sexta-feira, 8 de abril de 2016

O DIA EM QUE O ALPTRAUM FEZ JUS AO SEU NOME

A história que vamos contar-vos aconteceu e repete-se esporadicamente com outros intervenientes. Pretendemos ao contá-la evitar comportamentos de risco que despertem nos cães o desejo de vingança como resposta aos maus-tratos que recebem. Um casal austríaco, a residir em Portugal, trouxe da sua terra natal um trio de Pastores Alemães, dois preto-afogueados e um lobeiro, que davam pelos nomes de “Feuer”, “Hurrikan” e “Alptraum”, animais que destoavam dos cães das redondezas pelo seu tratamento e porte, ao ponto da vizinhança os temer ao vê-los como lobos. Como ambos os donos trabalhavam e tinham adquirido uma quinta, decidiram contratar alguém para cuidar dela e dos cães na sua ausência. Temendo os cães, não apareceram muitos candidatos para o trabalho, apesar de ser muito bem pago. Quando já estavam quase a desistir e a optar por ficar um deles em casa, eis que lhes surge um jovem magarefe, que estava desempregado por não poder matar animais a particulares fora do matador camarário como fazia até ali, currículo nada abonatório para aquele trabalho e que a princípio fez estremecer os proprietários dos cães. Não tendo mais candidatos e fazendo-o jurar que tratava bem os animais, lá empregaram o rapaz, que ficou doido de contente.
Os cães tinham comportamentos totalmente díspares entre si. O Feuer, nome advindo do tom de afogueado que tinha no manto, era o cão mais velho e o chefe daquela pequena matilha, condição que reafirmava diariamente perante os outros, rosnando-lhes e obrigando-os a respeitar a primazia dos afectos dos donos, a sua vontade e espaço, no que era observado sem qualquer resistência. Mas se era duro entre iguais, com as pessoas era duma generosidade e humildade extremas, mostrando-se submisso e solícito, apesar de assustar quando ralhava com os demais. O Hurrikan, o outro preto-afogueado, era o mais novo e irrequieto dos três, um daqueles cães que só está bem a fazer asneiras, que apesar dos reparos sempre volta ao mesmo, um verdadeiro especialista em algazarra, estragos, acidentes, demolições e outras confusões, chegando a subir às árvores. O Alptraum, o lobeiro, era o mais calmo e corpulento, quem o observasse juraria que passava a vida a pensar ou que sofria de algum desaguisado psicológico, porque observava mais do que se mexia e mantinha alguma reserva e afastamento na presença de estranhos, como se sentisse incomodado ou não quisesse vir a sê-lo. Os três ficaram entregues aos cuidados do rapaz.
Como a quinta era grande e o jovem brioso, não tendo mãos a medir e querendo apresentar trabalho, mal se se despachava dos cães, que para ele eram um transtorno e coisa de “camones”, embrenhava-se de imediato e a gosto nas múltiplas tarefas agrícolas, sendo inúmeras vezes incomodado pelos cães, cujos donos não os queriam ver presos nos canis, que no seu conjunto eram do tamanho de uma adega e que os compreendia como grandes demais e mal-empregues. Acostumado a “molhar a sopa”, porque assim também havia sido educado, quando os cães o incomodavam, pisavam as leiras e canteiros ou lhe surripiam algum saco ou ferramenta, não hesitava e carregava-lhes com o que tivesse à mão, acontecesse o que acontecesse. O cão que mais trabalho lhe dava e que mais apanhava era o Hurrikan, porque lhe desenterrava os legumes recém-plantados, roía a mangueira da horta, roubava-lhe o saco do farnel, fazia buracos nos canteiros, deitava-se sobre as plantas, transformava o solo preparado em picadeiro e parecia não ter emenda, sendo impossível alcançá-lo depois dos disparates, ao contrário do Feuer, que se deitava ao seu lado e nada estragava e do Alptraum que raramente era visto e nunca se aproximava. Quando os donos regressavam a casa e lhe perguntavam como tinha ido com os cães, sempre lhes respondia que os adorava e que se haviam comportado “cinco estrelas”.
Certo dia, já a deitar o cão pelos olhos e farto dos seus repetidos disparates, acertou em cheio no Hurrikan com uma sachola, impacto que o fez ganir demoradamente, cortando-o por cima do olho direito, provocando-lhe um tremendo hematoma, julgando até tê-lo cego. Perante o ocorrido, o cão mais velho (Feuer) fugiu para o canil e o lobeiro, que se encontrada escondido a observar tudo, apresentou-se na frente do moço a rosnar, de dentes arreganhados, orelhas fitas e cauda levantada. Assustado e temendo ser mordido, o homem dizia para o cão baixinho: “apatraume, apatraume, eu sou teu amigo”, enquanto se munia de um emaranhado de arames, não fosse o diabo tecê-las. Passados alguns segundos, o cão afastou-se pouco convencido e finalmente desapareceu. Quando os donos apareceram no final do dia, alarmados com o estado em que o cão mais novo tinha a cabeça, inquiriram junto do empregado o que tinha sucedido, ao que ele respondeu ter o cão caído de uma árvore sobre a esquina de um canteiro, justificação que aceitaram tendo em conta o comportamento usual do animal. A partir daquele dia, sem que ele desse por isso, o jovem passou a ser observado e policiado pelo Alptraum, que escondido, nunca o perdia de vista.
Aquele triste e lamentável desfecho não serviu de emenda ao empregado, que continuou a arremessar ao cão “doidivanas”, mal ele se encontrou curado, toda a sorte a sorte de objectos: sachos, pedras, pedaços de mangueira e até os botins que usava na horta, quando o animal aprontava das suas e para as quais não tinha dias de folga. Após acabar de regar um canteiro de salsa, que de tão viçosa, verde e perfumada era um encanto para os sentidos, o “maldito do Urricân” decidiu transformá-lo em piscina, entrelaçando a salsa que nem ninho de galinhas! Danado e já com o Pastor em fuga, jogou-lhe uma pedra. Por azar foi acertar no Lombo do Alptraum, lobeiro que se encontrava por perto, deitado e encoberto por detrás duma leira de couves-coração. Ao sentir-se atingido, o cão avançou decididamente para cima do seu agressor, apesar deste se armar e defender com uma enxada, o que de pouco lhe valeu, porque o animal evitava os seus golpes e mordia-lhe o corpo nos intervalos. A escaramuça nem um minuto durou, porque exausto e ao olhar para a sua barriga rasgada, o jovem desfaleceu, não sabendo ao certo por quanto tempo se manteve inanimado.
Recobrou estremunhado os sentidos já na presença dos donos, que logo quiseram saber qual dos cães o havia atacado e em que circunstâncias, enquanto a senhora ligava para o 112. “ Foi o Apatraume e não sei porquê! – Dizia ele. Depois do sucedido, o empregado decidiu fazer contas e “sair de malas a aviar”, recebendo daqueles patrões um bónus generoso, para que não fosse dar parte do ocorrido à Polícia. Assustados com aquele ataque e com medo que ele se repetisse sobre outras vítimas, os austríacos optaram por mandar ensinar o lobeiro, tendo o cuidado de avisar o adestrador acerca do seu passado. O cão revelou-se extraordinário e portador de um equilíbrio raramente visto, não encontrando o seu treinador razões para o que havia sucedido. Mas o cão sabia quais, porque ao sentir o magarefe à distância, logo se agitava e transfigurava, querendo ter com ele um novo ajuste de contas. Quantos cães assim já foram injustamente abatidos, com base em mentiras, por temor e por não terem sido compreendidos? Provavelmente muitos, os mesmos que foram vítimas e que apenas se defenderam! Caro leitor, perante esta narrativa, não entenda “ao pé da letra” tudo que lê nos jornais acerca dos ataques caninos, dê aos cães a presunção de inocência atribuída a qualquer arguido, porque eles não falam, há quem viva do sensacionalismo e não raramente aqueles que dizem ser suas vítimas outra coisa não são que os seus próprios agressores! Falo com conhecimento de causa: fui eu que treinei este cão e que apertei com o magarefe para me contar toda a verdade.  

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