segunda-feira, 4 de abril de 2022

O QUE ESTARÃO A TREINAR?

 

O Adestrador, como dizia Pessoa acerca do actor no seu poema “Autopsicografia”, é também um fingidor e como tal necessitado de grande criatividade para desempenhar as diversas personagens para suscitar dos cães as mais díspares respostas e adaptá-las a inesperadas circunstâncias. Alguém pode aprender a técnica e até atingir a sua excelência, mas se não for criativo de pouco lhe valerá, não passará de um macaco de imitação ou de um papagaio que tudo repete, como um que já tive e que me foi oferecido pela ex-esposa de um aluno, que rapidamente aprendeu todas as sequências dos comandos verbais e que pôs os cães a obedecer-lhe, o que me leva a concluir diante destas premissas que não faltam por aí macacos e papagaios, bicharada que no adestramento não está em vias de extinção e que sobrevive pelo plágio como sempre fez, na maioria dos casos ignorando o propósito daquilo faz e espreitando aqui e ali aquilo que os outros têm para oferecer, não hesitando em reclamar a sua autoria. No GIF abaixo vemos 3 Pastores Alemães a esgueirar-se por debaixo de uma sede para acorrerem à chamada dos donos. O que estarão a treinar, porquê e para quê, alguém consegue imaginar?

Estarão a treinar o comando de “aqui” para que se torne pronto, imediato e incondicional? Estarão a aprender um percurso de evasão específico? A aprender a furar cercas de jardim? A reforçar o comando de “quieto”? A assimilar a condução nuclear (à distância)? A recapitular a sociabilização entre iguais? A qual das seguintes disciplinas pertencerá eventualmente o presente exercício: à obediência, à endurance, à guarda ou à pistagem? Estarão a ser vítimas de alguma sandice ou devaneio do seu adestrador?

É inegável que também estão a treinar os comandos de “quieto” e “aqui”, que o exercício também se presta a uma manobra de evasão, que pode ser classificado como condução nuclear e próprio para a sociabilização, podendo inclusive ser enquadrado como pertença de qualquer uma das disciplinas clássicas do adestramento. Todavia, o exercício vai para além da rotineira obediência, da recomendável sociabilização e do necessário preparo físico dos cães, sendo inofensivo para quem o vê e do agrado dos animais como se de uma brincadeira se tratasse, apesar de ser uma das primeiras fases de um dos trabalhos muito sérios da disciplina de guarda. Em abono dos cães e do seu superior aproveitamento, o seu sucesso nos obstáculos e díspares exercícios sempre dependerá do seu faseamento. Quem não conseguir encontrar essas fases e as desrespeitar, lamentavelmente acabará com esse atropelo por abusar do animal ou animais que conduz. Os três binómios em questão estão a treinar a “emboscada” nos seus primeiros momentos ou fases, a ensinar os cães a ocultar-se para posteriormente efectuarem arremetidas de surpresa. Dito isto, não será difícil desvendar as suas seguintes fases ou exercícios indutores à emboscada propriamente dita.

É certo que muito daquilo que os binómios aprendem numa escola nunca virá a ser posto em prática, principalmente por ausência de necessidade, desuso, relaxe e falta de clarividência dos líderes, especialmente daqueles que, encarneirados, tudo fazem por fazer sem ousar questionar a sua razão e proveito. Caso procedessem doutro modo, ficariam esclarecidos, contribuiriam para o esclarecimento geral que induz ao progresso, teriam outro empenho, alcançariam melhor desempenho e jamais seriam vítimas, eles e os seus cães, do frenesim injustificado de alguns práticos que se julgam iluminados, fecundos a escravizar donos e a rebentar cães. Aquilo que não compreendemos dificilmente conseguiremos praticar, porque o adestramento não é um dogma e nada tem de metafísico. E, se houver “milagres” no adestramento, eles provirão do esforço individual que procura a ciência e a sua comprovação, da razão que não se contenta com o que não tem explicação. Falando em explicação, alguém me consegue explicar por que razão estão os dois cães no Gif seguinte a saltar ao mesmo tempo e em direcções contrárias? Será o exercício uma meta ou um objectivo? Se for um objectivo, está explicado: um mero exercício físico ligado às suas vantagens; se for uma meta, o que se procurará? Caso seja ambas as coisas, estaremos perante dois cães ainda em formação (o CPA Bohr tem 6 anos e a CPA Luna 18 meses).

A verdadeira arte no adestramento, e nisso lembra a magia que como se sabe nada tem de milagroso, é tornar indivisível a unidade binomial sem desnudar os processos que a constituíram, o seu accionamento e modos de actuação visando o bem-estar e a sobrevivência dos seus constituintes. É por demais evidente que não estamos a tratar de cães comunitários, prestadores de socorro, de apoio emocional e demais serviços e terapias. Fazer de um homem e de um cão “unha com carne” pode parecer milagre, mas é fruto de trabalho meticulosos e aturado, primeiro compreendido e depois posto em prática, aprimorado em horas infindas e longe dos olhares alheios que tudo perscrutam, procuram banalizar, corroer e adulterar – ainda é possível encontrar um companheiro impoluto e incorruptível, estando isso nas mãos dos que sabem o que querem e não desistem. 

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