terça-feira, 21 de junho de 2016

“E, COMO NÃO MORDIA ÀS TÍMIDAS CRIANÇAS, AS CRIANÇAS CORRIAM-NO À PEDRADA”

O título deste artigo foi extraído do poema “FIEL” de Guerra Junqueiro (1850-1923), um poeta que vale a pena redescobrir e que parece remetido para empoeiradas e esquecidas antologias da literatura portuguesa, um transmontano como tantos outros que confinou num corpo a sua enorme grandeza de alma, visível em versos simultaneamente ingénuos e profundos, duma candura que não esconde a inquietude de quem observa, vive e sente. Ler Junqueiro é um regresso a casa, é fechar a porta da rua e abrir uma janela para os sentidos, uma viagem para dentro de nós e para os ancestrais valores que nos erigiram, um despertar para a liberdade e um banho de nacionalidade que se estendeu e perde por todo o mundo. Com o calor que aí vem, a brisa fresca dos seus versos vem mesmo a calhar, pelo que aconselhamos a sua leitura.
Com esta estrofe introduzimos o tema de hoje sobre o relacionamento entre as crianças e os cães, nem sempre fácil, passível de riscos e por isso mesmo necessitado de regras, visando a salvaguarda duns e doutros, muitas vezes postas em causa pela ingenuidade de pais e donos que, deslumbrados pelo quadro, não antevêem o perigo desses relacionamentos extemporâneos visíveis por toda a parte.
Importa dizer que os cães de terapia e de conforto são-no pelo seu particular psicológico e objecto de treino aturado, que as suas acções e reacções são mecânicas pelo condicionamento efectuado, muito embora não se livrem do stress provocado por esses serviços comunitários, uma vez que a sua estrutura e escalonamento social biológico não abrangem gratuitamente um número tão grande de indivíduos e muito menos completamente desconhecidos, comportando-se grande número deles de modo passivo, interagindo somente mediante exercícios supostamente do seu agrado, por convite ou indução dos seus treinadores. Nenhum cão gosta de ser abraçado, mesmo pelo próprio dono, a mímica que adquirem disso dá mostras e quando abalroados por estranhos sentem-se ainda mais vulneráveis, obrigados a pertencer a outro grupo que não é o seu e que não escolheram, aceitando essa sorte pelo apego, dependência e condicionamento relativos aos seus líderes, ainda que estes digam exactamente o contrário, o que se compreende diante do carácter da sua missão. E cães de terapia e conforto, porque são raros, não saltaricam pelas ruas como praga de gafanhotos em searas, sobrando ao invés pelas calçadas cães necessitados de escola e de boas maneiras.
Todas as crianças deverão familiarizar-se e sociabilizar-se com os cães, porque eles estão cá e são cada vez mais, para que vençam o medo e não se constituam em suas presas ou vítimas. Porém, essa necessidade pedagógica, tornada obrigatória nos tempos que correm pela proliferação destes animais, deverá considerar o tipo de cão que temos pela frente (o seu tamanho, envergadura, energia e comportamento) e o particular da criança (idade, grau de autonomia, destreza, senso de responsabilidade e comportamento), porque doutro modo as nossas intenções poderão atentar contra o seu desejável propósito e gerar traumas infantis de difícil eliminação.
Já perdemos a conta ao número de vezes em que vimos crianças embaraçadas em trelas, atiradas ao chão, mordiscadas, mordidas, feridas, perseguidas, espoliadas do seu alimento e brinquedos, tudo por culpa dos pais, a quem cabe zelar pela salvaguarda, segurança e bem-estar dos filhos, gente descuidada e mais ligada à angelologia que insiste em ver os cães como arcanjos, serafins e querubins, vendo-os depois como demónios diante de qualquer percalço, porque deixaram avançar as crianças sozinhas para cima dos cães, muitas vezes até sem os seus donos se aperceberem disso.
Muitas das escaramuças havidas entre crianças e cães resultam de comportamentos abusivos dos infantes, que por estranheza, medo, desejo de domínio ou maldade, agridem os cães a pontapé, varapau ou à pedrada, havendo outros que inconsciente ou deliberadamente enfiam-lhes os dedos nos olhos, puxam-lhes as orelhas, língua, manto e cauda, merecendo dos animais uma ou mais dentadas de defesa pela dor e mal-estar causados. Sim, “há garotos levados do diabo”, cujo comportamento não lesa só os cães e que mais envergonha os pais diante dos outros, postura que tende a agravar-se e a perpetuar-se caso não venha a ser denunciada, contrariada e abandonada.
Assim como os cães necessitam de ensino e normas para aprenderem a respeitar as crianças, também estas deverão ser ensinadas a comportar-se adequadamente diante dos cães, ensino que é da responsabilidade dos seus progenitores e demais família, que uma vez assimilado reduzirá quase a zero a possibilidade de virem a ser mordidas pelos seus cães e por aqueles que encontram nas ruas. Seguidamente enumeraremos os procedimentos correctos para um pai que circula na via pública com uma criança pequena pela mão (de 2 a 5 anos de idade) e que avista um cão, oportunidade que deseja aproveitar para sociabilizar a criança com aquele animal e outros iguais.
A sociabilização da criança com o cão jamais deverá ser forçada, deverá acontecer naturalmente como parte do seu quotidiano, pelo que mais vale circular ao redor do cão do que parar e obrigar à sua apresentação. Tudo deverá acontecer gradualmente porque a familiarização e o tempo concorrem para a almejada sociabilização (assim acontecia no mundo rural). Se ao avistar o cão, a criança manifestar algum tipo de receio, pegue-a ao colo e serene-a, caminhe primeiro ao redor do cão para que ela se aperceba da inexistência de perigo, numa distância que impeça o empoleirar do animal sobre ambos, o que a acontecer poderia assustá-la.
Caso a criança não se alarme ou manifeste o desejo de tocar no cão, inquira do comportamento do animal e peça autorização ao dono, sugerindo-lhe que o mantenha quieto. Baixe-se depois com a criança e tome a iniciativa de acariciar o animal, estratégia que lhe dará um conhecimento mais tangente das características do cão e que aumentará os níveis de confiança da criança. Não a force a tocar no animal, porque a adaptação das crianças não é automática, terá mais dias para isso e importa a cada dia o seu ganho. Ensine-lhe como acariciar o cão e desperte nela o gosto pela companhia do animal. De início dê preferência a cães mais pequenos e ajuizados, geralmente conduzidos por senhoras e gente madura. Pouco a pouco vá-lhe ensinando as salutares regras de convivência entre pessoas e cães, baseadas no respeito pelos animais, coisa mais simples do que ensinar-lhe a andar de bicicleta.
A maior parte dos acidentes entre cães e crianças acontecem entre os seis anos e a chegada da puberdade dos infantes, ocasião em que já são mais autónomos, gozam de relativo senso de responsabilidade, prestam-se à descoberta e andam ávidos de novos desafios, convencendo-se de que tudo lhes é possível, inclusive enganar os pais. É neste escalão etário que encontramos os apedrejadores de que Guerra Junqueiro falava e os sacristas capazes de causar grande dolo aos cães, pelo que convém que aprendam a comportar-se correctamente e a respeitar os animais, ensino que deverá ser efectuado em paralelo com os conteúdos de ensino escolares, porque já sabem o que é certo e o que é errado, ainda que se façam de distraídos, desentendidos, descuidados ou inocentes.
À falta de irmãos, continuamos a defender a entrega de um cão a uma criança como um dos melhores subsídios para a sua futura integração social. Entretanto, não leve o seu filho para o meio de cães quando estiver a comer ou quando eles estiverem a comer, não consinta que corra à frente deles, que os provoque ou maltrate, ensine-o como abordá-los correctamente e a pedir autorização para acariciar os alheios, alertando-o para o facto de nem todos os cães serem bons e de haver donos ainda piores. Ensinar o seu filho a lidar com os cães é subsidiar a sua sobrevivência e despertá-lo para os prazeres simples da vida que a natureza a todos oferece. 

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