Este artigo não é uma
despedida nem um mau presságio, somente uma manifestação de gratidão. Há quem
diga que o melhor que se leva desta vida é o comer, o beber e outros prazeres
que se fazem em oculto (só a violência é pública) e, caso seja verdade, não
compreendo porque temos um Cemitério dito dos Prazeres em Lisboa, será por
morrerem para aqueles que vão para lá? Seja como for, o nome de tal cemitério
não deixa de ser bizarro e de alvitrar algo de punitivo.
Como tenho andado a
enganar a morte desde o dia em que nasci e sei que um dia ela me ceifará, (nunca
a temi deveras, aceito-a com naturalidade e não a vejo como um castigo, o que
não significa que alguma vez a tenha desejado ou deixado de viver intensamente
por causa dela), dou comigo a fazer balanços constantes de tudo e de nada,
procurando significado para os diferentes momentos que vivi, ajudado pela idade
que para ela se encaminha e pela memória que ainda não me atraiçoa. Quem me vê
julga-me bem, há quem diga que não pareço ter os anos que tenho, ao que eu
respondo que também ninguém mos tira!
Esta manhã dei comigo a
fazer “actualizações” e quase inconscientemente pus-me a pensar no melhor que
levo desta vida com os cães! Podia-me ter dado para pior e acordar “a pensar na
morte da bezerra”, o que estranhamente já me tem acontecido sem qualquer
justificação aparente. Ao recordar a minha trajectória na canicultura
(selecção, criação e treino), o que mais se agiganta não é aquilo que fiz pelos
cães mas o muito que me deram, conclusão ou conclusões que pretendo agora dividir
com os leitores deste blogue, antes que seja apanhado numa curva e não tenha
tempo para o fazer.
Contrariamente ao que
tenho passado com alguns (poucos) dos meus semelhantes, gentalha cuja menção já
é exagero quanto baste, os meus cães nunca me traíram, maldisseram ou abandonaram,
ao invés sempre se fizeram presentes quando mais necessitava deles, mesmo nos
momentos em que mal lhes podia valer ou não lhes prestava a atenção e cuidados
que mereciam, esforçando-se acima do que podiam para me fazer feliz, a troco de
quase nada, despertando-me inclusive para a esperança quando o desalento me
dominava. Com eles fui e sou mais forte, porque desde muito novos me reconheceram
e reconhecem como seu líder e membro do seu grupo e, aqueles que já partiram,
fizeram-no debaixo da mesma condição, dedicação que melhor me faz compreender a
devoção e reverência que os antigos egípcios tinham pelo deus Anúbis, um ícone representado
com cabeça de cão, a quem cabia guiar as almas dos mortos. Talvez por nunca os
ter conseguido enganar, ninguém me conheceu e conhece como eles, uma vez
conhecedores das minhas facetas de anjo e demónio, do bem que habita em mim e do
mal que me subjuga, apesar de nunca lhes haver atribuído ou reconhecido
qualidades humanas.
É essa compreensão dos donos
e dos seus diferentes estados anímicos (que raramente é recíproca, pois nenhum
cão vai para uma escola para entender o dono, são os donos que vão para lá para
se fazerem entender pelos cães), que mais guardo na memória e que me “obriga” a
ser-lhes grato, como se houvessem nascido exclusivamente para me servir. É essa
dívida e nada mais, que continua a impelir-me para educá-los e a contemporizar
com as impropriedades abissais de alguns donos. E nisto são os cães inocentes
duas vezes: inocentes porque querem compreender e não os entendem e inocentes
porque infelizmente não podem sobreviver sozinhos (tomara eles que não os
abandonem, maltratem ou matem).
Com os cães que seleccionei,
criei e treinei, vali a milhares de binómios, conheci pessoas interessantes, que
doutro modo jamais alcançaria, descobri cães de enorme potencial e grande
cumplicidade, descortinei os principais propósitos selectivos das diferenças raças
caninas e tornei muita gente feliz, devolvendo-lhe o prazer intemporal e único da fusão de propósitos entre homens e cães. Os meus cães ajudaram-me a crescer,
lapidaram o homem que fui e fizeram-me melhor, reforçaram o meu espírito solidário,
angariam-me excelentes amigos, desnudaram as minhas limitações e obrigaram a
superar-me. Eles foram o melhor veículo para a felicidade que encontrei nas
últimas décadas e, continuam a surpreender-me. Sei hoje que não fui eu que nasci
para eles, foram eles que vieram ao meu encontro. Tem valido a pena viver ao seu lado!
Por tudo isto, quando este
velho adestrador partir, que espero e luto não ser para já, caso queiram
homenageá-lo, porque há sempre quem se agrade de cultuar os mortos, hábito pouco salutar, arranjem um
cão e compreendam-no, porque dediquei a minha vida a fazê-lo e não digam: “
foi-se um homem que gostava de cães – um encantador”, digam antes: “ partiu um
homem que foi amado pelos cães – um seu devedor”, certos de que assim não
fugirão à verdade.
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