segunda-feira, 14 de outubro de 2019

SALSA: A HUMILDE RAINHA DOS PÂNTANOS

Dona de um reino herdado que não o seu, vinda das montanhas para os pântanos, a SALSA, a Cão de Gado Transmontano, continua a adaptar-se a um ecossistema que a desconsiderou, mas que já considera seu por conhecer-lhe as voltas e os segredos. Rodeada de águas, a lembrar Yemanjá, vemo-la invariavelmente entre valas e terrenos alagados, que percorre copiosamente como se os lobos por ali andassem. Porém, é junto das pessoas que se sente mais a gosto e com elas interage conforme lhe for solicitado, sempre humilde e feliz.
Nas suas andanças pelas valas nunca vai só, acompanham-na um casal de gatinhos endiabrados, que devido ao particular da sua pelagem, dificilmente são avistados. A parceria da cadela com os gatos é tal, que automaticamente lembra-nos os “Die Bremer Stadtmusikanten(1), fábula popular alemã recolhida e editada pelos Irmãos Grimm(2). Na foto seguinte também não é fácil vê-los, mas eles estão lá.
A grande planície, quer seja seca ou alagada, particularmente no Outono quando a luz é mais difusa, parece ter uma mística própria infligida pela melancolia que afecta todos ao seu redor, não poupando inclusive homens e animais, como se a história ali tivesse tropeçado e o amanhã fosse sempre igual ao dia de ontem. Mas como não devemos guardar para amanhã o que devemos fazer hoje, continuamos a condicionar a Salsa a vir sempre que é chamada.
Esta cadela, tendo noção do seu tamanho e força, fazendo também jus à classe canina a que pertence, prefere por vezes levar tudo de arrasto ao invés de saltar, criando para si obstáculos que facilmente poderia evitar, isto se considerarmos dois ou três serviços que poderá prestar. E quando assim é, seja lá onde for, o Adestrador tem que meter os pés ao caminho.
Como fazendeira de feno, arroz, camarão, ostras e enguias, a Salsa tem que se acostumar a ser transportada no reboque da moto4, porque a sua presença poderá ser fundamental para expulsar ladrões e outros invasores. Por outro lado, estar acostumada a ser transportada em veículos automóveis, poderá salvar-lhe a vida em caso de socorro.
Contudo, a praia desta cadela (como agora se diz), é passear com a sua dona por toda a parte, disparando ocasionalmente em alta velocidade por carreiros e valas, impelida para diante sem se saber ao certo porquê.
E quando assim acontece, nunca mais ninguém a vê (em certa ocasião foi parar a um abrigo de cães). Para que isso não volte a acontecer, para além de insistirmos no comando de “aqui”, instamos com ela para que permaneça debaixo do comando de “quieto”, independentemente da distância ou delonga da dona, em locais onde rotineiramente se escapa ou produz disparates.
Por detrás da Yucca onde se encontra, existe uma cancela que ela já danificou para encetar as suas fugas e correrias. Sabedores disso, tentamos demovê-la dos seus intentos fazendo uso da regra (comando próprio), da surpresa e da experiência do flagrante delito.
A Salsa tem como companheira de correrias e agente desestabilizador uma cadela Labradora chocolate, cujo nome sempre esqueço como esquecida está esta cadela, ela sim própria para os arrozais e para os ecossistemas aquáticos, para além de ser de fácil interacção e de ter nascido para agradar. O controlo da Salsa está também a operar o controlo da Labradora, que ao ouvir o comando de “quieto” permanece também imóvel.
A Cão de Gado Transmontano tinha até aqui uma má relação com as galinhas, chegando a matar duas ou três de tanta caça lhes dar. Depois de abocanhá-las e matá-las não as comia e deixavam de interessar-lhe. Para reverter a situação e impedir que volte a repetir-se o futuro, procedemos à familiarização da Salsa com as galinhas, mandando-a primeiro para dentro da capoeira debaixo de observação.
Na foto seguinte vemos a dona da Salsa a deixá-la deitada e quieta ao longo de círculo previamente estabelecido, onde a cadela foi parando em diversos pontos e por tempo indeterminado, para que desistisse de se pôr em fuga e para que fixasse os olhos sempre na sua líder (quando os cães tiram os olhos dos donos, o disparate bate à porta).
No final do treino, para a fotografia e reforço do comando de “quieto”, ordenámos à Salsa que se enquadrasse no meio de um arbusto amplamente florido, que por ali cresceu desordenadamente e isento de maiores cuidados.
Eis em síntese o que foi a última aula da Salsa, uma cadela que não pára de surpreender-me e que é merecedora de todo e carinho e atenção.
(1)”Os Músicos de Bremen”. (2) Os irmãos Jacob e Wilhelm, ambos académicos, linguistas, poetas e escritores, nascidos no então Condado de Hesse-Darmstadt, na Alemanha actual. Dedicaram-se ao registo de várias fábulas infantis, ganhando assim grande notoriedade até tomar proporções globais.

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