terça-feira, 29 de outubro de 2019

A ÊNFASE NOS CÃES

A determinada altura, quando me encontrava a gravar para uma série junto ao Castelo de Sesimbra, numa pausa das filmagens e a sofrer horrores com o calor, uma senhora bem-intencionada e avançada na idade acerca-se de mim e diz: “Parabéns. Tem um cão muito inteligente!” Sem paciência e incomodado pela interpelação, respondi-lhe que o inteligente era eu e que o animal se encontrava a descansar na carrinha. O vulgo das pessoas, quando vê algum cão fazer algo de extraordinário, tende a aplaudir o animal e a esquecer-se do esforço do seu líder, como se o cão não espelhasse a qualidade do seu mestre. Essa omissão é por vezes intencional e usada pelos governos, quando importa dar um cunho heróico a determinada acção e granjear o apoio da opinião pública. Assim se passou mais uma vez no abate de ABU BAKR al-BAGHDADI, terrorista e líder do DAESH, ocorrido no passado fim-de-semana, operado pela DELTA FORCE do 75TH RANGERS REGIMENT dos Estados Unidos, força da qual constavam vários cães de guerra, merecendo especial destaque o que encurralou o terrorista num túnel e fê-lo explodir junto com os seus três filhos.
Torna-se por demais evidente que o sucesso desta operação ficou a dever-se mais à sua preparação(1) do que à acção do cão, que atendendo a vários factores, podia até não ser a esperada (falhar). Assim, o mérito deste GOLPE DE MÃO vai inteirinho para os rangers norte-americanos e se os cães cumpriram o seu papel, é porque alguém os treinou afincadamente para isso. A exaltação do papel do cão nesta operação militar é descaradamente estratégica e aponta para vários destinatários, ainda que Trump queira arranjar-lhe mais um – os emigrantes vindos da fronteira mexicana. O primeiro destinatário são os terroristas e extremistas islâmicos, para quem morrer à boca dos cães é algo inimaginável e repugnante, uma vez que estes animais são por eles considerados impuros, capazes de contaminar os seguidores do Profeta e impedi-los de alcançar o paraíso. A ênfase do papel do cão acaba por ser para eles uma clara ameaça – fica quieto ou vais morrer assim!
O segundo destinatário é interno e tem a ver com a opinião pública americana, país onde existem para cima de 75 milhões de cães de companhia, tradicionalmente amigo do cão e apto a maravilhar-se com as suas façanhas em detrimento de outros factos, como a invasão de um país soberano e o desespero que levou à morte dos 4 indivíduos, sendo três deles menores segundo se crê (deverão os filhos pagar pelos crimes dos pais?). A exaltação da façanha do cão tende a deixar toda a gente feliz e a possibilidade de feridos ou baixas passa para segundo plano - deixa de ser questionada (as lições da Guerra do Vietname não foram esquecidas). O terceiro destinatário abrange os cidadãos dos países aliados dos Estados Unidos e a opinião pública mundial, que andam fartos de terroristas e ataques à bomba, a quem importa transmitir uma mensagem de poder, segurança e normalidade, suavizando uma acção militar com os feitos heróicos de um cão.
O cão agora elevado ao estatuto de herói é uma cadela chamada CONAN segundo revelou a NEWSWEEK(2), uma PASTORA BELGA MALINOIS que ficou levemente ferida na operação, mas que já se encontra totalmente recuperada e apta para o serviço. O Pastor Belga Malinois está a tornar-se num cão de guerra preferencial, por ser rústico, valente, decidido, leve e ser mais fácil de transportar, rivalizando apenas com o Pastor Alemão em algumas missões. Quanto à morte do líder do Daesh, enquanto cristão e homem livre, eu não posso congratular-me com a morte de ninguém, mas acordo mais alegre e sinto-me muito mais seguro ao saber que há menos um assassino à solta!
(1)Uma operação destas, que existe precisão, só é possível mediante informações detalhadas, estudo rigoroso e uma preparação minuciosa, para além de não dispensar a informação de forças no terreno e a colaboração de países aliados. (2) Segunda maior revista de notícias norte-americana, publicada em Nova Iorque e distribuída nacional e internacionalmente.

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