Antes
de nos debruçarmos sobre este cão uruguaio, importa salientar que parte dele já
foi território português, nomeadamente a Colónia de Sacramento, onde a Coroa
Portuguesa exerceu o seu domínio entre 1680 e 1777, sendo o primeiro
assentamento europeu no Uruguai. Portugueses e espanhóis disputaram a sua posse
durante 42 anos (de 1735 a 1777), sendo finalmente entregue à Coroa Espanhola
pelo Tratado de Santo Ildefonso, assinado na Província espanhola de Segóvia,
por D.ª Maria I de Portugal e Carlos III de Espanha, no primeiro dia de Outubro
de 1977, tendo como mediadores a França e a Inglaterra com interesses políticos
na paz entre os dois países peninsulares. Ali deixámos, para além de alguns
vestígios, gente nossa e tudo o que para lá carregou, incluindo cães. Cisplatina é o nome
dado ao território que fica aquém do Rio da Prata.
Apesar
da assinatura do tratado acima citado, Portugal não desistiu imediatamente dos
seus interesses no Uruguai, enviando para lá 10.000 soldados em 1816 e tomando
Montevidéu em Janeiro de 1817. Quatro anos depois, depois de muita luta, o
Brasil Português anexou a Banda Oriental daquele território. O Brasil já
independente haveria de reclamar e invadir aquele território, ocupando as
nascentes do Rio Negro no nó de Santa Tecla, todo o extenso território entre o
Rio Quaraí e o Rio Ibicuí, no seu curso alto chamado de Rio Santa Maria. Também
no noroeste, os brasileiros alcançaram novas as fronteiras apesar da derrota
militar, cuja fronteira noroeste passou de Piratiny ou Piratini para Rio
Jaguarão. Depois de inúmeras guerras e conflitos, o Uruguai tornou-se
independente em 1828 pelo Tratado de Montevidéu, documento assinado pelo Brasil
e Argentina, onde reconheciam a independência daquele território, que ainda se
viria sujeito a várias lutas e escaramuças. Por decisão política e não outra os
gaúchos ficaram separados para sempre em duas bandas, resultando disso, por
necessidade de demarcação das fronteiras, o recrutamento de emigrantes europeus
para o Sul do Brasil, nomeadamente italianos e alemães, cujas maiores colónias
se encontram ainda hoje nos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do
Sul, gente que por alturas da II Guerra Mundial foi objecto de perseguição
arbitrária.
Voltemo-nos
para o Cimarrón Uruguayo, um cão aparentemente de origem incerta e por isso
rodeado de polémica, não muito numeroso no mundo, de quem se diz ter
ascendência nos cães portugueses e espanhóis levados pelos colonizadores para o
Uruguai, um molosso de médio porte, determinado, ágil, robusto, vigoroso,
corajoso e funcional, com créditos comprovados na caça no pastoreio e no ofício guardião, que em determinado
momento se tornou selvagem (daí o termo “Cimarrón) ao proliferar nas matas
uruguaias, pormenor que muito o abona em termos de selecção, uma vez que
resultou da natural. Ao tornar-se autónomo e selvagem, este cão veio a causar
graves prejuízos aos colonos e ao seu gado, atacando também caravanas de
pessoas. No final do Séc. XVII foi considerado como peste pelas autoridades,
que pagavam por cada cão morto determinada quantia, desde que fossem
apresentadas como prova de morte a mandíbula ou as orelhas do cão abatido, o
que teve como consequência o seu abate na ordem das dezenas de milhar.
Obrigadas pela perseguição que lhes foi movida, algumas cadelas levaram os seus
cachorros para as Montanhas de Olimar, nomeadamente para as Montanhas de Otazo
e o Cerros Largos, aperto que evitou a sua extinção. Mais tarde e pouco a
pouco, o Cimarrón começou a ser aproveitado como cão de caça, pastoreio e de
guarda.
Em
21 de Fevereiro de 2006, a raça viria a ser reconhecida pela FCI. O seu focinho
é para o largo, os seus olhos são arredondados, vivos e de cor escura, apresenta
orelhas de tamanho mediano, caídas, triangulares e tombadas (normalmente são
objecto de um corte idêntico ao praticado no Cão de Fila de São Miguel). A sua
pelagem é curta e lisa, tem sub-pêlo e as suas cores vão do baio (cor de areia)
até ao tigrado de vários tons. A sua linha dorsal é paralela ao solo e tende a
selar-se. Pode apresentar manchas brancas nas patas, no ante peito, peito,
região ventral e até no focinho. As fêmeas vão dos 55 aos 58 cm e pesam entre
27 e 36 kg, os machos dos 58 aos 61 cm e pesam de 34 a 54 kg, detalhes que não
escondem a eventual presença dos molossos espanhóis na sua construção.
Mas
é no temperamento que o Cimarrón mais se destaca das outras raças caninas,
porque é tranquilo, seguro, não ladra ao acaso, é duma lealdade extrema para
com os seus, um valente e determinado guardião, que se sociabiliza facilmente
com as crianças chegando ao ponto das proteger. Extremamente zeloso do território
familiar e daquele que lhe é confiado, resiste a qualquer tipo de intrusão, não
se intimidando diante do número ou de qualquer tipo de intruso. Animal saudável
e robusto, dispensa maiores cuidados de manutenção mas não dispensa o exercício
diário regular, requerendo por isso espaço para se exercitar. Este sim, é o
verdadeiro cão dos gaúchos, dos uruguaios e dos brasileiros, porque no meio de
uns e de outros podemos encontrá-lo.
Ao
olharmos para o Cimarrón parece-nos estar na presença de um Fila de São Miguel
por força das parecenças. E se estamos, então estaremos diante duma versão
melhorada do cão açoriano, também ele com idênticas características físicas e
psicológicas, sem dúvida um ancestral do cão uruguaio, um gigante de igual
valor que insistem em transformar num rato. A existência e o estudo do Cimarrón
podem também contribuir para um melhor conhecimento das origens do Fila de São
Miguel. Para nós, que fomos criadores de Cães de Fila de São Miguel, o Cimarrón
outra coisa não é que um Fila Cisplatino, um congénere ou descendente do bravo
cão que temos nos Açores e que muitos portugueses desconhecem infelizmente.
Oxalá os uruguaios não estraguem o que por lá deixámos e não desprezem os
benefícios da selecção natural, transformando o Cimarrón em “mais um” de pouco
ou nenhum préstimo, num aristocrata com comportamento de guaipeca.
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