Dona de um reino herdado que
não o seu, vinda das montanhas para os pântanos, a SALSA, a Cão de Gado
Transmontano, continua a adaptar-se a um ecossistema que a desconsiderou, mas
que já considera seu por conhecer-lhe as voltas e os segredos. Rodeada de
águas, a lembrar Yemanjá, vemo-la invariavelmente entre valas e terrenos alagados,
que percorre copiosamente como se os lobos por ali andassem. Porém, é junto das
pessoas que se sente mais a gosto e com elas interage conforme lhe for
solicitado, sempre humilde e feliz.
Nas suas andanças pelas
valas nunca vai só, acompanham-na um casal de gatinhos endiabrados, que devido
ao particular da sua pelagem, dificilmente são avistados. A parceria da cadela
com os gatos é tal, que automaticamente lembra-nos os “Die Bremer Stadtmusikanten”(1),
fábula popular alemã recolhida e editada pelos Irmãos Grimm(2).
Na foto seguinte também não é fácil vê-los, mas eles estão lá.
A grande planície, quer
seja seca ou alagada, particularmente no Outono quando a luz é mais difusa,
parece ter uma mística própria infligida pela melancolia que afecta todos ao
seu redor, não poupando inclusive homens e animais, como se a história ali
tivesse tropeçado e o amanhã fosse sempre igual ao dia de ontem. Mas como não
devemos guardar para amanhã o que devemos fazer hoje, continuamos a condicionar
a Salsa a vir sempre que é chamada.
Esta cadela, tendo noção
do seu tamanho e força, fazendo também jus à classe canina a que pertence,
prefere por vezes levar tudo de arrasto ao invés de saltar, criando para si
obstáculos que facilmente poderia evitar, isto se considerarmos dois ou três
serviços que poderá prestar. E quando assim é, seja lá onde for, o Adestrador
tem que meter os pés ao caminho.
Como fazendeira de feno,
arroz, camarão, ostras e enguias, a Salsa tem que se acostumar a ser
transportada no reboque da moto4, porque a sua presença poderá ser fundamental
para expulsar ladrões e outros invasores. Por outro lado, estar acostumada a
ser transportada em veículos automóveis, poderá salvar-lhe a vida em caso de
socorro.
Contudo, a praia desta
cadela (como agora se diz), é passear com a sua dona por toda a parte,
disparando ocasionalmente em alta velocidade por carreiros e valas, impelida
para diante sem se saber ao certo porquê.
E quando assim acontece,
nunca mais ninguém a vê (em certa ocasião foi parar a um abrigo de cães). Para
que isso não volte a acontecer, para além de insistirmos no comando de “aqui”,
instamos com ela para que permaneça debaixo do comando de “quieto”,
independentemente da distância ou delonga da dona, em locais onde
rotineiramente se escapa ou produz disparates.
Por detrás da Yucca onde
se encontra, existe uma cancela que ela já danificou para encetar as suas fugas
e correrias. Sabedores disso, tentamos demovê-la dos seus intentos fazendo uso
da regra (comando próprio), da surpresa e da experiência do flagrante delito.
A Salsa tem como
companheira de correrias e agente desestabilizador uma cadela Labradora
chocolate, cujo nome sempre esqueço como esquecida está esta cadela, ela sim
própria para os arrozais e para os ecossistemas aquáticos, para além de ser de
fácil interacção e de ter nascido para agradar. O controlo da Salsa está também
a operar o controlo da Labradora, que ao ouvir o comando de “quieto” permanece
também imóvel.
A Cão de Gado Transmontano
tinha até aqui uma má relação com as galinhas, chegando a matar duas ou três de
tanta caça lhes dar. Depois de abocanhá-las e matá-las não as comia e deixavam
de interessar-lhe. Para reverter a situação e impedir que volte a repetir-se o
futuro, procedemos à familiarização da Salsa com as galinhas, mandando-a
primeiro para dentro da capoeira debaixo de observação.
Na foto seguinte vemos a
dona da Salsa a deixá-la deitada e quieta ao longo de círculo previamente
estabelecido, onde a cadela foi parando em diversos pontos e por tempo
indeterminado, para que desistisse de se pôr em fuga e para que fixasse os
olhos sempre na sua líder (quando os cães tiram os olhos dos donos, o disparate
bate à porta).
No final do treino, para a
fotografia e reforço do comando de “quieto”, ordenámos à Salsa que se
enquadrasse no meio de um arbusto amplamente florido, que por ali cresceu
desordenadamente e isento de maiores cuidados.
Eis
em síntese o que foi a última aula da Salsa, uma cadela que não pára de
surpreender-me e que é merecedora de todo e carinho e atenção.
(1)”Os Músicos de Bremen”. (2) Os irmãos Jacob e Wilhelm, ambos académicos,
linguistas, poetas e escritores, nascidos no então Condado de Hesse-Darmstadt, na
Alemanha actual. Dedicaram-se ao registo de várias fábulas infantis, ganhando
assim grande notoriedade até tomar proporções globais.
Sem comentários:
Enviar um comentário