A história que vamos
contar-vos aconteceu e repete-se esporadicamente com outros intervenientes.
Pretendemos ao contá-la evitar comportamentos de risco que despertem nos cães o
desejo de vingança como resposta aos maus-tratos que recebem. Um casal austríaco,
a residir em Portugal, trouxe da sua terra natal um trio de Pastores Alemães,
dois preto-afogueados e um lobeiro, que davam pelos nomes de “Feuer”, “Hurrikan”
e “Alptraum”, animais que destoavam dos cães das redondezas pelo seu tratamento
e porte, ao ponto da vizinhança os temer ao vê-los como lobos. Como ambos os
donos trabalhavam e tinham adquirido uma quinta, decidiram contratar alguém
para cuidar dela e dos cães na sua ausência. Temendo os cães, não apareceram
muitos candidatos para o trabalho, apesar de ser muito bem pago. Quando já
estavam quase a desistir e a optar por ficar um deles em casa, eis que lhes
surge um jovem magarefe, que estava desempregado por não poder matar animais a particulares
fora do matador camarário como fazia até ali, currículo nada abonatório para
aquele trabalho e que a princípio fez estremecer os proprietários dos cães. Não
tendo mais candidatos e fazendo-o jurar que tratava bem os animais, lá
empregaram o rapaz, que ficou doido de contente.
Os cães tinham
comportamentos totalmente díspares entre si. O Feuer, nome advindo do tom de
afogueado que tinha no manto, era o cão mais velho e o chefe daquela pequena
matilha, condição que reafirmava diariamente perante os outros, rosnando-lhes e
obrigando-os a respeitar a primazia dos afectos dos donos, a sua vontade e
espaço, no que era observado sem qualquer resistência. Mas se era duro entre
iguais, com as pessoas era duma generosidade e humildade extremas, mostrando-se
submisso e solícito, apesar de assustar quando ralhava com os demais. O
Hurrikan, o outro preto-afogueado, era o mais novo e irrequieto dos três, um
daqueles cães que só está bem a fazer asneiras, que apesar dos reparos sempre
volta ao mesmo, um verdadeiro especialista em algazarra, estragos, acidentes,
demolições e outras confusões, chegando a subir às árvores. O Alptraum, o
lobeiro, era o mais calmo e corpulento, quem o observasse juraria que passava a
vida a pensar ou que sofria de algum desaguisado psicológico, porque observava
mais do que se mexia e mantinha alguma reserva e afastamento na presença de
estranhos, como se sentisse incomodado ou não quisesse vir a sê-lo. Os três
ficaram entregues aos cuidados do rapaz.
Como a quinta era grande e
o jovem brioso, não tendo mãos a medir e querendo apresentar trabalho, mal se
se despachava dos cães, que para ele eram um transtorno e coisa de “camones”,
embrenhava-se de imediato e a gosto nas múltiplas tarefas agrícolas, sendo
inúmeras vezes incomodado pelos cães, cujos donos não os queriam ver presos nos
canis, que no seu conjunto eram do tamanho de uma adega e que os compreendia como
grandes demais e mal-empregues. Acostumado a “molhar a sopa”, porque assim
também havia sido educado, quando os cães o incomodavam, pisavam as leiras e
canteiros ou lhe surripiam algum saco ou ferramenta, não hesitava e
carregava-lhes com o que tivesse à mão, acontecesse o que acontecesse. O cão
que mais trabalho lhe dava e que mais apanhava era o Hurrikan, porque lhe
desenterrava os legumes recém-plantados, roía a mangueira da horta, roubava-lhe
o saco do farnel, fazia buracos nos canteiros, deitava-se sobre as plantas,
transformava o solo preparado em picadeiro e parecia não ter emenda, sendo
impossível alcançá-lo depois dos disparates, ao contrário do Feuer, que se
deitava ao seu lado e nada estragava e do Alptraum que raramente era visto e nunca
se aproximava. Quando os donos regressavam a casa e lhe perguntavam como tinha
ido com os cães, sempre lhes respondia que os adorava e que se haviam
comportado “cinco estrelas”.
Certo dia, já a deitar o
cão pelos olhos e farto dos seus repetidos disparates, acertou em cheio no
Hurrikan com uma sachola, impacto que o fez ganir demoradamente, cortando-o por
cima do olho direito, provocando-lhe um tremendo hematoma, julgando até tê-lo
cego. Perante o ocorrido, o cão mais velho (Feuer) fugiu para o canil e o
lobeiro, que se encontrada escondido a observar tudo, apresentou-se na frente do
moço a rosnar, de dentes arreganhados, orelhas fitas e cauda levantada. Assustado
e temendo ser mordido, o homem dizia para o cão baixinho: “apatraume, apatraume,
eu sou teu amigo”, enquanto se munia de um emaranhado de arames, não fosse o
diabo tecê-las. Passados alguns segundos, o cão afastou-se pouco convencido e finalmente
desapareceu. Quando os donos apareceram no final do dia, alarmados com o estado
em que o cão mais novo tinha a cabeça, inquiriram junto do empregado o que
tinha sucedido, ao que ele respondeu ter o cão caído de uma árvore sobre a
esquina de um canteiro, justificação que aceitaram tendo em conta o
comportamento usual do animal. A partir daquele dia, sem que ele desse por
isso, o jovem passou a ser observado e policiado pelo Alptraum, que escondido, nunca o perdia de vista.
Aquele triste e lamentável
desfecho não serviu de emenda ao empregado, que continuou a arremessar ao cão “doidivanas”,
mal ele se encontrou curado, toda a sorte a sorte de objectos: sachos, pedras,
pedaços de mangueira e até os botins que usava na horta, quando o animal aprontava
das suas e para as quais não tinha dias de folga. Após acabar de regar um canteiro
de salsa, que de tão viçosa, verde e perfumada era um encanto para os sentidos,
o “maldito do Urricân” decidiu transformá-lo em piscina, entrelaçando a salsa
que nem ninho de galinhas! Danado e já com o Pastor em fuga, jogou-lhe uma
pedra. Por azar foi acertar no Lombo do Alptraum, lobeiro que se encontrava por
perto, deitado e encoberto por detrás duma leira de couves-coração. Ao
sentir-se atingido, o cão avançou decididamente para cima do seu agressor,
apesar deste se armar e defender com uma enxada, o que de pouco lhe valeu,
porque o animal evitava os seus golpes e mordia-lhe o corpo nos intervalos. A
escaramuça nem um minuto durou, porque exausto e ao olhar para a sua barriga
rasgada, o jovem desfaleceu, não sabendo ao certo por quanto tempo se manteve
inanimado.
Recobrou estremunhado os
sentidos já na presença dos donos, que logo quiseram saber qual dos cães o
havia atacado e em que circunstâncias, enquanto a senhora ligava para o 112. “
Foi o Apatraume e não sei porquê! – Dizia ele. Depois do sucedido, o empregado
decidiu fazer contas e “sair de malas a aviar”, recebendo daqueles patrões um
bónus generoso, para que não fosse dar parte do ocorrido à Polícia. Assustados
com aquele ataque e com medo que ele se repetisse sobre outras vítimas, os
austríacos optaram por mandar ensinar o lobeiro, tendo o cuidado de avisar o
adestrador acerca do seu passado. O cão revelou-se extraordinário e portador de
um equilíbrio raramente visto, não encontrando o seu treinador razões para o
que havia sucedido. Mas o cão sabia quais, porque ao sentir o magarefe à
distância, logo se agitava e transfigurava, querendo ter com ele um novo ajuste
de contas. Quantos cães assim já foram injustamente abatidos, com base em
mentiras, por temor e por não terem sido compreendidos? Provavelmente muitos,
os mesmos que foram vítimas e que apenas se defenderam! Caro leitor, perante esta narrativa, não entenda “ao pé da letra” tudo
que lê nos jornais acerca dos ataques caninos, dê aos cães a presunção de
inocência atribuída a qualquer arguido, porque eles não falam, há quem viva do sensacionalismo e não
raramente aqueles que dizem ser suas vítimas outra coisa não são que os seus
próprios agressores! Falo com conhecimento de causa: fui eu que treinei este
cão e que apertei com o magarefe para me contar toda a verdade.
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