sábado, 4 de junho de 2016

O MELHOR QUE LEVO DESTA VIDA (COM OS CÃES)

Este artigo não é uma despedida nem um mau presságio, somente uma manifestação de gratidão. Há quem diga que o melhor que se leva desta vida é o comer, o beber e outros prazeres que se fazem em oculto (só a violência é pública) e, caso seja verdade, não compreendo porque temos um Cemitério dito dos Prazeres em Lisboa, será por morrerem para aqueles que vão para lá? Seja como for, o nome de tal cemitério não deixa de ser bizarro e de alvitrar algo de punitivo.
Como tenho andado a enganar a morte desde o dia em que nasci e sei que um dia ela me ceifará, (nunca a temi deveras, aceito-a com naturalidade e não a vejo como um castigo, o que não significa que alguma vez a tenha desejado ou deixado de viver intensamente por causa dela), dou comigo a fazer balanços constantes de tudo e de nada, procurando significado para os diferentes momentos que vivi, ajudado pela idade que para ela se encaminha e pela memória que ainda não me atraiçoa. Quem me vê julga-me bem, há quem diga que não pareço ter os anos que tenho, ao que eu respondo que também ninguém mos tira!
Esta manhã dei comigo a fazer “actualizações” e quase inconscientemente pus-me a pensar no melhor que levo desta vida com os cães! Podia-me ter dado para pior e acordar “a pensar na morte da bezerra”, o que estranhamente já me tem acontecido sem qualquer justificação aparente. Ao recordar a minha trajectória na canicultura (selecção, criação e treino), o que mais se agiganta não é aquilo que fiz pelos cães mas o muito que me deram, conclusão ou conclusões que pretendo agora dividir com os leitores deste blogue, antes que seja apanhado numa curva e não tenha tempo para o fazer.
Contrariamente ao que tenho passado com alguns (poucos) dos meus semelhantes, gentalha cuja menção já é exagero quanto baste, os meus cães nunca me traíram, maldisseram ou abandonaram, ao invés sempre se fizeram presentes quando mais necessitava deles, mesmo nos momentos em que mal lhes podia valer ou não lhes prestava a atenção e cuidados que mereciam, esforçando-se acima do que podiam para me fazer feliz, a troco de quase nada, despertando-me inclusive para a esperança quando o desalento me dominava. Com eles fui e sou mais forte, porque desde muito novos me reconheceram e reconhecem como seu líder e membro do seu grupo e, aqueles que já partiram, fizeram-no debaixo da mesma condição, dedicação que melhor me faz compreender a devoção e reverência que os antigos egípcios tinham pelo deus Anúbis, um ícone representado com cabeça de cão, a quem cabia guiar as almas dos mortos. Talvez por nunca os ter conseguido enganar, ninguém me conheceu e conhece como eles, uma vez conhecedores das minhas facetas de anjo e demónio, do bem que habita em mim e do mal que me subjuga, apesar de nunca lhes haver atribuído ou reconhecido qualidades humanas.
É essa compreensão dos donos e dos seus diferentes estados anímicos (que raramente é recíproca, pois nenhum cão vai para uma escola para entender o dono, são os donos que vão para lá para se fazerem entender pelos cães), que mais guardo na memória e que me “obriga” a ser-lhes grato, como se houvessem nascido exclusivamente para me servir. É essa dívida e nada mais, que continua a impelir-me para educá-los e a contemporizar com as impropriedades abissais de alguns donos. E nisto são os cães inocentes duas vezes: inocentes porque querem compreender e não os entendem e inocentes porque infelizmente não podem sobreviver sozinhos (tomara eles que não os abandonem, maltratem ou matem).
Com os cães que seleccionei, criei e treinei, vali a milhares de binómios, conheci pessoas interessantes, que doutro modo jamais alcançaria, descobri cães de enorme potencial e grande cumplicidade, descortinei os principais propósitos selectivos das diferenças raças caninas e tornei muita gente feliz, devolvendo-lhe o prazer intemporal e único da fusão de propósitos entre homens e cães. Os meus cães ajudaram-me a crescer, lapidaram o homem que fui e fizeram-me melhor, reforçaram o meu espírito solidário, angariam-me excelentes amigos, desnudaram as minhas limitações e obrigaram a superar-me. Eles foram o melhor veículo para a felicidade que encontrei nas últimas décadas e, continuam a surpreender-me. Sei hoje que não fui eu que nasci para eles, foram eles que vieram ao meu encontro. Tem valido a pena viver ao seu lado!
Por tudo isto, quando este velho adestrador partir, que espero e luto não ser para já, caso queiram homenageá-lo, porque há sempre quem se agrade de cultuar os mortos, hábito pouco salutar, arranjem um cão e compreendam-no, porque dediquei a minha vida a fazê-lo e não digam: “ foi-se um homem que gostava de cães – um encantador”, digam antes: “ partiu um homem que foi amado pelos cães – um seu devedor”, certos de que assim não fugirão à verdade.

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