Regressar
ou visitar o Norte do País, génese da nossa identidade histórica e étnico-cultural
que mais nos liga aos velhos povos europeus, parte menos visitada por turistas
nacionais e estrangeiros, é uma viagem dentro do que somos e uma tomada de consciência
do lugar ou lugares donde viemos – um regresso a casa. E quanto mais nos
infiltramos no seu interior, maior é o nosso desnudo, porque ali vemos rostos
que nos parecem familiares e que nunca vimos, tradições e modos de ser que adoptámos
quase sem saber porquê. Tudo ali ganha sentido, mesmo o oculto que não
confessamos, a terra chama-nos, a sabedoria popular cativa-nos e somos submersos
no que sempre fomos: um Povo livre, simples, hospitaleiro, valente e solidário.
Numa aldeia comunitária da
Serra de Montesinho, ouvi pela milionésima vez e com o mesmo encanto, a
história da noite em que os lobos desceram ao povoado, contada por uma velha
anciã num dialecto que se perde no tempo e que provavelmente será silenciado.
Vamos reproduzi-la aqui “na fala de Lhisboua” (português)
para que todos a possam compreender. Certa noite de invernia, com a neve a unir
os vales às encostas, uma matilha de lobos esfomeados aproximou-se da aldeia em
silêncio e ávida de comida, vinda do lado espanhol e sem a companhia da lua. Os
habitantes da aldeia dormiam em suas casas e os poucos cães que por lá havia,
descansavam nas lojas ou abrigavam-se debaixo das escadas de pedra e castanho
bravo. Nem uns nem outros esperavam ser visitados naquela noite que parecia
igual a tantas outras.
Os cães, meia-dúzia deles,
acordaram estremunhados e um após outro começaram a alvoraçar-se, ganindo
depois para que os soltassem. A sua inquietação e gemidos foram entendidos
pelos aldeões como um mau presságio, porque aquele comportamento era geralmente
associado à passagem duma tempestade, à perca duma cria ou à morte de alguém.
Também os lobos se aperceberam da aflição dos cães e inexplicavelmente
começaram a uivar, primeiro isoladamente e depois em uníssono, no que foram
secundados pelos cães. Parecia uma noite do demo e havia quem esperasse o pior.
No meio daquela desastrosa cantoria houve quem fosse para junto do gado, munido de tudo aquilo que lhe servisse de arma. Finalmente soltaram-se os cães, que de
imediato se lançaram no encalce dos lobos até se perderem de vista.
Cerca de duas horas
depois, já com a aldeia serenada e o gado quieto, os cães voltaram, um após o
outro e sem nenhuma mazela. Contudo, não voltaram a ser como dantes, passaram a
uivar com frequência, sem lobos na serra, sem presságio de coisa alguma e sem
qualquer razão aparente. “Quererien ser lhobos?” A partir
daquela noite foi criada uma máxima pelos mais velhos que ficou para sempre na
memória do povo: “Quien anda cun lhobos uiba cumo eilhes” (quem anda com lobos
uiva como eles). Assim são cães, assim são os homens, porque ambos dependem em
parte das boas ou más companhias que os cercam. Tudo isto se passou sem o
conhecimento prévio ou influência da célebre sentença do místico arménio Georgiǐ
Ivanovič Gǐurdžiev: “Quando estiveres entre os lobos,
uiva como eles”. O Portugal profundo encerra conhecimentos e verdades advindas
da experiência que, ao passarem de geração em geração, se transformaram em
lições de vida. Não acreditamos que aqueles cães desejassem ser lobos, somente
se identificaram com eles e “descobriram” a sua origem, regressando ao atavismo
pelo apelo natural.
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