Quem passa a vida a
sociabilizar cães entre si, sabe que nalguns casos não é tarefa fácil,
particularmente machos adultos de grupos somáticos diferentes, cujo mimetismo sendo
também diferente, suscita picardias por incompreensão dos díspares estados
emocionais que desperta, erradamente entendidos por uns e por outros como
provocatórios, o que alvitra a existência duma possível relação entre o mimetismo dos
diversos cães e o seu processo de sociabilização, que será mais fácil ou
difícil de acordo com a mútua interpretação das suas expressões mímicas, quando
aceites ou rejeitadas, já que brincam uns com os outros imitando posturas por
contágio emocional, o que espelha a genuína sociabilização, que jamais deverá
ser confundida com a tolerância e a indiferença que muitos cães alcançam por via
da obediência. Assim, cães que não
conseguem brincar uns com os outros, jamais estarão verdadeiramente
sociabilizados, ainda que trabalhem em conjunto, escalonamento que fica a
dever-se à acção da liderança e não à empatia entre eles. Contudo, ainda que as
brincadeiras entre cães sejam um indício inequívoco da sua sociabilização, não
podemos consentir que se sirvam delas para propósitos que possam vir a comprometê-la,
pelo que devem ser desenvolvidas debaixo da arbitragem dos donos, uma vez que
todos os jogos carecem de regras e limites.
Como se depreende, ao
contrário do que nos é dito por muitos, que a vendem a metro, a verdadeira sociabilização
canina raramente se alcança, porque não é absoluta (que o diga o ingénuo do César
Millan, agora a responder por maus tratos animais), carece de aprimoramento e
reciclagem, necessita de passar a rotina (é um processo continuado) e não dura
para sempre, condicionalismos ligados à própria natureza dos cães, que sendo
predadores inatos e competitivos, carregam instintos e impulsos, também ligados
à diferença de género, que os diferem como indivíduos levando-os à rivalidade, nem
que seja pela atenção dos donos. Comummente confunde-se sociabilização com a
cativação à liderança e com carácter imperativo das suas ordens, o que é falso,
porque esses animais dificilmente se agradarão de brincar com outros cães ou de
participar das suas brincadeiras, por se encontrarem completamente submissos aos
propósitos dos seus proprietários. A somar a isto, como produzimos cães para
diferentes fins, potenciamos em cada uma das raças diferentes instintos e
impulsos, tornando-as mais ou menos predadoras, mais fratricidas ou fraternais,
o que torna mais fácil a sociabilização dos rafeiros entre si,
independentemente se se encontrarem castrados ou não, que são castrados para
evitar a sua proliferação e não por aspectos ligados a qualquer dificuldade no
seu processo de sociabilização.
Os filhos da selecção
natural (os rafeiros, “vira-lata” no Brasil) possuem um mimetismo de fácil
entendimento para os seus congéneres de raça, não se constituindo aos seus
olhos numa ameaça, sendo por isso normalmente melhor aceites, também por serem
menos agressivos, desconsiderarem o racismo e constituírem com maior facilidade
matilhas espontâneas. O recurso a um rafeiro no processo de sociabilização de
um ou mais cães “puros” tem-se revelado uma excelente estratégia, o que torna bem-vindos
aos centros de treino caninos, atendendo a essa mais-valia, os cães que são
tudo em geral e nada em particular. Sociabilizar cães dentro do mesmo grupo
somático é mais fácil do que sociabilizar indivíduos de grupos somáticos
díspares pela analogia do seu mimetismo e reacções, que facilitarão a imitação
do comportamento desejado. Se eu sou proprietário de Husky instintivo e desnorteado
e pretendo adquirir um segundo cão que me ajude a recuperá-lo, a melhor opção
passará pela aquisição de um Pastor Alemão, preferencialmente de sexo
diferente, que pertencendo ao mesmo grupo somático e tendo um mimetismo próximo
ao encontrado no cão siberiano, melhor nos auxiliará na sua recuperação.
Alcançaríamos um resultado totalmente inverso, caso nos valêssemos de um
molosso grave, sério e pouco dado a explosões, que sem paciência e com o tempo,
acabaria por se antagonizar com o Husky (aqui, como em tudo, existem excepções
que confirmam a regra).
As diferenças morfológicas
presentes nas actuais raças caninas, para além de resultarem em diferentes apresentações,
comportamentos e rituais, modos diversos de abordagem, de defesa e de ataque, produto
das diversas selecções que sustentam a multi-variedade somática existente, tendem
a agravar-se com a idade por serem de difícil compreensão, aceitação, assimilação
e imitação por todos. Por estas razões, sempre será mais fácil sociabilizar um
cachorro com um cão adulto doutra raça, mesmo de mimetismo e comportamento
contrastante ou antagónico ao seu, graças ao concurso da familiarização. E
nisto, tanto a disciplina de obediência como as aulas colectivas têm uma
importante palavra a dizer, porque os cães são seres sociais, vivem em constante
observação, tendem a imitar-se e a constituir-se em matilha, o que torna ambas
num subsídio seguro para a mútua compreensão e aceitação, mediante a aquisição
de posturas e comportamentos comuns por força de idêntico condicionamento. Por
causa disso, também por seguirmos o método da precocidade e termos sempre em
pista Pastores Alemães, os Labradores (para além de outros) que treinaram e
cresceram com eles, julgando-se idênticos, acabaram por ter a mesma prestação
nas áreas relativas à defesa e segurança de pessoas e bens.
Para quem deseja estar informado
e alargar horizontes, aconselhamos a leitura do estudo levado a cabo pela
Universidade de Pisa/Itália, divulgado em Dezembro do ano transacto na
Internet, dedicado ao ”rápido mimetismo e contágio emocional em cães domésticos”,
que teve como pesquisadora-chefe a Dr.ª Elisabetta Palagi, especialista em antropologia
biológica, biologia evolutiva e neurociência. Sociabilizar cães é ensiná-los a
amar-se uns aos outros depois de os termos constituídos em inimigos, um ofício
nobre e urgente – uma ocasião para a paz.
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