Apesar
de andarmos já fartos dos lobisomens hollywoodescos, versões optimizadas,
andróginas e híbridas do nosso imaginário popular, a ideia da sua existência e
presença não desaparecerá para breve, porque rende rios de dinheiro, há quem
não dispense o medo e trema diante da sua própria sombra, quem se apaixone e
embriague pelo sobrenatural e quem faça dele o seu cavalo de batalha para
amedrontar os outros, usando-o para explicar o inexplicável e como meio para
dominar sobre os demais, à falta doutros predicados ou condições. É na Beira
Baixa que esta crença e imaginário se encontram mais enraizados entre nós,
talvez pela sua geografia e isolamento, quiçá também pela miscigenação sanguínea,
cultural e mística de visigodos, árabes e judeus nos seus povoados (já
Alexandre Herculano falava da presença de “lobisomens” no imaginário daquelas
paragens).
É
bem possível que a cultura greco-romana, que Roma nos trouxe pelo peso das
armas, tenha dado novo impulso a antigas crenças celtas e celtiberas há muito
presentes na Península. De qualquer modo, muitos de nós são supersticiosos e
dados a aceitar manifestações sobrenaturais. Assim, se os beirões do interior e
os transmontanos têm os lobisomens, os outros nortenhos são dados a almas do
outro mundo (almas penadas), os do centro-sul a aparições e os sulistas
agarram-se a lendas e maldições, sendo todos presa fácil para os tradicionais
bruxos e para os modernos curandeiros, que continuam a engordar a olhos vistos
- uma “profissão” com futuro, mais para os primeiros do que para os últimos,
que há algum tempo entrarem em descrédito.
O
Lobisomem português, produto do nosso imaginário colectivo e endémico da Beira
Baixa, descrito no Séc. XIX por Alexandre Herculano, é um pobre homem que se
despe em qualquer caminho durante a noite, principalmente nas encruzilhadas,
onde depois de dar cinco voltas, acaba por se espojar no lugar onde um animal
fez o mesmo, adquirindo depois disso a figura do pré-espojado. Mostra aversão a
caminhos e ruas iluminadas, soltando assopros e assobios para que apaguem as
luzes, não fazendo mal a ninguém. Apesar do termo indicar uma criatura
humano-lupina, vários etnógrafos adiantam que estas pobres criaturas podem
ainda adquirir a fisionomia ou traços de cavalo, burro e até de bode por volta
da meia-noite.
Se
o lobisomem humano não o é por vontade própria mas dominado pelo distúrbio da
licantropia, sendo por isso mesmo um psicopata, gente que à partida se julga
saudável, acabou voluntariamente por criar e seleccionar um gato conhecido como
“Gato-Lobisomem” (Werewolf Cat), o Lykoi, nome que em grego
significa “lobos”, que é feio como trinta, maioritariamente negro, semi careca,
pouco visto e quase desconhecido, aproveitando-se duma mutação natural ocorrida
no gato doméstico de pelo curto, proeza que teve a sua origem em Vonore, no
Tennessee/US. Este gato de aspecto fantasmagórico é muito raro, daí ser notícia
quando aparece algum num sítio improvável, como aconteceu no passado dia 23 de
Maio, num jardim público da Cidade do Cabo/África do Sul. Conhecemos
acidentalmente há algumas décadas atrás um indivíduo, que julgamos não ser caso
único e de quem duvidámos da sua saúde mental, que se divertia a cortar a cauda
e as orelhas aos gatinhos recém-nascidos que encontrava, no intuito de assustar
os seus vizinhos e restante população das redondezas, uma vez que os animais
mutilados, por serem tão estranhos e diabólicos de aspecto, horrorizavam e repugnavam
quem os avistava (hoje em dia ainda há quem associe, estupidamente, os gatos
negros a bruxas, bruxarias e mau agoiro).
A
crença do lobisomem não pode ser dissociada da ancestral e tristemente
folclórica história do lobo-mau, que tem vindo a condenar a sobrevivência do
lobo ao longo de milénios, enquanto predador associado ao castigo e à chacina, apesar de
ser um animal capaz de interagir com os humanos sem maiores dificuldades. A
mitologia grega também contribuiu para a desgraça através de várias lendas,
sendo a de “Licaón” a mais conhecida, quando Zeus o transforma em lobisomem.
Como curiosidade adianta-se que o nome científico atribuído ao Mabeco (cão
selvagem africano) é “Lycaon Pictus”. Debaixo do mesmo medo e despropósito, e
infelizmente com o mesmo desfecho, se alcunhou o canídeo marsupial da Ilha
australiana da Tasmânia de “Diabo” ou “Demónio da Tasmânia” (Sarcophilus
harrisii), hoje à beira da extinção.
Mas
irá ser na canicultura que a lenda do lobisomem ganhará maior peso e melhor
encarnará, quer pela hibridação directa com o lobo (regresso ao atavismo) quer
pela procura de raças mais ferozes, agressivas, punitivas, dolosas e até
letais, usadas até à presente data como cães de guerra, policiais, de guarda e
de luta, a partir de alterações morfológicas alcançadas pela selecção humana à
revelia da natural, associadas a uma maior territorialidade e força de
mordedura, à potenciação de instintos e de certos impulsos inatos. Ao fazê-lo,
criámos autênticos lobisomens, porque juntámos à carga instintiva canina procurada
a maldade fratricida presente nos homens, fusão e constituição que o tempo e
treino possibilitam, ambição que nalguns casos pouco ou nada se distancia do
que vulgarmente entendemos por “terrorismo doméstico” (a prová-lo estão as
disposições legais relativas aos cães perigosos adoptadas no mundo ocidental e a
morte de pessoas que vai ocorrendo um pouco por toda a parte). Com a lenda viva,
o medo instalado e a besta encarnada, certos cães são vistos por muitos como
autênticos diabos à solta - verdadeiros lobisomens devoradores, ainda que na
maior parte dos casos jamais o sejam, tal é força que o medo tem quando se
apossa de nós!
Acabar
com a lenda na canicultura irá exigir o esforço simultâneo de criadores e cinófobos,
cabendo aos primeiros alterar os seus critérios de selecção e aos segundos
levar de vencida o seu pavor, o que não é uma tarefa fácil mas que é urgente e
necessária. Ao longo destes sete anos, temos apelado aos criadores de cães para
que optem pela potenciação do impulso ao conhecimento nos seus cães, tornando-o
dominante sobre os demais, pormenor que os tornará mais fiáveis e menos
instintivos, facilitará o seu controlo e enriquecerá o seu uso. Oxalá nos
tenham dado ouvidos e assim continuem a proceder. Ao mesmo tempo, temos incentivado
aqueles que têm medo de cães a familiarizarem gradualmente com eles,
particularmente as crianças, aconselhando a todos que se desloquem às escolas
caninas para o efeito, esforço que os isentará amanhã de virem a ser mordidos e
de se constituírem em presas. Temos também aconselhado a aquisição de um
cachorro como animal de companhia preferencial para as crianças, sabendo dos
benefícios para os infantes dessa interacção, que vão muito para além da
desejável familiarização entre homens e cães.
Estamos
cá para dar caça ao medo infundado e encontrar solução para ele, não tememos lobisomens
de espécie nenhuma, ao invés sempre os lamentámos e temos-lhes dó: os humanos
porque são doentes, os felinos porque são vítimas da aberração humana e os
caninos porque mais certo ou mais tarde acabarão abatidos. E entre a ficção e a
realidade, mais nos importa ter imaginação para engrandecer os momentos que a
vida nos dá, transmitindo aos que nos acompanham momentos únicos e inolvidáveis.
Atentar para lendas? Só quando as insónias nos atacam e precisamos de enganar o
cérebro para voltarmos a adormecer!
PS: Há quem conte carneiros!
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