O título deste artigo foi
extraído do poema “FIEL” de Guerra Junqueiro (1850-1923), um poeta que vale a
pena redescobrir e que parece remetido para empoeiradas e esquecidas antologias
da literatura portuguesa, um transmontano como tantos outros que confinou num
corpo a sua enorme grandeza de alma, visível em versos simultaneamente ingénuos
e profundos, duma candura que não esconde a inquietude de quem observa, vive e
sente. Ler Junqueiro é um regresso a casa, é fechar a porta da rua e abrir uma
janela para os sentidos, uma viagem para dentro de nós e para os ancestrais
valores que nos erigiram, um despertar para a liberdade e um banho de
nacionalidade que se estendeu e perde por todo o mundo. Com o calor que aí vem,
a brisa fresca dos seus versos vem mesmo a calhar, pelo que aconselhamos a sua
leitura.
Com esta estrofe introduzimos
o tema de hoje sobre o relacionamento entre as crianças e os cães, nem sempre
fácil, passível de riscos e por isso mesmo necessitado de regras, visando a
salvaguarda duns e doutros, muitas vezes postas em causa pela ingenuidade de
pais e donos que, deslumbrados pelo quadro, não antevêem o perigo desses
relacionamentos extemporâneos visíveis por toda a parte.
Importa dizer que os cães
de terapia e de conforto são-no pelo seu particular psicológico e objecto de
treino aturado, que as suas acções e reacções são mecânicas pelo
condicionamento efectuado, muito embora não se livrem do stress provocado por
esses serviços comunitários, uma vez que a sua estrutura e escalonamento social
biológico não abrangem gratuitamente um número tão grande de indivíduos e muito
menos completamente desconhecidos, comportando-se grande número deles de modo
passivo, interagindo somente mediante exercícios supostamente do seu agrado, por
convite ou indução dos seus treinadores. Nenhum cão gosta de ser abraçado,
mesmo pelo próprio dono, a mímica que adquirem disso dá mostras e quando
abalroados por estranhos sentem-se ainda mais vulneráveis, obrigados a
pertencer a outro grupo que não é o seu e que não escolheram, aceitando essa
sorte pelo apego, dependência e condicionamento relativos aos seus líderes,
ainda que estes digam exactamente o contrário, o que se compreende diante do
carácter da sua missão. E cães de terapia e conforto, porque são raros, não
saltaricam pelas ruas como praga de gafanhotos em searas, sobrando ao invés
pelas calçadas cães necessitados de escola e de boas maneiras.
Todas as crianças deverão
familiarizar-se e sociabilizar-se com os cães, porque eles estão cá e são cada
vez mais, para que vençam o medo e não se constituam em suas presas ou vítimas.
Porém, essa necessidade pedagógica, tornada obrigatória nos tempos que correm
pela proliferação destes animais, deverá considerar o tipo de cão que temos
pela frente (o seu tamanho, envergadura, energia e comportamento) e o
particular da criança (idade, grau de autonomia, destreza, senso de
responsabilidade e comportamento), porque doutro modo as nossas intenções poderão
atentar contra o seu desejável propósito e gerar traumas infantis de difícil
eliminação.
Já
perdemos a conta ao número de vezes em que vimos crianças embaraçadas em
trelas, atiradas ao chão, mordiscadas, mordidas, feridas, perseguidas,
espoliadas do seu alimento e brinquedos, tudo por culpa dos pais, a quem cabe
zelar pela salvaguarda, segurança e bem-estar dos filhos, gente descuidada e mais
ligada à angelologia que insiste em ver os cães como arcanjos, serafins e
querubins, vendo-os depois como demónios diante de qualquer percalço, porque
deixaram avançar as crianças sozinhas para cima dos cães, muitas vezes até sem
os seus donos se aperceberem disso.
Muitas das escaramuças havidas
entre crianças e cães resultam de comportamentos abusivos dos infantes, que por
estranheza, medo, desejo de domínio ou maldade, agridem os cães a pontapé,
varapau ou à pedrada, havendo outros que inconsciente ou deliberadamente
enfiam-lhes os dedos nos olhos, puxam-lhes as orelhas, língua, manto e cauda,
merecendo dos animais uma ou mais dentadas de defesa pela dor e mal-estar
causados. Sim, “há garotos levados do diabo”, cujo comportamento não lesa só os
cães e que mais envergonha os pais diante dos outros, postura que tende a agravar-se
e a perpetuar-se caso não venha a ser denunciada, contrariada e abandonada.
Assim como os cães
necessitam de ensino e normas para aprenderem a respeitar as crianças, também
estas deverão ser ensinadas a comportar-se adequadamente diante dos cães,
ensino que é da responsabilidade dos seus progenitores e demais família, que
uma vez assimilado reduzirá quase a zero a possibilidade de virem a ser
mordidas pelos seus cães e por aqueles que encontram nas ruas. Seguidamente
enumeraremos os procedimentos correctos para um pai que circula na via pública
com uma criança pequena pela mão (de 2 a 5 anos de idade) e que avista um cão,
oportunidade que deseja aproveitar para sociabilizar a criança com aquele
animal e outros iguais.
A sociabilização da
criança com o cão jamais deverá ser forçada, deverá acontecer naturalmente como
parte do seu quotidiano, pelo que mais vale circular ao redor do cão do que
parar e obrigar à sua apresentação. Tudo deverá acontecer gradualmente porque a
familiarização e o tempo concorrem para a almejada sociabilização (assim
acontecia no mundo rural). Se ao avistar o cão, a criança manifestar algum tipo
de receio, pegue-a ao colo e serene-a, caminhe primeiro ao redor do cão para
que ela se aperceba da inexistência de perigo, numa distância que impeça o
empoleirar do animal sobre ambos, o que a acontecer poderia assustá-la.
Caso a criança não se alarme
ou manifeste o desejo de tocar no cão, inquira do comportamento do animal e
peça autorização ao dono, sugerindo-lhe que o mantenha quieto. Baixe-se depois
com a criança e tome a iniciativa de acariciar o animal, estratégia que lhe
dará um conhecimento mais tangente das características do cão e que aumentará
os níveis de confiança da criança. Não a force a tocar no animal, porque a adaptação
das crianças não é automática, terá mais dias para isso e importa a cada dia o seu
ganho. Ensine-lhe como acariciar o cão e desperte nela o gosto pela companhia do
animal. De início dê preferência a cães mais pequenos e ajuizados, geralmente
conduzidos por senhoras e gente madura. Pouco a pouco vá-lhe ensinando as
salutares regras de convivência entre pessoas e cães, baseadas no respeito
pelos animais, coisa mais simples do que ensinar-lhe a andar de bicicleta.
A maior parte dos
acidentes entre cães e crianças acontecem entre os seis anos e a chegada da
puberdade dos infantes, ocasião em que já são mais autónomos, gozam de relativo
senso de responsabilidade, prestam-se à descoberta e andam ávidos de novos desafios,
convencendo-se de que tudo lhes é possível, inclusive enganar os pais. É neste
escalão etário que encontramos os apedrejadores de que Guerra Junqueiro falava
e os sacristas capazes de causar grande dolo aos cães, pelo que convém que
aprendam a comportar-se correctamente e a respeitar os animais, ensino que
deverá ser efectuado em paralelo com os conteúdos de ensino escolares, porque
já sabem o que é certo e o que é errado, ainda que se façam de distraídos, desentendidos,
descuidados ou inocentes.
À falta de irmãos, continuamos
a defender a entrega de um cão a uma criança como um dos melhores subsídios
para a sua futura integração social. Entretanto, não leve o seu filho para o
meio de cães quando estiver a comer ou quando eles estiverem a comer, não
consinta que corra à frente deles, que os provoque ou maltrate, ensine-o como
abordá-los correctamente e a pedir autorização para acariciar os alheios,
alertando-o para o facto de nem todos os cães serem bons e de haver donos ainda
piores. Ensinar o seu filho a lidar com os cães é subsidiar a sua sobrevivência
e despertá-lo para os prazeres simples da vida que a natureza a todos oferece.