é a palavra de ordem e há que fazer de tudo para todos.

A ausência de um verdadeiro apego à erudição é a pior das lacunas que pode afectar um adestrador, porque acabará ultrapassado e sufocado pelas suas rotinas, já que o mundo é feito de mudança e o nosso corre a uma velocidade vertiginosa (a evolução tecnológica é tal que os homens têm dificuldade em adaptar-se). O adestramento é uma arte sujeita ao avanço científico e à novidade das técnicas que ele oferece, o que obriga os seus agentes à actualização constante e à procura de novos subsídios pedagógicos. A verdadeira erudição consiste na simplicidade de processos que torna possível o apetrechamento de todos os binómios. Para que isso aconteça é necessário que o adestrador aprofunde os seus conhecimentos, melhor se instrua e aumente o seu leque cultural, actualização que garantirá a sua prestação enquanto agente de ensino. São muitas as ciências e artes que concorrem para a antrozoologia e ela não deverá ser separada do treino canino propriamente dito, porque o subsidia, mantém e induz à inovação. Erram aqueles maus adestradores que saltitam de método em método e que nunca chegam a dominar nenhum, porque a erudição vem do saber adquirido e avança para o seu aprofundamento. O adestrador deve dedicar a sua vida à investigação, a perscrutar novos subsídios de ensino que tornem o treino mais apetecível para os cães e mais simples para os donos. Em síntese, a intuição abre-lhe o caminho, a capacidade de sacrifício lima-lhe as arestas e a erudição levá-lo-á para mais longe.

Para não ficar com a batata quente na mão

Se porventura aceitar ficar com o cão de outrem, por amizade ao dono e apego ao animal, convém que saiba o que exigir do seu proprietário, para que a estadia do bicho não se transforme num “passar da batata quente” e venha a transformar-se num quebra-cabeças para si. Se a estadia do cão for até 15 dias e a ração em uso na sua casa for diferente daquela que o animal está acostumado a comer, é de todo conveniente que o dono do cão, ao entregá-lo, o faça acompanhar da ração em uso na sua casa, porque a mudança de penso pode implicar em distúrbios intestinais e sempre obriga a uma transição gradual, coisa dispensável em tão curto espaço de tempo e que se repetiria no retorno do cão a casa. Solicite e tome posse da caderneta de vacinas do animal, certifique-se se as vacinas estão em dia e que o cão se encontra desparasitado. Tome nota do número de telefone do seu veterinário assistente, nomeadamente aquele que ele disponibiliza para as urgências. Inquira acerca dos hábitos do bicho e tente não os alterar, porque as mudanças drásticas dificultam a sua adaptação, obrigam-no à suspeita e podem torná-lo infeliz. Considerando a ausência dos donos, a novidade do território e a territorialidade canina, é obrigatório que o cão seja acompanhado pelos pertences do seu quotidiano (cama, manta, brinquedos, etc.), suavizando dessa forma a sua estadia. O contacto com outros cães residentes deve ser acautelado, porque para eles é um intruso e encontra-se fragilizado, situação que pode impedir a sua auto-defesa. A melhor das estadias é aquela que garante o status original do cão. Por vezes, para vergonha dos donos, os cães acabam melhor tratados no hotel do que nas suas próprias casas. Antes de aceitar o animal, verifique se tem condições para tal: um ambiente acolhedor e apropriado, disponibilidade para o acompanhar e fazê-lo feliz.

Ganhar a autoridade para não perder o cão

Tudo no treino visa o reforço da autoridade do dono, seja qual for a disciplina a ministrar, a especialidade a desenvolver ou a complementaridade a procurar. É para isso que ele serve! Tornar um cão obediente ou apetrechá-lo para determinado serviço ou função, só é expectável pelo exercício pleno da liderança activa. Compreende-se assim a razão que nos leva a considerar a disciplina de obediência como nuclear em qualquer especialidade canina, por menos visível que ela seja ou maior que seja a autonomia a dar aos cães, porque o dono sempre será o emissor das ordens. A meta crucial no adestramento é o alcance da autoridade e o objectivo é não perder o cão. Entendemos que há perca quando a salvaguarda do animal corre sério risco, o seu controle não é viável, acontece o seu desaproveitamento ou se despreza as suas mais-valias. A defesa dos direitos do animal, o avanço da etologia, o contributo da didáctica e a transferência dos mais elementares princípios pedagógicos, mudaram e suavizaram o modo mas não alteraram o propósito – o adestramento continua o mesmo (como o próprio nome indica: uma acção reflexa). Independentemente da disciplina maioritária escolhida ou da estratégica assumida, considerando o particular biológico de cada animal, a sua idade, propensão, destino ou grau de desenvolvimento, o reforço da autoridade é-lhes intrínseco e garante o bom andamento do processo pedagógico. Qualquer exercício escolar, ainda que de modo dissimulado, muitas vezes imperceptível para os líderes e longe da percepção dos cães, deve contribuir para o alcance da liderança. Atendendo aos vínculos afectivos presentes no adestramento entre cães e homens, realçados pela cumplicidade, não é fácil abraçar a autoridade, porque os donos podem não ter qualquer propensão para isso e os cães naturalmente resistem-lhe. Cabe ao adestrador persuadi-los para tal, através dos exercícios propostos no do seu Plano de Aula, que deverão ser de fácil obtenção para os donos e do agrado dos cães, por recompensa directa ou evidente. Todo e qualquer método é inválido sem a estratégia que o sustenta, ainda que o modo seja sobejamente mais visível, porque o agrado sentimental tende a esquecer-se dos bons ofícios do raciocínio. A salvaguarda dos cães deve pressupor o ganho da autoridade pelos donos, investidura oferecida pelo treino e que acontece previamente na cabeça do adestrador, porque apesar de todos quererem o mesmo, muitos deles não chegarão lá sem ajuda. Por isso se diz ser o adestrador um estratega, um estudioso de homens e cães.

Caderno de ensino: XXI. O "escavar"

Fazer buracos é uma actividade típica dos cães e quase comum a todos eles. Talvez o acto seja atávico, já que alguns enterram sobras de alimentos, ocultam brinquedos ou procuram pequenos animais. A experiência ensinou-nos que esse escavar deve ser aproveitado e estimulado, tornando-se indispensável ao Salvamento, ao Resgate e às Manobras de Evasão. Consideram-se Manobras de Evasão as desenvolvidas pelos cães afim de se soltarem, quando roubados, raptados, ludibriados ou encarcerados e intentam voltar para casa. O ensino do “escavar” é fácil porque resulta do aproveitamento de uma resposta natural. Porém, a acção precisa de ser codificada e ter um comando próprio, porque só assim se poderá transitar da sua origem instintiva para o seu aproveitamento, o que muito valerá aos cães e ao socorro dos donos, pressupondo a sobrevivência de ambos. Começamos por enterrar um brinquedo e solicitamos ao cão que o desenterre, juntando de imediato o comando inerente à acção. Depois da assimilação do comando, quando o cão já escavar debaixo de ordem e desnecessitar da ocultação de qualquer objecto, aqui compensado pelo recurso à recompensa, evoluiremos dos pisos mais soltos para os mais duros até à construção de um túnel de evasão. É desejável iniciar este trabalho nas areias fluviais ou marítimas, porque se torna mais fácil e os cães vivem da experiência adquirida. O “escavar”, quando associado aos vários subsídios direccionais, possibilitará, para além da libertação do cão e do resgate do dono, acções binomiais típicas de outras áreas que o adestramento clássico não dispensa. Considerando a presença da claustrofobia nalguns indivíduos, raças ou grupos somáticos, é de todo conveniente que o ultrapassar de túneis e mangas anteceda a acção de escavar.

Caderno de ensino: XXII. O "corta"

O “corta” é outro automatismo próprio das Manobras de Evasão, de importância igual ao “escavar” mas de obtenção mais difícil, apesar de resultar de um estímulo natural, considerando os diferentes perfis psicológicos caninos, porque quem mal usa a boca para comer, dificilmente usará os dentes para outra coisa qualquer. Os cães que costumeiramente cortam e retraçam os brinquedos perspectivam uma propensão inata para a aprovação neste automatismo. O “corta” consiste no cortar de uma corda, que vai aumentando de volume de acordo com a satisfação do exercício, de modo gradual e respeitando-se o intervalo entre a pausa e o trabalho, porque a saturação do cão não serve os nossos interesses e leva-o a desistir da acção. Começamos por um pedaço de corda esticada, rígida e com 2 mm de espessura, que colocamos sobre os dentes molares do cão, incentivando-o de imediato ao seu corte. O trabalho é espaçado e demora alguns dias por causa da adaptação a que obriga. Mais tarde o cão cortará cordas com um diâmetro de 3 cm, aprenderá a soltar-se e a soltar o dono. O teste final para a aprovação no comando incidirá sobre a libertação do dono, que atado de pés e mãos numa cadeira, ordenará ao cão que o liberte, cortando as cordas que o mantêm cativo. O “corta” contribui para o aumento da força de mordedura, possibilitando dessa forma o reboque e o resgate de utensílios mais pesados. É obrigatório contrariar a tendência canina e usá-la só para fim útil, porque sem condicionamento o cão poderá vir a morrer electrocutado. Quando o “corta” não resolver e importar eliminar um obstáculo à frente, usaremos o comando de “retraça”, automatismo de que falaremos na próxima edição.

Na senda dos simulacros

Este fim-de-semana variámos as nossas actividades, evoluímos em diferentes terrenos e procurámos diferentes capacitações, na procura de simulacros que garantam a melhor prestação canina. Foi com alegria que recebemos o nosso amigo Francisco Soares, companheiro de longa data e pessoa interessada no nosso desenvolvimento. O Rui Coito mostrou potencialidades ao trabalhar a Shara e o Carlos Veríssimo participou nos nossos trabalhos. O Francisco Marques tornou-se líder do Nick em substituição do seu irmão mais velho. A Ana Pinto e o Rui Ribeiro não se fizeram presentes e a Clara encontra-se de férias com os seus Pestanudos. O Eduardo Santos ainda não participou em qualquer sessão de trabalhos, porque se encontra lesionado. A Joana Moura esteve ausente porque foi melhorar o seu inglês para Inglaterra e o Bruno Carreiro não compareceu por imperativos profissionais, sociais ou emocionais.

Participaram nos trabalhos os seguintes binómios: Bruno II/Iris, Carla Abreu/Becky, Carlos Veríssimo/Tot, Célia/Igor, Francisco/Iris, Francisco Marques/Nick, Francisco Soares/Lady, Isabel Silva/Luna, Irina/Max, João Moura/Bonnie, Liliana/Bolt, Princesa/Pipo, Roberto/Turco, Rodrigo/Tarkan, Rui Couto/Shara, Tiago Sane e Victor Hugo/Yoshi.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

A morte do líder e a sorte do cão

Normalmente as amizades entre os binómios e o adestrador cessam com o desaparecimento dos cães e duram em média uma dúzia de anos. Podem durar mais, se os condutores adquirirem outros cães e se propuserem a treiná-los. Excepcionalmente um pequeno grupo de alunos manterá por mais tempo as suas ligações à escola e ao seu staff, dando seguimento aos vínculos afectivos decorrentes do treino. Somente dois ou três indivíduos permanecerão para sempre e incondicionalmente ao nosso lado, interessados no nosso trabalho e preocupados com o nosso bem-estar. Este é panorama corrente, mas por vezes, em escassas ocasiões, ele é alterado abruptamente pela morte súbita de um condutor, situação delicada para a sua família e que influirá directamente na sorte do cão: o que fazer com ele? O assunto é do interesse geral e esporadicamente repete-se, porque nem todos conseguem, por mais tempo, ludibriar a morte que a ninguém poupa.

Lá pelas Américas, onde o pragmatismo impera e tudo é calculado, há quem manifeste e contemple os seus cães por via testamentária, garantindo dessa forma a sua protecção e sobrevivência, entregando-os à tutela de gente confiável que será generosamente gratificada para o efeito, segundo o último parecer dos seus proprietários e sob a fiscalização dos seus executores. Entre nós a situação é bem diversa, porque pensar na morte é mau agoiro e usualmente remetemos para o futuro o que não acautelámos no passado. Como já valemos a muitos e não podemos valer a todos, cada um deve reflectir e encontrar a melhor solução, caso o seu cão lhe sobreviva e se importe com o seu destino. Como parêntesis, já que estamos a falar da morte dos proprietários caninos, o que dizemos acerca dos cães é também válido para os donos, porque todos devem fazer o despiste do cancro antes de entrar na meia-idade, ainda que não manifestem queixas ou os médicos não vejam necessidade disso.

Segundo nos informaram, à luz do Direito Português, o cão não tem personalidade jurídica (tal qual um prédio, um frigorífico ou uma cadeira), logo não pode ser constituído herdeiro, mas pode constituir-se num legado com encargos, ser confiado a alguém que, uma vez abonado para o efeito e grato pela nomeação, garanta o seu suprimento e bem-estar diante dos testamenteiros, e isso pode ser lavrado. Esta é a opção que aconselhamos pra todos, quando tal for exequível, porque promessas leva-as o vento e importa salvaguardar os cães. Na prática já muita gente procede assim, mas os desejos de alguns não serão cumpridos, porque não o deixaram escrito, acabando por sujeitar os seus cães a outro tipo de sorte, de acordo com o aforismo: “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.

Sabendo o que fazer, importa escolher a pessoa ou instituição certas, para que o logro não aconteça e o cão se constituía em vítima. Convém escolher uma pessoa que já conheça o animal e que nutra por ele manifesto afecto, alguém amigo do dono e do agrado do cão, são de princípios e fiel aos compromissos, que dará seguimento e manterá a sua qualidade de vida. Não deverá ser alguém atribulado por problemas económicos ou massacrado pela indisponibilidade, porque o cão sofrerá com a impropriedade do seu penso diário, irá necessitar de maiores cuidados e reclamará a cumplicidade que suporta o seu viver social. A nossa escolha não deverá recair sobre indivíduos jovens ou idosos, porque os primeiros são vulneráveis às mudanças e os segundos têm os seus dias encurtados. Se o cão for destinado a uma família, é conveniente que esta seja dominada pela harmonia e coesão que garantam a unidade de propósitos e o mesmo empenho pelo animal. Pode confiar-se o cão ao veterinário? Pode, desde que ele queira e lhe sobre tempo, porque a morte do dono dificilmente será esquecida e o animal necessitará de maior atenção, de uma readaptação que não será fácil, que poderá demorar ou não ter tempo para acontecer.

Quem estará vivo amanhã, prá semana, no próximo ano? Ninguém sabe! Por causa disso há que acautelar o futuro dos nossos cães, evitando-se assim a solução espartana que justifica a morte dos dois pela perca de um, solução usual e modelo cómodo, manifestação inequívoca do pior especicismo. Se fomos buscar o cão para chegar aonde não alcançaríamos, para quê encurtar-lhe o passo? Será que o facto de sermos escravos da morte nos obriga também a ser carrascos dos cães? Num mundo sem pirâmides é absurdo abraçar soluções faraónicas! Nada levamos para a cova, mas podemos deixar, por mais algum tempo, um pouco do melhor que houve em nós. À parte disso, os cães merecem-no!