segunda-feira, 13 de novembro de 2017

QUANDO UM CÃO DE TRABALHO VIRA "GUARDA-FATOS"

Do ponto de vista laboral um cão bom é aquele que faz disparates e não o contrário, porque a curiosidade que leva à asneira é a mesma que induz ao acerto, ao aproveitamento e por conseguinte à utilidade. Os bons cães fazem muitos disparates, particularmente quando desprezados ou subaproveitados, porque são o culminar de consecutivas gerações seleccionadas para interagir com o Homem. Assim se compreende também por que razão são os cães de trabalho mais afectados pela ansiedade da separação que os comuns “come e dorme”, entendidos como excelentes por não incomodarem.
E se porventura por capricho da selecção natural, um cão sem os pergaminhos atrás citados for “demasiado” activo e inoportuno, ao invés de vir a ser educado e aproveitado, acabará sujeito à “pedagogia da castração” como sucede na maioria dos casos, prática que estranhamente não tem sofrido qualquer contestação.
Entende-se na generalidade que a ansiedade da separação é causada pelo medo que os cães têm em ficar sozinhos, medo esse que é responsável por um sem número de disparates que atentam contra o património dos donos, contra a saúde e bem-estar dos animais e que causa incómodo aos vizinhos. Gostaria de adiantar que nunca vi nenhum cão devidamente ensinado e bem integrado a comportar-se assim, mas estou farto de ver cães mimados e sem qualquer tipo de educação a concorrerem para o “fenómeno”, cujo número aumenta consideravelmente com os pequenos e médios cães de caça que se enjaulam hoje nos apartamentos.
Poderá um cão não-medroso fazer disparates idênticos na ausência dos donos? A constante ausência de interacção poderá contribuir para um comportamento igual? A resposta é afirmativa para as duas questões, porque o stress tanto pode apossar-se dos cães medrosos como dos valentes e causar graves transtornos a ambos, uns pelo temor e outros pela inactividade (interacção). Será a natureza dos protestos que nos indiciará qual será o caso de um cão em particular.
Ainda que nos dois casos os cães tudo façam para chamar à atenção dos donos, os medrosos tendem a acalmar-se com a sua chegada, deixando de ladrar e abandonando a0 acções reprováveis que os mantinham ocupados. Já os cães laborais, que obviamente reclamam por uma maior interacção, muitos deles privados de um passeio diário digno desse nome e de momentos de maior cumplicidade, continuarão a fazer disparates depois da chegada dos donos. Apesar de repreendidos e punidos, continuarão a “inventar” trabalho.
E quando a cegueira, a surdez e a mudez se apossam dos donos é o cabo dos trabalhos, porque os cães farão disparates cada vez maiores devido ao ostracismo a que se vêem forçados. Já vimos de tudo um pouco mas os cães nesta situação não param de nos surpreender (conhecemos um que não parava de se masturbar). Uns comportam-se como “demolidores”, estoirando portas e arrancando fios eléctricos e canalizações de água; outros assumem como faxina desarrumar a casa; alguns trazem a roupa dos donos para a porta de entrada; há outros que pretendem acelerar a troca dos móveis do lar, roendo-os sistematicamente; outros entendem “apanhar” a roupa do estendal quer ela esteja seca ou molhada e há também aqueles que são apaixonados pela jardinagem, que passam horas a arrancar plantas de vasos ou a fazer autênticas crateras nos jardins.
E como se isto já não bastasse, nos casos mais extremos, um pequeno número deles irá enveredar pela automutilação, começando por ratar as unhas e acabando por roer a cauda desesperadamente, o que não é nada bom (geralmente acabam apenas com um reduzido coto). O cúmulo dos cúmulos é quando algum deles começa a engolir toda a sorte de substâncias e acessórios, como se procurasse o suicídio, materiais que por si mesmo não conseguirá expulsar do seu organismo. A estes cães chamamos na gíria de “Guarda-Fatos(1)”, porque começam por engolir peças de roupa e poderão acabar a engolir chumbo, outros metais pesados com diversas apresentações, venenos vários, plantas tóxicas, papel celofane, instrumentos de corte, etc..
Quando um cão chega à fase do “Guarda-Fatos”, a sua morte anuncia-se para breve, podendo somente ser atrasada pela extracção atempada do “cocktail” pelo médico-veterinário. Extracção após extracção, a última não chegará tempo e o cão finalmente sucumbirá. Diante deste triste final vale a pena perguntar: para que quero eu um cão, se não tenho tempo para ele? Para que vou buscar um cão de trabalho, se não pretendo ou não posso trabalhar com ele? Neste preciso momento vários cães por toda a parte estão literalmente entre a vida e a morte, a ser operados para extrair-lhes algo que engoliram. Gente assim tão displicente ou ocupada merecerá ter algum cão? É evidente que não!
(1)Guarda-fatos= Guarda-roupa, Roupeiro. 

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