domingo, 14 de novembro de 2010

A trela é uma arma

Não queremos aqui plagiar os ditos cantores de intervenção e um tema que lhes foi querido: “A canção é uma arma”, mas promover a defesa daqueles que rotineiramente saiem à rua com o seu cão e que temem pela sua segurança, despreparados, distantes das câmaras, de um policiamento eficaz e em horas passíveis de maus encontros, face ao aumento da criminalidade urbana e à inevitável instabilidade social que se agiganta. Os jovens de hoje já não tiveram a felicidade de brincar na rua, as nossas crianças idem, o que lhes dificulta a sua segurança, a defesa sua da integridade e a dos seus pertences, nem que seja a de um simples par de ténis. Diante de tal cenário e contrariando os mais optimistas, a ideia geral é: levem tudo mas não nos façam mal! Atendendo à situação ainda bem que assim é! Até à década de 70 do século passado (parece que foi ontem para os mais maduros e uma eternidade para os mais jovens), era comum ver-se pelas ruas e em todos os bairros bandos de crianças à solta: “índios e cow-boys”, “polícias e ladrões”, “portugueses e espanhóis”, heróis bravamente empenhados na liça e sempre atrasados para o jantar. No olho da rua todos aprendiam a defender-se, a juntar-se ao seu grupo e a ripostar as incursões dos bandos rivais. Qualquer jogo podia acabar “à pêra” ou à pedrada e raros eram aqueles que se iam queixar para casa, porque ainda apanhavam mais. As medalhas eram ganhas com nódoas negras e ocasionalmente alguém partia a cabeça. Coisas de miúdos! - Diziam os mais velhos. Hoje as ruas são doutros índios, de ladrões autênticos e doutros que nem espanhóis são! Dos cow-boys não há memória, ser polícia é ingrato e os portugueses passaram à história (acoitam--se em casa).

Quem passeia ao romper da aurora e ao lusco-fusco quando os polícias de turno são recolhidos e quando todos vão prà cama? Quem vagueia por locais ermos e por vielas ignotas? Certamente os proprietários caninos, gente que trabalha durante o dia e que se vê a braços com o repúdio geral, plebe segregada e sujeita a uma catrefa de proibições, cidadãos indefesos por força das circunstâncias, o que tem levado muitos ao abandono da excursão diária e ao borrar consentido dos animais dentro de casa, pois se para certa casta de marginais o cão é um entrave, para outros ele será o melhor dos pretextos, considerando o seu à vontade e a tradicional inoperância defensiva dos cães familiares, mais carentes de protecção e menos dados a desafios.

Quem já combateu na rua sabe da importância do elemento surpresa e da vantagem de quem dá primeiro, que o perigo sempre espreita e da necessidade das costas também verem. Passear na selva urbana é uma opção arriscada e obriga a todos os cuidados, porque os meliantes aguardam ocasião e têm grande predilecção por gente distraída, não são exigentes no furto e qualquer coisa lhes serve de ganho, apesar de violentos e isentos de maiores escrúpulos. Quando passear ao romper da aurora procure circular junto das áreas mais movimentadas (estações de comboios, paragens de autocarro, postos de combustíveis, livrarias, quiosques, cafés, etc.), evite as estradas desertas, os locais de difícil acesso e as azinhagas mal iluminadas. À noite respeite as mesmas condições e evite as zonas densamente arborizadas, porque são excelentes locais de ocultação para quem se serve das embocadas. É de todo recomendável que saia de casa acompanhado por algum familiar ou por outros condutores de cães. Evite o cruzamento próximo com vielas escuras, porque não sabe o que o espera pra lá da esquina, abandone o passeio e passe para o lado contrário, o que lhe dará mais tempo para agir e obrigará o embuçado a mostrar-se, manobra de que não se agradará. Também nos cruzamentos evite circular com o seu cão “à frente”, para que o criminoso não se entreponha entre si e o seu companheiro, dificultando desse modo a defesa de ambos. Saia com o seu cão à rua debaixo do comando de “atenção” e varie sistematicamente os passeios. Se algum desconhecido lhe perguntar se o cão morde, não se faça rogado, peça-lhe que se afaste e diga-lhe que o danado até morde nas estrelas, mesmo que isso não corresponda à verdade, porque tal poderá evitar o assalto imediato ou à posteriori. Ensine o seu cão a ladrar e peça-lhe que o faça diante de indivíduos suspeitos ou de intenções duvidosas, porque o ladrar é um aviso e ninguém sabe quando passará à ameaça. Não estoire o animal e deixe-o recuperar em zonas seguras, pois poderá vir a precisar da sua ajuda para o socorro de ambos. Acostume o animal a refrescar-se somente em casa e não consinta que ele se afaste da sua vista quando intentar defecar, pois pode acabar ludibriado e facilitar o seu assalto. Estas são algumas medidas preventivas para evitar confrontações indesejáveis, lamentáveis escaramuças onde só perde quem tem e quando menos se espera.

Acautelando a possível confrontação, infortúnio que abominamos e queremos evitar a todo o custo, é desejável que o binómio se encontre em maioria e que você se sirva do cão como escudo e da trela como lança, desde que o assaltante não venha munido de arma de fogo. O cão já deverá saber defender-se e contra-atacar, para poder ser solto e evitar assim o manietar do dono. A trela possibilita diferentes movimentos e acções, evoluções circulares de diversas combinações que projectam golpes bastante contundentes, quando usada como funda e dardo constantes ou como matraca, o que dificultará a abordagem do assaltante, a braços com o cão e sujeito e sujeito a contra golpes. O conjunto do fecho com o remate da trela, e estamos a referir-nos aquela que usamos, pesa sensivelmente 300 g, podendo atingir velocidades entre os 90 e os 135 km/h e alcançar forças de impacto entre os 27 e os 40.5 kg, dependendo isso da aceleração imprimida (se 2 ou 3 voltas por segundo), o que poderá ser letal ou colocar o agressor KO diante da certeza de algum golpe. A trela deverá trabalhar como reforço das acções caninas atingindo o assaltante noutras zonas do seu corpo, o que dificultará deveras a sua defesa, porque se agarrar a trela não se poderá defender das arremetidas do nosso companheiro. Nunca se deverá perder a trela para o assaltante, porque ao munir-se dela poderá neutralizar os ataques do cão e causar-nos igual dolo. Neste caso, de imediato e para além do incentivo a dar ao animal, seremos obrigados ao confronto físico e à luta corpo-a-corpo, usando para isso os pés e as mãos, estímulos que o cão bem aproveita e que reforçam o seu instinto de presa.

Qualquer confronto exige uma predisposição inata, uma preparação prévia e sangue frio, condições para muitos inalcançáveis ainda que em sonhos as desejassem. Diz-se que a necessidade aguça o engenho, que determinada cultura banaliza acções que outras culturas não alcançam e que a experiência tende a vencer os obstáculos seus conhecidos. Já vimos casos em que isso aconteceu e lamentavelmente muitos mais onde tal não se verificou. No entanto, considerando os possíveis ataques à sobrevivência dos proprietários caninos, aconselhamos que adquiram técnicas de defesa pessoal, subsídios que lhes garantam a defesa da sua integridade, muito embora a sabedoria possa desarmar os intentos de uns tantos, sendo por isso mesmo a melhor arma, porque trabalha por antecipação e produz o desconserto alheio, apesar da absorção do conceito não se propagar à prática na cabeça de muitos, fenómeno justificado pela sua individualidade. E porque não podemos ficar de braços cruzados e entregar ao fado todos os infortúnios, treinamos a defesa com a trela nas diferentes induções que praticamos, tendo o cuidado de proteger as cobaias. A trela é e pode ser uma arma, tal qual uma moeda ou um simples pente, o que a torna eficaz é o seu uso acertado, o que nos remeterá para a mecanicidade das acções, sem contudo desaconselharmos a procura de qualquer confronto, até porque qualquer ataque é inválido se desconsiderar o contra-ataque e qualquer arma levará ao surgimento de uma contra-arma. Diante disto, a prevenção será sempre a escolha mais acertada.

O cão ioiô

Chama-se “cão ioiô” ao guardião que produz ataques de surtida e que de pronto, sem ordem de cessação, os abandona e regressa ao seu território. O fenómeno é típico dos cães defensivos e é mais comum entre as cadelas, mas também pode resultar da impropriedade da liderança, já que o cão se refugia por não encontrar apoio e desconsiderar ou temer a liderança. Todos os donos que apenas felicitam os seus cães pela aceitação da repressão não podem esperar deles grandes momentos de explosão, porque os animais partem inseguros e aguardam a repreensão. O travamento exagerado produz destas coisas e a inibição é o melhor dos antídotos contra os poucos instintos visíveis nos cães. Que cão chegará aos ataques superiores se desde cedo se viu privado de saltar para o dono, por lhe sujar a roupa ou ser inconveniente?

O cão que corre sem lebre à frente

Todo e qualquer condicionamento canino não dispensam um dono incondicional e será a disponibilidade humana que definirá a qualidade do adestramento a acontecer. Quando um cão evolui para além da qualidade do seu instrutor, isso deve-se ao acerto eugénico do seu criador, aos pressupostos selectivos e à carga genética do cão. Ao invés, a acontecer a supremacia do peso ambiental sobre o pendor genético, isso ficar-se-á a dever ao conserto emocional fornecido pela afectividade enquanto terapia. A haver incompatibilidade binomial nos processos educativos, quando se assiste a um desgastante duelo de vontades, para além das insuficiências, incapacidades ou dificuldades a atribuir aos cães, fala mais alto o despropósito da liderança, por desacerto nos estímulos, despreparo emocional, desacompanhamento objectivo, ignorância e desconsideração do particular do indivíduo canino. Os métodos a utilizar podem suavizar o relacionamento, mas jamais poderão substituir a afectividade que estabelece a genuína unidade de propósitos. Nenhum cão corre sem lebre à frente e todos procuram um prémio, a parte que lhes toca e o agrado do dono, o espólio e a aceitação social. Sabedores que a afectividade vem pelo trato e pelos momentos divididos, debaixo da nossa supervisão, prolongamos as lições e as actividades escolares, para que os cães passem mais tempo acompanhados e menos sujeitos ao isolamento, mais tempo na escola e menos tempo no canil.

O que é um bom aluno da escola?

Esta é uma pergunta que poucos alunos equacionam, mas que nenhum adestrador poderá desconsiderar diante da continuidade da sua escola. Um bom aluno será certamente um bom praticante, alguém com um bom índice de progresso e um colaborador solícito, um elemento pronto a ajudar que zela pelo bom andamento das classes. Até aqui toda a gente chega, mas será que não deverá ir para além disso? De que valerá esse diamante se não for visto e apreciado por outros, se não suscitar deles o desejo da mesma prática, o ensejo da mesma mestria e ser um recrutador? Fazer dos desaparecidos santos e dos mortos percas irreparáveis é fácil, veja-se o exemplo do “homem do adeus” que hoje faleceu, um cidadão que acenava aos automobilistas durante a noite entre as Picoas e o Saldanha. Um bom aluno escolar é aquele que projecta o bom-nome da escola e que tudo faz para que outros lá cheguem, muitas vezes a despeito das suas mais-valias técnicas. Quando tal não acontece e os alunos procedem de modo diverso, muitas vezes por causa de entraves sociais que lhe são próprios, só resta à escola sair para o exterior, carregar os alunos consigo e transformá-los em produto apetecível.

Novo binómio

Deu entrada nas nossas fileiras no dia 7 do corrente mês um novo binómio, o constituído pela Leonor Machado e pelo Blitz. Segundo o que nos fizeram saber, o Blitz é criação da Quinta de Salomão em Águeda e é filho do CPA Timmy von Burbacher-Bruch, um cão oriundo de Espanha, isento de displasia e averbado com B.H. e RCI III. À parte disso, pouco mais tem do que um ano de idade, é um cão simpático, afectuoso e alegre, portador de uma cabeça negra e de pêlo comprido. Desejamos para o binómio um excelente aproveitamento e manifestamos aqui o nosso bem-vindo.

Caderno de ensino: XXXVII. O ladra

Condicionar um cão a ladrar é tão-somente aproveitar uma das suas vozes naturais, muito embora existam raças que ladrem mais do que outras. Podemos fazê-lo por aproveitamento, instigação ou persuasão de acordo com as características individuais de cada cão. O que se procura é o ladrar ordenado e não o instintivo, considerando a sobrevivência dos cães, o uso a dar-lhes e a salvaguarda binomial. Convém que o comando transite para a linguagem gestual e seja accionado por ela, o que impedirá a denúncia do binómio e possibilitará o uso do cão à distância. O ladrar é naturalmente uma voz de aviso que antecede o rosnar, que tanto o pode substituir como eliminar. Ensinar os cães mais submissos a ladrar é um requisito indispensável e um subsídio para a vida, considerando a sua ajuda ou socorro, porque o ladrar soa mais alto que o vulgar gemido. E neste sentido, fomentar o ladrar irá implicar num melhor equilíbrio dos indivíduos. Por outro lado e servindo o mesmo propósito, também os donos dos cães agressivos saiem a ganhar, porque vêem aumentado o seu controlo sobre eles, evitando assim a transição automática do rosnar para o ataque. Para além do aviso, o ladrar pode ser usado como intimidação tanto dentro do lar quanto nas saídas ao exterior. Diante das actuais especificações caninas o ladrar tem vindo a ser usado como sinal de identificação ou detecção.

Mais do mesmo e menos do mais

Trabalhámos estes fim-de-semana as diferentes disciplinas cinotécnicas que ensinamos. Alguns alunos continuam com dificuldades na obtenção do “quieto”, mais por culpa própria do que pelas dificuldades apresentadas pelos seus cães, já que alguns só se lembram dos animais na hora do treino, o que não deixa de ser uma atroz violência., porque nenhuma desculpa invalida o compromisso voluntário assumido com os cães. A postura que aqui condenamos acaba por condenar o rendimento das classes e saturar os alunos mais aplicados, o que é compreensível atendendo a justeza dos seus propósitos. Participaram nos trabalhos os seguintes binómios: António/Shadow, Carla Ferreira/Dirka, Célia/Igor, Francisco/Nick, Joana/Flikke, João Moura/Bonnie, Joaquim/Maggie, Leonor/Blitz, Luis Leal/Rocky e Teka I, Megan/Champ, Patrícia/Boneca, Rodrigo/Tarkan, Teresa/Buster, Tiago/Sane e Vitor Hugo/Yoshi. Os NE’s Fátima Figueiredo, Olga Oliveira e Rui Coito participaram também nos trabalhos.

sábado, 6 de novembro de 2010

E já agora, porque não construir o 1º lupino português?

Agora que a hibridação parece ter vindo para ficar, muito se tem falado sobre uma nova tendência, a do cruzamento do Pastor Alemão com o Malinois, bastardia que muitos julgam excelente e outros miraculosa, a despeito das raças e em prol de pretensos benefícios, como se o alemão precisasse de maior inquietude e o belga de mais juízo, o primeiro de maior instinto e o segundo de melhor personalidade. Ainda não sabemos se a ideia terá muitos adeptos ou se fica pelo desejo, porque o mundo é feito de mudança e altera-se a olhos vistos. A incontestada supremacia laboral dos lupinos dentro da canicultura levou muitos países à formação de um cão nacional com essas características. Assim nasceram os Pastores Holandeses, o Lobo Checo, o Lobo Italiano, O Pastor de Shiloh, entre tantos outros. Agora que em Portugal a investigação científica começa a dar mostras da sua credibilidade, havendo por cá excelentes genetistas ou geneticistas, etólogos desempregados e treinadores credíveis, porque não construir o 1º lupino português? A raça nacional mais próxima deste grupo somático é o Cão de Castro Laboreiro, um lupóide amastinado, mais mastim e menos lupóide à medida que o tempo passa. No passado recente alguém tentou fazê-lo, lançando mão do Pastor Alemão e do Podengo Gigante, o projecto não passou da fase embrionária, foi inconclusivo e bem depressa foi abandonado, porque foi feito às expensas de um canil e sem qualquer subsídio. Sabemos como fazer e temos gente para isso, não nos falta mercado interno e podemos chegar à exportação, O que será melhor para todos: andar constantemente a comprar ou ter algo valioso para vender? Este é um desafio para os novos canicultores, a canicultura nacional agradece e o País só tem a ganhar com isso. Continuaremos eternamente a andar com cães alheios?

A queda da liderança e a ascensão do condicionamento

Desde o último quarto do Sec. XX até aos nossos dias a canicultura e a cinotecnia sofreram profundas alterações tanto nos pressupostos selectivos quanto nos métodos de treino, mudanças que resultaram do avanço científico, do questionamento social, de uma menor exigência, de uma maior sensibilidade e também da banalização dos cães. O passar dos anos levou à inevitável troca de gerações e nalguns casos ao rompimento entre a ancestral cinecultura e a actual, criando vazios pela reinvenção e atrasos pela ignorância, tendência comum entre nós na procura do último grito, num calcorrear de atalhos que nos leva à cópia, não fossemos um estado periférico, desnorteado e dependente de outros. A maior benfeitoria que os novos adestradores nos legaram, no meio de tantas outras, foi o condicionamento alegre e descontraído, um conjunto de regras que tenta substituir a indispensável liderança humana, tornando o uso dos cães ao alcance de todos, bem hajam!

Porém, como não há bela sem senão, a mecanicidade afectiva acabou por encobrir cães impróprios e desprezar outros de excelente qualidade, porque são mais difíceis, um pouco menos eufóricos e por vezes demasiado sérios, criando graves problemas ao facilitismo que por aqui faz escola. Por todo o lado e por onde menos se espera, existem cães à espera que os vão buscar, esquecidos em canis onde poucos ousam entrar, como se fossem feras ou monstros apocalípticos, papões de quatro patas ou habitantes do quinto dos infernos. Grande número dos actuais condutores cinotécnicos (podíamos usar outra designação), à imitação dos automobilistas, opta pelo “test drive” e procura um cão à medida das suas conveniências. Longe vão os tempos em que a escolha não era possível e o domínio do inteligente se sobrepunha às arremetidas do irracional. Hoje a palavra de ordem é incompatibilidade e partir dela se esconde o comodismo. Temos como experiência que os cães mais difíceis são invariavelmente os melhores, os menos sujeitos a subornos, os que mais se empenham e os que maior aptidão manifestam, companheiros em quem vale a pena apostar. Falta trabalho, porque os cães depois de atrelados rapidamente se submetem.

A recuperação dos medrosos

Nas andanças do adestramento há sempre um cão que nos espera, um medroso a necessitar de recuperação porque nasceu inibido ou muito-submisso, contrariamente aos da sua raça e da sua prestação, um anátema para muitos e um problema acrescido para o dono. Ao contrário dos cães que foram amedrontados, geralmente vítimas de um imprinting atabalhoado, duma má instalação doméstica ou duma liderança abusiva, cuja recuperação acontecerá sem grandes percalços pela alteração da liderança, pela promoção social e pela novidade de desafios, a recuperação dos cães geneticamente medrosos não irá ser fácil e necessitará do acerto de todos os agentes de ensino envolvidos, tanto no aconchego doméstico quando dentro do perímetro escolar.

Estes cães têm um comportamento marginal e irão obrigar a uma terapia própria e a medidas excepcionais, porque desde cedo se isolam e sujeitam-se às investidas dos seus pares. A sua extrema dependência quando associada a uma inusitada carga instintiva levá-los-á a alimentar-se debaixo de suspeita, a carreiras evasivas, à troca da defesa pelo esconderijo, ao evitar de confrontos, ao temor face à autoridade e à resistência diante da novidade. O problema é anterior à transição do canis lupus para o lupus familiaris e ao eugenismo operado pelo homem, muito embora o último tenha contribuído para a sua proliferação, porque doutro modo dificilmente estes animais sobreviveriam nas alcateias, particularmente durante estações ou ecossistemas parcos em alimentos. Apesar de definhar dentro de uma matilha, o cão medroso sentir-se-á ali mais protegido do que perante a irrecusável constituição binomial, mercê do seu particular biológico, das suas características inatas e histórico social, condições que irão dificultar excessivamente a sua futura integração.

Apesar de subsistirem casos ligados à sagacidade de quem os vende e à ignorância de quem os adquire, a maioria dos cães medrosos chegará às nossas casas por comiseração, sentimento que mais tarde poderá transformar-se numa temível decepção e perpetuar pródigos desalentos na pessoa dos seus benfeitores, porque contrariamente ao amor, as paixões são volúveis e o desânimo enfraquece. A recuperação de um cão com estas características aponta para um processo inequívoco de reeducação, só possível pela dependência canina e pela alteração do seu viver social, esforço conjunto direccionado ao despoletar condicionado dos seus impulsos herdados indispensáveis e que induzirá a um renascimento por parto ambiental. Ainda que o sucesso seja possível, sempre será mais fácil regrar um valente do que suscitar valentia a um medricas. A haver alteração, ela resultará em primeira instância do super empenho do agregado humano, esperançado e apostado na sua recuperação. Dono e demais família do lar adoptivo, adestradores, condutores e cães escolares, todos estarão implicados neste projecto colectivo que visa esta emancipação individual, enquanto arautos da esperança e artífices da mudança.

Para além do combate ao logro e porque entendemos a venda de cães como uma prestação de serviço, quando detectamos um cão medroso aconselhamos de imediato a sua aquisição pelo criador, desde que na progenitora ou nos seus progenitores tal fenómeno não seja por demais evidente, o que comprometeria seriamente o desenvolvimento salutar do cachorro, atendendo a precariedade dos seus mestres. A excessiva agressividade dos progenitores, particularmente quando descontrolada e fortemente empenhada na defesa hierárquica, também não servirá os nossos propósitos, o que nos levará a aconselhar a doação do cachorro, conselho que manteremos diante da impossibilidade, impotência ou impropriedade do seu criador. Exceptuando estes casos, é de todo desejável que a recuperação do cachorro aconteça no lar que o viu nasceu e junto daquilo e daqueles que sempre conheceu. Por outro lado, a procura conhecedora e exigente obrigará os criadores ao mesmo encargo diante de igual problema, também porque vender um cão de fraca qualidade implicará em prejuízos imediatos e duradouros, mesmo que se abandone a criação, o que não virá a impedir o emporcalhar do bom-nome desses criadores eventuais.

A doação do cachorro problemático deverá considerar a sua recuperação e bem-estar, atentar para o perfil psicológico do obsequiado (que deverá ser experiente, disponível, empenhado, tolerante e compassivo), para as condições que oferece e para a existência ou não doutros cães de que poderá ser proprietário. Como o problema tem reflexos sociais e apostamos na transcendência operativa ambiental, não descuidando o possível contributo positivo de outros cães (biológico), é desejável que o cachorro venha a conviver um cão adulto do sexo oposto, equilibrado e razoavelmente controlado, porque a recuperação de um cachorro macho acontece naturalmente pela generosidade de uma cadela adulta e uma fêmea jovem sentir-se-á segura junto de um macho decidido, imitando-o e seguindo-o por toda a parte (vai com as costas quentes). O convívio entre cadelas deverá ser evitado, particularmente após a maturidade sexual, momento em que a mais velha procurará o agrado da liderança e escorraçará a mais nova da sua presença, fortalecendo-se de sobremaneira e enfraquecendo a outra sobejamente mais carenciada de ajuda. Do mesmo modo, a amizade entre um cachorro medroso e um cão adulto será comprometida durante o cio duma cadela residente, quando o instinto sexual despoletar sem rodeios o impulso ao poder do mais velho. A coabitação do cachorro problemático com cães castrados, considerando a sua recuperação, tanto poderá ser benéfica como catastrófica, ficando isso a dever-se ao carácter desses eunucos, à ocasião da mutilação e aos seus reflexos (taras e singularidades).

Assim, coabitação no lar adoptivo com outro cão garante a celeridade do processo reeducador, particularmente no convívio canino sem o espectro da exiguidade territorial e na permanência do espaço que lhes é comum. Este entendimento biológico, quando reforçado pela cumplicidade entre o líder e cão adulto, suscitará do cachorro a competitividade que gera a brincadeira, levá-lo-á a aceitar a hierarquia de modo natural e a assimilar a liderança como uma experiência feliz., porque só o equilíbrio doméstico poderá garantir as saídas ao exterior sem maiores atropelos. Os membros do agregado familiar, enquanto elementos neutros, deverão coibir-se de dar ordens ao cachorro ou proceder-lhe a reparos, forçar a sua presença ou contribuir para o seu afastamento, o que implicaria numa despromoção social facilmente absorvida pelo infante e que comprometeria a sua desejável ascensão. A brincadeira e a distribuição de brinquedos propicia a obtenção dum espólio próprio e as crianças responsáveis podem contribuir para a eliminação do espectro da autoridade, graças à parceria, à relação de proximidade, particularidade vocal e de interesses, à menor rigidez de postura e ao reduzido volume da sua silhueta, subsídios pedagógicos de valor inestimável para a recuperação do cachorro. A constituição binomial resultará das brincadeiras divididas com o cão adulto, da contribuição do agregado familiar e da propriedade da liderança, legitimada pelo exemplo e fundamentada na cumplicidade.

Se houver necessidade de atrasar o treino escolar, coisa difícil de acontecer diante do cenário acima descrito, espera-se o tempo necessário e o surgimento da autonomia que o suporta, porque o tempo não é um obstáculo mas um amigo que corre em nosso auxílio. No treino e porque queremos aproveitar a plasticidade física e cognitiva presente nos cachorros entre os 4 e os 6 meses de idade, abraçaremos a mobilidade em desfavor do travamento, os subsídios direccionais em prejuízo dos de imobilização, insistiremos na ginástica e no “junto”, porque sabemos que o desenvolvimento físico providencia o aumento cognitivo e que a experiência variada e rica opera por equilíbrio o seu desenvolvimento. A troca gradual de condutores, as distintas manobras de sociabilização, a disciplina das classes e o exemplo dos cães mais velhos tornarão viável a recuperação quase absoluta do cachorro, sintonizando-se com a sua espécie e preparando-o para a vida entre os homens, solicitando-lhe serviços que naturalmente e por si mesmo jamais alcançaria. Nisto reside a força do amor, dínamo do adestramento, força que massifica e quantifica os sentimentos nesta exigente arte de ensinar cães.

Poderá um cachorro medroso transformar-se num autêntico cão guardião? Sim e não, se entendermos a disciplina de guarda sem subtilezas e como modo de confrontação. Sim - se os simulacros produzirem alteração, preparação e capacitação; não - diante da novidade, da surpresa e na ausência de reciclagem, porque o condicionamento não ultrapassa a experiência animal e não consegue esconder os seus entraves individuais, apesar de muitos cães com estas características poderem vir a alcançar excelentes resultados em provas, por força da ficção que se transforma em realidade. O cão genuinamente guardião nasce assim e o devidamente estimulado adquire um comportamento quase idêntico, facto que toda a gente reconhece e que recentemente vimos denunciado, mais uma vez, no opúsculo “The Downfall of the German Shepherd” da autoria de Koos Hassing, cinotécnico holandês de reconhecidos méritos desportivos, um contestador de fórmulas sem questionar a sua essência ou denunciar a sua filosofia. Aqui como noutras disciplinas e para além das características individuais de cada cão, só a experiência sustenta a soberania do condicionamento.

Para transformar um medroso num guardião é necessário revitalizar-lhe os impulsos herdados inerentes a essa prestação, activando cada um deles pelo reforço positivo e dando tempo ao progresso. A primeira meta a atingir será a do bem-estar entre iguais, depois seguir-se-á a aceitação da liderança, logo a seguir a sociabilização e finalmente as induções. Provavelmente teremos de alterar as dietas, insistir na ginástica e não desprezar a recompensa. As induções começarão por ser domésticas, evoluirão para a Escola, acontecerão noutros terrenos e revitalizar-se-ão de novo em casa, considerando a fragilidade do seu particular gregário e a resistência que oferece perante a novidade de territórios e circunstâncias. As induções recairão inicialmente sobre o objecto e nunca sobre a pessoa do agressor, por convite e não por desafio, devendo ser projectadas debaixo do mesmo estímulo e acontecer sob condições óptimas, aquelas que o cão conhece e que lhe darão a certeza da vitória. Para que o cão vá adiante é necessário que perca o medo das pessoas, que as considere ao seu alcance e sujeitas ao seu domínio, benefício que geralmente alcançamos pelo exercício do APC e pelo convite à transposição de obstáculos humanos, debaixo de subsídios direccionais amplamente repetidos até se constituírem em rotinas, porque a familiarização é um trunfo que não podemos dispensar. Os indivíduos convidados para este trabalho não deverão temer por si , tudo fazendo para que a normalidade se mantenha e o imprevisto não gere confusão ou provoque retrocesso.

Sem o contributo dos obstáculos humanos, sucessores da sociabilização e pilares da familiarização, mesmo que o cão invista tenazmente contra a manga e proceda a vários derrotes, jamais se sentirá à vontade nas arremetidas superiores, porque a proximidade da presa e a ocultação do acessório provocar-lhe-ão estranheza, não rara suspeição e a suspensão antecipada das ordens. De início, todo e qualquer estratagema empregue ou manobra escolhida deverão privilegiar a acção em detrimento do travamento, que deverá acontecer pela rendição forçada dos figurantes (por suspensão da provocação, imobilidade, queda ou rendição). A indiferença aos tiros deverá ser alcançada (já explicámos como no nº XXIX do Caderno de Ensino) e os contra-golpes a aplicar deverão sempre considerar a indiferença ou resistência do cão, porque precisa de se sentir e sair vencedor, como um predador sobre a presa e nunca o contrário. Apesar do tipo, amplitude e constância no ladrar serem de origem genética, eles irão necessitar de treino específico e de potenciação, face ao desuso costumeiro do cão e perante a premente necessidade do aviso, já que a intimidação funciona e raramente causa vítimas, o que neste caso melhor serve ao cão. Preparar um cão para provas é como adiantar a solução de um teste, porque o bicho sabe ao que vai e dificilmente será surpreendido. Prepará-lo para os desafios do quotidiano será mais árduo, porque a cada minuto emerge uma novidade e contra nós se aguça o engenho.

Sol na eira e chuva no nabal

Usámos este fim-de-semana para a aplicação prática dos conteúdos constantes no Caderno de Ensino. A chuva assustou alguns alunos e deixou outros sem telefone, incomunicáveis e sem hipótese de receberem ou devolver chamadas. A instrução decorreu em 3 locais diferentes e a chuva poupou-nos. Participaram nos trabalhos os seguintes binómios: Bruno/Iris, Célia/Igor, Francisco/Iris, Francisco/Nick, João/Flikke, João Moura/Bonnie, Joaquim/Maggie, Luis Leal/ Rocky & Teka I, Megan/Champ, Miriam/Índigo, Nuno SP/Nicky, PSPedro/Tag, Rodrigo/Tarkan, Tatiana/Teka, Tiago/Sane, Teresa/Buster e Vitor Hugo/Yoshi. Colaboram nos trabalhos os seguintes NE’s: Fátima Figueiredo, Pedro Figueiredo e Rui Coito.