segunda-feira, 6 de junho de 2016

QUEM ANDA COM LOBOS UIVA COMO ELES

Regressar ou visitar o Norte do País, génese da nossa identidade histórica e étnico-cultural que mais nos liga aos velhos povos europeus, parte menos visitada por turistas nacionais e estrangeiros, é uma viagem dentro do que somos e uma tomada de consciência do lugar ou lugares donde viemos – um regresso a casa. E quanto mais nos infiltramos no seu interior, maior é o nosso desnudo, porque ali vemos rostos que nos parecem familiares e que nunca vimos, tradições e modos de ser que adoptámos quase sem saber porquê. Tudo ali ganha sentido, mesmo o oculto que não confessamos, a terra chama-nos, a sabedoria popular cativa-nos e somos submersos no que sempre fomos: um Povo livre, simples, hospitaleiro, valente e solidário.
Numa aldeia comunitária da Serra de Montesinho, ouvi pela milionésima vez e com o mesmo encanto, a história da noite em que os lobos desceram ao povoado, contada por uma velha anciã num dialecto que se perde no tempo e que provavelmente será silenciado. Vamos reproduzi-la aqui “na fala de Lhisboua” (português) para que todos a possam compreender. Certa noite de invernia, com a neve a unir os vales às encostas, uma matilha de lobos esfomeados aproximou-se da aldeia em silêncio e ávida de comida, vinda do lado espanhol e sem a companhia da lua. Os habitantes da aldeia dormiam em suas casas e os poucos cães que por lá havia, descansavam nas lojas ou abrigavam-se debaixo das escadas de pedra e castanho bravo. Nem uns nem outros esperavam ser visitados naquela noite que parecia igual a tantas outras.
Os cães, meia-dúzia deles, acordaram estremunhados e um após outro começaram a alvoraçar-se, ganindo depois para que os soltassem. A sua inquietação e gemidos foram entendidos pelos aldeões como um mau presságio, porque aquele comportamento era geralmente associado à passagem duma tempestade, à perca duma cria ou à morte de alguém. Também os lobos se aperceberam da aflição dos cães e inexplicavelmente começaram a uivar, primeiro isoladamente e depois em uníssono, no que foram secundados pelos cães. Parecia uma noite do demo e havia quem esperasse o pior. No meio daquela desastrosa cantoria houve quem fosse para junto do gado, munido de tudo aquilo que lhe servisse de arma. Finalmente soltaram-se os cães, que de imediato se lançaram no encalce dos lobos até se perderem de vista.
 
Cerca de duas horas depois, já com a aldeia serenada e o gado quieto, os cães voltaram, um após o outro e sem nenhuma mazela. Contudo, não voltaram a ser como dantes, passaram a uivar com frequência, sem lobos na serra, sem presságio de coisa alguma e sem qualquer razão aparente. “Quererien ser lhobos?” A partir daquela noite foi criada uma máxima pelos mais velhos que ficou para sempre na memória do povo: “Quien anda cun lhobos uiba cumo eilhes” (quem anda com lobos uiva como eles). Assim são cães, assim são os homens, porque ambos dependem em parte das boas ou más companhias que os cercam. Tudo isto se passou sem o conhecimento prévio ou influência da célebre sentença do místico arménio Georgiǐ Ivanovič Gǐurdžiev: “Quando estiveres entre os lobos, uiva como eles”. O Portugal profundo encerra conhecimentos e verdades advindas da experiência que, ao passarem de geração em geração, se transformaram em lições de vida. Não acreditamos que aqueles cães desejassem ser lobos, somente se identificaram com eles e “descobriram” a sua origem, regressando ao atavismo pelo apelo natural. 

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