quarta-feira, 1 de junho de 2016

REFLEXÕES SOBRE O CÃO QUE SE FAZ DESENTENDIDO

São tantos os exageros que ouvimos relativos aos cães que julgamo-los serem anjos ou demónios, tudo menos cães! Aos seus admiradores são falta trocar-lhes o pêlo por penas e pôr-lhes uma coleira com a palavra “inocente” em azul celeste. Aqueles que os temem vêem-nos como lobos devoradores, querem vê-los açaimados, bem presos e que lhes ponham uma coleira com a palavra “morte” em escarlate. E nisto, são os indiferentes que os vêem tal qual são: simplesmente cães!
O facto de conseguirmos levá-los a fazer o que queremos não significa que sejam desinteressados, até porque todos os predadores aprendem com a experiência e sempre procuram a vantagem. Quando um cão sabe ao que vai e não lhe agrada, bem depressa lança mão da manha e faz-se desentendido. Todos temos como verdade que a manha canina não tem uma origem genética, sendo uma invés resultado de influência ambiental e, eu não estou tão certo disso, talvez por haver trabalhado milhares de cães e ter conseguido identificar neles os principais impulsos herdados e o seu grau, relacionando-os com a maior ou menor resistência ao trabalho.
A disponibilidade laboral canina, e disto não parece não restar dúvidas, está intimamente ligada aos seus impulsos herdados (também a alguns instintos particulares e pormenores sensoriais) que suportam as diferentes disciplinas cinotécnicas. Assim, quando existe um são equilíbrio entre os seis impulsos herdados que mais importam ao treino (ao alimento, movimento, à defesa, à luta, ao poder e ao conhecimento), estamos na presença de animais polivalentes e versáteis, não de especialistas, exigindo estes uma selecção que lhes garanta a potenciação de um ou de mais impulsos inerentes à função a que se destinam, sem descorar a robustez, a resistência e a envergadura exigíveis.
Existem cães que se julgam manhosos sem o serem, animais cuja fragilidade física apela de imediato ao seu instinto de sobrevivência e outros que são atraiçoados pela precariedade dos seus impulsos herdados, para já não se falar dos afectados por qualquer tipo de doença, quer ela seja de ordem física ou psicológica, razões mais do que suficientes para que resistam ao que lhes é ordenado. Nenhum destes deverá ser considerado manhoso, uma vez que resistem passivamente e por incapacidade manifesta, culpa de quem os seleccionou e criou.
É verdade que qualquer dono pode tornar um cão manhoso, quando há cão a mais e dono a menos; quando a tolerância substitui indevidamente a exigência; quando os direitos desconsideram os deveres; quando se encontram desculpas para o indesculpável; quando os donos substituem a razão pela emoção; quando são pouco persistentes e desistem facilmente das suas intenções; quando apresentam dualismo de carácter; quando se deixam subornar psicologicamente; quando são avessos ou apresentam dificuldades de liderança; quando temem pela sua salvaguarda e por aí adiante - sempre que o cão leva a melhor e o dono consente, convencendo-se a animal que ali quem manda é ele, sendo esta uma das razões, porque há mais, que nos leva a dizer ser mais fácil educar cães do que donos! Qualquer cão nestas circunstâncias pode tornar-se manhoso independentemente do seu perfil psicológico, porque todos vivem de hábitos e resistem à perca de regalias. Alterar as posturas dos donos, tarefa mais difícil do que à partida parece, tende à resolução do problema, porque deve o seu aparecimento e subsistência à sua impropriedade ou desajuste.
O verdadeiro cão manhoso e que se faz desentendido não tem limitações físicas ou psicológicas, é forte por si mesmo, não obedece porque não quer e faz-se desentendido para não fazer, resistindo até à agressão se for contrariado, porque não está para servir mas para ser servido, deseja rumo próprio e não quer entraves no seu caminho, isto se o seu perfil psicológico o permitir e a riqueza dos seus impulsos à luta e ao poder o ampararem. Também os cães submissos podem tornar-se manhosos, muito embora a sua actuação seja diversa. Como vivem constantemente a observar os seus donos, depressa lhe apanham os fracos e apelam desmesuradamente à sua compaixão, chegando a fazer-se indispostos ou acometidos de doença súbita, apesar dela tender a ser crónica, tudo fazendo para não serem incomodados, verem satisfeitos os seus desejos e enveredarem pelo que lhes dá na real gana.
Os cães que se fazem desentendidos, porque são manhosos, assim com aprendem depressa, depressa se fazem esquecidos, porque possuem geralmente um razoável impulso ao conhecimento e aprendem a tirar partido das fraquezas dos seus donos. Um cão assim é uma tremenda dor de cabeça para o seu proprietário e um grande desafio para um adestrador. Nenhum método é capaz de substituir a liderança exigível a um dono e todos devem contribuir para sua investidura. De qualquer modo, caso se procurem culpados para o problema, eles sempre serão encontrados na pessoa dos donos, por não terem sabido escolher os seus companheiros ou educá-los convenientemente. Mas se também não fosse assim, para que serviriam as escolas caninas? 

Sem comentários:

Enviar um comentário