Apesar de existirem por
toda a parte cães de aspecto famélico que têm como missão capturar homens, que
comem rações precárias e que são engodados em função do enterrar dos seus
dentes, tanto no treino como no desempenho das suas missões, no que lembram
lobos esfaimados, afortunadamente o seu número é muito reduzido e raramente
deles tomamos conhecimento. Não obstante, qualquer mordiscadela, dentada
acidental ou não intencional, mesmo que deferida pelo nosso cão ou por outro
que conhecemos bem, é por norma entendida como parte de um ataque canino
inequívoco, coisa que jamais aconteceria se os cães não tivessem dentes! Estes “ataques”
acidentais, em número bastante superior aos intencionais, mais resultam da ignorância
dos homens do que da genética dos animais, a mesma ignorância que é responsável
pela detenção e morte de muitos cães diariamente, que sendo histórica e
associada à cobardia, ainda perpetua uma sentença que estamos cansados de ouvir
– “Se o meu cão me morder ou a alguém dos meus, mato-o logo!”, deliberação que
os cinófobos logo aclamam e aplaudem de pé.
Nestas andanças de ”menino
para cá e menina para lá”, modo citadino, antropomórfico e paradigmático com
que muitos tratam agora os cães, endereçando-lhes uma filiação alheia que não
compreendem, nunca houve tanta ignorância relativa a estes animais, porque as
modas pegam de estaca, o vulgo resiste em informar-se e nem tão pouco tem a
experiência das gerações anteriores, as oriundas do mundo rural, que dividiam
as suas vidas e tarefas “mano-a-mano” com os cães e outros animais. Sem o
contributo dos conhecimentos erudito e empírico necessários, os ataques caninos
inusitados aumentam diária e assustadoramente à sombra de donos que, outrora
encantados, acabam profundamente surpresos e chocados. Esta situação é de um contra-senso
incomensurável diante do fácil acesso que temos hoje à informação, debilidade
que a antropologia, a psicologia e até a teologia explicam, cada qual a seu
modo, servindo-lhes a filosofia de permeio, ainda que seja a soberana política
a mandar, porque só ela consegue alcançar o apoio popular através de medidas
aparentemente favoráveis às massas.
Continua a não fazer parte
dos planos do comum proprietário canino, nem mesmo “a longo prazo”, comprar um
livrinho ou dois sobre comportamento animal, porque a sua subjectividade não
abrange tanto e anda por demais ocupado em encontrar predicados que tornam o
seu cão único, particularmente aqueles que mal interpreta e que tanto lhe podem
ser fatais como causar vítimas dentro e fora de casa. Graças à mesma “agudeza
de espírito”, que não gera outra coisa a não ser estranheza, há por aí muita
gente que compra primeiro o cão e que só depois se informa sobre a raça, também
indivíduos que isentam os seus cães de regras e que vivem em função daquelas que
são impostas pelos animais. Como resultado desta ignorância e despreparo, que
tanto exalta “encantadores”, idosos e crianças acabam por ser as vítimas
preferenciais dos cães, porque são apelativas, estão sempre à mão e oferecem
pouca resistência. Ambos acabam por estar no local e hora errados sem saber por
que razão e muitas crianças acabam no hospital com prognóstico reservado por
terem participado em “inocentes” brincadeiras com cães. Quem é que ainda não
viu pais a “empurrar” crianças para cima de cães desconhecidos e aparentemente mansos?
Na actual concepção das
coisas, os cães são todos mansos e adoráveis, jamais territoriais e
possessivos, umas angelicais criaturas que só são más por causa dos donos e dos
maus-tratos que receberam, como se não fossem caçadores (predadores) e no leque
dos seus impulsos herdados não constassem os referentes à defesa, à luta e ao
poder. Quem assim pensa e age, sujeita-se e sujeita os seus a um sem número de
arremetidas caninas, provocando involuntariamente o descontrolo dos animais, indução
que poderá levá-los a cobrar o preço de tal despropósito, sem que previamente
tenham demonstrado alguma predisposição para isso (os cães também são
surpreendidos). Estas patéticas induções, quando repetidas amiúde, ao operar a
sua potenciação, são força mais do que suficiente para transformar um cordeiro
num leão, um simples cachorrinho num cão rude, violento e anti-social, que se
julga maior que o seu tamanho real. Não estará na hora de cada um levar o seu
cão a uma escola e treiná-lo ali convenientemente, ao invés de ensinar-lhe
truques circenses e outras macacadas?
Hoje, mais do que nunca,
considerando o grande número de cães existente, o alto grau de ignorância
presente em muitos donos e o exagerado montante dos ataques caninos, o treino
deverá ser orientado para os dois - donos e cães, obrigando os primeiros a
aulas teóricas para facilitar o seu desempenho binomial, subsidiar a sua defesa
e o bem-estar alheio. Para além disto e de igual importância, ao procedermos
assim, estamos a evitar que muitos cães morram desnecessariamente, como se
fossem bestas irrecuperáveis, malévolas e sanguinárias, o que na verdade não
são. Sim, a maioria dos ataques caninos acontece por provocação humana, graças
à ignorância que nada antevê e que em simultâneo ignora o resultado das suas
acções. Sim, mais uma vez: podemos reduzir o número dos ataques caninos ao educar
os donos, já que a maior parte deles é circunstancial e não intencional, o que
nos obriga a reaprender a caminhar lado a lado com os cães.
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