São tantos os
exageros que ouvimos relativos aos cães que julgamo-los serem anjos ou demónios,
tudo menos cães! Aos seus admiradores são falta trocar-lhes o pêlo por penas e
pôr-lhes uma coleira com a palavra “inocente” em azul celeste. Aqueles que os
temem vêem-nos como lobos devoradores, querem vê-los açaimados, bem presos e
que lhes ponham uma coleira com a palavra “morte” em escarlate. E nisto, são os
indiferentes que os vêem tal qual são: simplesmente cães!
O facto de
conseguirmos levá-los a fazer o que queremos não significa que sejam
desinteressados, até porque todos os predadores aprendem com a experiência e
sempre procuram a vantagem. Quando um cão sabe ao que vai e não lhe agrada, bem
depressa lança mão da manha e faz-se desentendido. Todos temos como verdade que
a manha canina não tem uma origem genética, sendo uma invés resultado de
influência ambiental e, eu não estou tão certo disso, talvez por haver
trabalhado milhares de cães e ter conseguido identificar neles os principais
impulsos herdados e o seu grau, relacionando-os com a maior ou menor
resistência ao trabalho.
A
disponibilidade laboral canina, e disto não parece não restar dúvidas, está
intimamente ligada aos seus impulsos herdados (também a alguns instintos
particulares e pormenores sensoriais) que suportam as diferentes disciplinas
cinotécnicas. Assim, quando existe um são equilíbrio entre os seis impulsos
herdados que mais importam ao treino (ao alimento, movimento, à defesa, à luta,
ao poder e ao conhecimento), estamos na presença de animais polivalentes e versáteis,
não de especialistas, exigindo estes uma selecção que lhes garanta a
potenciação de um ou de mais impulsos inerentes à função a que se destinam, sem
descorar a robustez, a resistência e a envergadura exigíveis.
Existem
cães que se julgam manhosos sem o serem, animais cuja fragilidade física apela
de imediato ao seu instinto de sobrevivência e outros que são atraiçoados pela
precariedade dos seus impulsos herdados, para já não se falar dos afectados por
qualquer tipo de doença, quer ela seja de ordem física ou psicológica, razões mais
do que suficientes para que resistam ao que lhes é ordenado. Nenhum destes deverá
ser considerado manhoso, uma vez que resistem passivamente e por incapacidade
manifesta, culpa de quem os seleccionou e criou.
É verdade que
qualquer dono pode tornar um cão manhoso, quando há cão a mais e dono a menos;
quando a tolerância substitui indevidamente a exigência; quando os direitos
desconsideram os deveres; quando se encontram desculpas para o indesculpável;
quando os donos substituem a razão pela emoção; quando são pouco persistentes e
desistem facilmente das suas intenções; quando apresentam dualismo de carácter;
quando se deixam subornar psicologicamente; quando são avessos ou apresentam
dificuldades de liderança; quando temem pela sua salvaguarda e por aí adiante -
sempre que o cão leva a melhor e o dono consente, convencendo-se a animal que
ali quem manda é ele, sendo esta uma das razões, porque há mais, que nos leva a
dizer ser mais fácil educar cães do que donos! Qualquer cão nestas
circunstâncias pode tornar-se manhoso independentemente do seu perfil
psicológico, porque todos vivem de hábitos e resistem à perca de regalias.
Alterar as posturas dos donos, tarefa mais difícil do que à partida parece,
tende à resolução do problema, porque deve o seu aparecimento e subsistência à
sua impropriedade ou desajuste.
O verdadeiro cão
manhoso e que se faz desentendido não tem limitações físicas ou psicológicas, é
forte por si mesmo, não obedece porque não quer e faz-se desentendido para não
fazer, resistindo até à agressão se for contrariado, porque não está para
servir mas para ser servido, deseja rumo próprio e não quer entraves no seu
caminho, isto se o seu perfil psicológico o permitir e a riqueza dos seus
impulsos à luta e ao poder o ampararem. Também os cães submissos podem
tornar-se manhosos, muito embora a sua actuação seja diversa. Como vivem
constantemente a observar os seus donos, depressa lhe apanham os fracos e
apelam desmesuradamente à sua compaixão, chegando a fazer-se indispostos ou
acometidos de doença súbita, apesar dela tender a ser crónica, tudo fazendo para
não serem incomodados, verem satisfeitos os seus desejos e enveredarem pelo que
lhes dá na real gana.
Os cães que se
fazem desentendidos, porque são manhosos, assim com aprendem depressa, depressa
se fazem esquecidos, porque possuem geralmente um razoável impulso ao
conhecimento e aprendem a tirar partido das fraquezas dos seus donos. Um cão
assim é uma tremenda dor de cabeça para o seu proprietário e um grande desafio
para um adestrador. Nenhum método é capaz de substituir a liderança exigível a
um dono e todos devem contribuir para sua investidura. De qualquer modo, caso
se procurem culpados para o problema, eles sempre serão encontrados na pessoa
dos donos, por não terem sabido escolher os seus companheiros ou educá-los
convenientemente. Mas se também não fosse assim, para que serviriam as escolas
caninas?
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