Do ponto de vista laboral
um cão bom é aquele que faz disparates e não o contrário, porque a curiosidade que
leva à asneira é a mesma que induz ao acerto, ao aproveitamento e por conseguinte
à utilidade. Os bons cães fazem muitos disparates, particularmente quando
desprezados ou subaproveitados, porque são o culminar de consecutivas gerações seleccionadas
para interagir com o Homem. Assim se compreende também por que razão são os
cães de trabalho mais afectados pela ansiedade da separação que os comuns “come
e dorme”, entendidos como excelentes por não incomodarem.
E se porventura por
capricho da selecção natural, um cão sem os pergaminhos atrás citados for “demasiado”
activo e inoportuno, ao invés de vir a ser educado e aproveitado, acabará
sujeito à “pedagogia da castração” como sucede na maioria dos casos, prática que
estranhamente não tem sofrido qualquer contestação.
Entende-se na generalidade
que a ansiedade da separação é causada pelo medo que os cães têm em ficar
sozinhos, medo esse que é responsável por um sem número de disparates que
atentam contra o património dos donos, contra a saúde e bem-estar dos animais e
que causa incómodo aos vizinhos. Gostaria de adiantar que nunca vi nenhum cão
devidamente ensinado e bem integrado a comportar-se assim, mas estou farto de
ver cães mimados e sem qualquer tipo de educação a concorrerem para o “fenómeno”,
cujo número aumenta consideravelmente com os pequenos e médios cães de caça que
se enjaulam hoje nos apartamentos.
Poderá um cão não-medroso
fazer disparates idênticos na ausência dos donos? A constante ausência de
interacção poderá contribuir para um comportamento igual? A resposta é
afirmativa para as duas questões, porque o stress tanto pode apossar-se dos
cães medrosos como dos valentes e causar graves transtornos a ambos, uns pelo
temor e outros pela inactividade (interacção). Será a natureza dos protestos
que nos indiciará qual será o caso de um cão em particular.
Ainda que nos dois casos
os cães tudo façam para chamar à atenção dos donos, os medrosos tendem a acalmar-se
com a sua chegada, deixando de ladrar e abandonando a0 acções reprováveis que os
mantinham ocupados. Já os cães laborais, que obviamente reclamam por uma maior
interacção, muitos deles privados de um passeio diário digno desse nome e de
momentos de maior cumplicidade, continuarão a fazer disparates depois da chegada
dos donos. Apesar de repreendidos e punidos, continuarão a “inventar” trabalho.
E quando a cegueira, a
surdez e a mudez se apossam dos donos é o cabo dos trabalhos, porque os cães
farão disparates cada vez maiores devido ao ostracismo a que se vêem forçados.
Já vimos de tudo um pouco mas os cães nesta situação não param de nos
surpreender (conhecemos um que não parava de se masturbar). Uns comportam-se
como “demolidores”, estoirando portas e arrancando fios eléctricos e
canalizações de água; outros assumem como faxina desarrumar a casa; alguns
trazem a roupa dos donos para a porta de entrada; há outros que pretendem acelerar
a troca dos móveis do lar, roendo-os sistematicamente; outros entendem “apanhar”
a roupa do estendal quer ela esteja seca ou molhada e há também aqueles que são
apaixonados pela jardinagem, que passam horas a arrancar plantas de vasos ou a
fazer autênticas crateras nos jardins.
E como se isto já não
bastasse, nos casos mais extremos, um pequeno número deles irá enveredar pela
automutilação, começando por ratar as unhas e acabando por roer a cauda
desesperadamente, o que não é nada bom (geralmente acabam apenas com um reduzido
coto). O cúmulo dos cúmulos é quando algum deles começa a engolir toda a sorte
de substâncias e acessórios, como se procurasse o suicídio, materiais que por
si mesmo não conseguirá expulsar do seu organismo. A estes cães chamamos na
gíria de “Guarda-Fatos(1)”, porque começam por engolir peças de
roupa e poderão acabar a engolir chumbo, outros metais pesados com diversas
apresentações, venenos vários, plantas tóxicas, papel celofane, instrumentos de
corte, etc..
Quando
um cão chega à fase do “Guarda-Fatos”, a sua morte anuncia-se para breve,
podendo somente ser atrasada pela extracção atempada do “cocktail” pelo
médico-veterinário. Extracção após extracção, a última não chegará tempo e o
cão finalmente sucumbirá. Diante deste triste final vale a pena perguntar: para
que quero eu um cão, se não tenho tempo para ele? Para que vou buscar um cão de
trabalho, se não pretendo ou não posso trabalhar com ele? Neste preciso momento
vários cães por toda a parte estão literalmente entre a vida e a morte, a ser
operados para extrair-lhes algo que engoliram. Gente assim tão displicente ou
ocupada merecerá ter algum cão? É evidente que não!
(1)Guarda-fatos=
Guarda-roupa, Roupeiro.
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