Eu nunca me deixei
enlear pela rivalidade hispano-portuguesa, penso até que ela será melhor
sustentada entre os menos letrados, que nasceu de interesses políticos e que
foi sucessivamente alimentada por outros para exercerem o seu domínio,
impedirem a nossa unidade e possível grandeza. E como abutres também os temos
por cá, não será o espanhol que me causará espanto. Temos com os espanhóis
laços sanguíneos e culturais tão profundos que os quase novecentos anos de
independência não conseguiram apagar, inclusive na língua ou nas línguas, pois há
que referir o mirandês, derivando o português do galego e o mirandês duma raiz
asturo-leonesa. O nosso primeiro parceiro comercial é a Espanha, tudo o que
nela se passa reflecte-se em Portugal e vice-versa, dividimos rios e tradições,
comungamos da mesma fé e temos as mesmas expectativas, sofremos idênticas
influências demográficas e dividimos o mar entre os dois. Não será um contra-senso
terem as duas nações aderido ao “Espaço
Schengen” e ainda se falar em fronteiras e barreiras entre elas? Para mim,
besta parda e pouco inteligente, Portugal é uma porta aberta para Espanha, a
Espanha vai até à Ponta de Sagres e Portugal estende-se até ao Sul de França,
até a os limites geográficos do outrora Reino de Navarra. Pondo de parte as
minhas convicções pessoais e considerações históricas, vamos tratar agora duma
tradição espanhola que causa arrepios: o martírio dos galgos, que por cá também
tem alguns adeptos e ignorantes do mesmo calibre.
Tomemos como local
endémico para a barbárie Medina del Campo, muito embora a tradição se estenda a
outras províncias espanholas, Município de Valladolid, na Comunidade Autónoma
de Castilla y León, onde decorre todos os anos o Campeonato Nacional de Galgos.
Em Fevereiro, quando termina a caça à lebre, estima-se que anualmente sejam abatidos
e abandonados cerca de 50 000 galgos, ali entendidos como ferramentas
desnecessárias quando a caça termina. “Tradicionalmente” nessa ocasião,
restando saber a sua origem e causa, se de um grupo étnico em particular se da
macedónia de povos na nossa origem, muitos galgos acabam enforcados nas
árvores: os que correram bem são presos nos galhos mais altos para morrerem
rapidamente; os que correram mal são presos nos galhos mais baixos, com as
patas traseiras mal assentes no chão, para terem uma morte mais lenta e dolorosa,
ficando para ali a gemer e a estrebuchar pela noite dentro, até que a morte os
leve e apodreçam, incomodando e chocando de sobremaneira a impotente vizinhança
(estamos a falar de galgos de 2 a 3 anos de idade). Há também quem os jogue
para dentro de poços e lhes quebre as patas traseiras para que não possam
retornar a casa, os enterre vivos, regue com gasolina, os arraste atrás de
carros e os torture com ácido e cigarros.
Mercê das campanhas
de denúncia nacionais e estrangeiras, nas quais se incluiu a “Fundação Brigitte
Bardot”, o número de galgos e podengos enforcados e mutilados tem vindo a
diminuir, apesar da “tradição” continuar de pé, o que tem sobrado para as
associações de recolha de animais, que recebem compulsiva e anualmente 500 cães destes quando a época da caça termina, considerados “lixo” ou “entulho” por quem os entrega. Esta prática
hedionda e inqualificável, própria de gentalha que não acompanhou o progresso
da humanidade e que não devia cá estar, choca até quem não tem qualquer simpatia por cães. Não obstante, até tem uma estátua em Terras da Coroa
Espanhola, o que não deixa de ser uma vergonha para a Casa Real e para o Povo
Espanhol em geral. Com gente assim não admira que o ex-Rei Juan Carlos tenha
ido para o Quénia matar elefantes, caçada que só fez jus à sua cultura!
Não teremos por cá
gente assim? O envenenamento, a tortura, o abate e o abandono dos cães que aqui
acontecem são prova disso! Será o “fenómeno” restrito à Península Ibérica?
Infelizmente não, mas por certo não se fará tão presente nas nações mais
evoluídas, sendo ao invés prática corrente nas mais miseráveis. Agora
compreendo porque os galgos espanhóis têm um olhar tão vago e vazio: eles
pressentem a morte! É possível que os portugueses sejam mais moderados que alguns
espanhóis, mais amigos da patuscada do que chegados à matança, apesar de sempre
despontarem por aqui bestas iguais aos galgueiros do País vizinho. Sendo
português e mesmo que não gostasse de cães, sinto-me chocado, revoltado e
envergonhado, chocado pela matança em si, revoltado porque não tem qualquer explicação e perante a minha impotência, envergonhado porque nas minhas veias
corre sangue galego, de Pontevedra. Sinto-me do mesmo modo e pelas mesmas
razões, quando vejo um famélico e franzino índio peruano a tocar flauta pelas
nossas ruas, pois não consigo segurar a emoção e tenho que virar costas antes que as
lágrimas me corram pela cara abaixo, porque me sinto também responsável pelos
genocídios perpetrados pelos “conquistadores”. Apesar de termos de “arrumar”
primeiro a nossa casa, todos somos poucos para denunciar e acabar com tradições
como estas, que acontecem mesmo aqui ao lado e sem darmos por isso. Dum momento
para o outro, passei a gostar ainda mais de galgos!
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