quinta-feira, 10 de março de 2022

SOBRE AQUELAS MISERÁVEIS ROTINAS TORNADAS PROCEDIMENTOS

 

O adestramento canino acontece através de um conjunto de rotinas a que chamamos procedimentos. Os cães quando chegam à escola trazem consigo um conjunto de rotinas domésticas e voltam para casa com as ditas escolares. As rotinas domésticas e as escolares não deverão alternar-se ou substituir-se uma à outra, mas sim completar-se, eliminando-se aquelas que criam vícios como a manha, que causam dificuldades à liderança e que obstam ao ensino, disponibilidade e prontidão dos cães – que dificultam a assimilação cognitiva e por conseguinte a sua interacção. A possível substituição das rotinas nos cães deverá acontecer gradualmente, porque a entrada abrupta de novos procedimentos, enquanto abuso, pode gerar desinteresse, resistência e rotura nos animais (aqui a recompensa tem um importante papel a desempenhar). Penso que quanto a isto estamos todos de acordo, a menos que apareça algum iluminado, vindo não se sabe donde, um génio, que se faça entender aos cães por meios extra-sensoriais, pondo-os inclusive a falar para melhor entenderem e serem compreendidos.

De um jeito ou de outro, todos abominamos as rotinas, mesmo que lhe chamemos protocolos, ainda mais quando o ensino dos cães tem muito de lúdico, está carregado de emoções e desperta uns quantos sonhos, alguns até quase sufocados pelo tempo e tão antigos quanto os indivíduos, o que tantas vezes leva a extravasação a usurpar o lugar da regra e a evasão a suplantar-se ao procedimento correcto, havendo gente que invariavelmente, quase sem dar por isso, se deixa ir na onda, idiossincrasia que entre nós se tornou no provérbio “Perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe”. Por outro lado, o apego aos procedimentos exige dos donos uma liderança segura, disciplina, temperança, paciência e constância nas acções, predicados que não são extensíveis a todos e que por isso chegam a incomodar muitos. Acontece também com alguma frequência, mercê da dicotomia entre os indivíduos e a sua máscara, entre o que são e o que encobrem, que os cães chegam à escola para aprender e acabam por constituir-se em terapia para os seus donos, permitindo-lhes estes algum incumprimento, abuso e sublevação, entendendo todos os seus comportamentos, bons e maus, desejáveis e indesejáveis, como “pétalas de rosa caídas do céu”.

O acto de liderar ou comandar também não é muito comum entre os donos que procuram treinar os seus cães, porque são na sua maioria pessoas assalariadas, da classe média e de parco empreendedorismo, que procuram um mundo à parte ou ultrapassar a solidão que as afecta, que não estão para se incomodar demasiado e que procuram uma opção para fugir à dureza do dever que não lhes traz felicidade. A falta de apego aos procedimentos, às rotinas do treino, é a primeira responsável pelo insucesso dos binómios, por isso sempre será mais fácil treinar cães do que donos. Porém, sem apego aos procedimentos, o treino dificilmente surtirá os resultados esperados e a maioria dos donos acabará por andar, por tempo indeterminado, a deambular e a tentar enganar-se a si própria pelos campos de treino, contrariamente ao que o adestramento preconiza – uma mudança de atitude capaz de alterar o comportamento de um cão. As razões que induzem ao desprezo pelos procedimentos não se esgotam aqui, muito pelo contrário, mas não há nenhuma que o justifique.

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