quarta-feira, 8 de setembro de 2021

QUEM NASCE TORTO, TARDE OU NUNCA SE ENDIREITA?

 

Recebi ontem pela noite dentro o seguinte email: “Boa noite Sr. João. Tenho lido, diariamente o seu blog, não direi que já li tudo mas a grande maioria dos posts relacionados com o treino já terei passado por eles. E tenho que lhe dar os parabéns, está ali informação, cultura e saber de uma vida. Tenho, no entanto, uma questão que gostaria de colocar se não se importar. - Sendo o meu cachorro filho de 2 cães de "exposição", mesmo que venha a treinar na sua escola desde os 4 meses, ficará em idade adulta com a "traseira rebaixada"? (provavelmente será uma questão idiota mas como não tenho intenção de ter um cão de exposição tenho esta dúvida). Obrigado.” Diante do que me é questionado, interrogo-me sobre a veracidade do aforismo português que diz “quem nasce torto, tarde ou nunca se endireita.”

Caro leitor, em primeiro lugar quero agradecer-lhe os elogios que me endereçou, que julgo não ser deles minimamente merecedor. Como nota prévia, antes de responder à sua questão, permita-me que o elucide sobre a diferença no CPA entre cães de trabalho e de morfologia, ditos de “beleza”, uma vez que a raça é uma só. Nos cães de trabalho os progenitores são seleccionados maioritariamente pelo trabalho e nos de beleza pela sua conformação, na diferença que vai do útil ao “belo” (há muito tempo que procuramos sem sucesso juntar numa só linha de criação os dois predicados). Assim, o seu cachorro, atendendo à sua genética, sempre será um “cão de exposição”, por mais desenvolvida que venha a ser a sua capacidade de aprendizagem e melhore fisicamente acima das expectativas, porque ele sempre transmitirá à sua prole os seus genes e não as mais-valias que o trabalho eventualmente lhe possa oferecer.

Poderá aplicar-se-lhe o provérbio que diz “quem nasce torto, tarde ou nunca se endireita”? Estará condenado a ficar com a “traseira rebaixada” para sempre? Não necessariamente! Desde a origem da raça, e há algum registo fotográfico a comprová-lo, sempre subsistiram indivíduos mais angulados e mais compridos do que outros, pelo que o fenómeno não é de hoje. A partir de determinado momento, por critérios passados, hoje ultrapassados e condenados, por atentarem contra o bem-estar animal, os shows de conformação optaram pelos cães muito angulados e assim tem sido até aos nossos dias.

Os profissionais ligados ao trabalho foram numa direcção contrária e chamaram para si os de média angulação. E fizeram-no porquê? Porque os cães muito angulados têm tendência para o jarrete de vaca, para o descodilhar em marcha, para as mãos atiradas para fora, para o abatimento de metacarpos e dificuldades sérias na transição dos andamentos naturais, nomeadamente na passagem da marcha para o galope, para além de se desgastarem precocemente, o que atenta contra a sua saúde e longevidade. Se as primeiras menos valias (desaprumos) comprometiam os cães em termos de força, as dificuldades locomotoras comprometiam de sobremaneira a sua prontidão operacional, quando chamados a interagir ou a prestar socorro. 

No caso do seu cachorro, assim você queira, porque terá que correr atrás do prejuízo, “quem nasce torto, cedo se pode endireitar”. Como podemos fazê-lo? Afortunadamente todos os cachorros têm uma fase de maior plasticidade anatómica, onde o crescimento físico é também acompanhado pelo cognitivo, sendo nessa fase quase como barro nas mãos de um oleiro. Estou a falar do período que decorre entre os 2 e os 6 meses, de exercícios domésticos simples (dos 2 aos 4 meses) e do 1º Ciclo Escolar (dos 4 aos 6 meses), onde a correcção morfológica terá lugar mediante aparelhos correctores. Os resultados poderão não ser absolutos (a área dos milagres não é a nossa especialidade), mas a traseira do seu cachorro não ficará rebaixada, parecerá até que “ganhou molas” graças ao desenvolvimento muscular alcançado. Tantas e tantas vezes, surpreendentemente para quem não o espera, o trabalho tem dado aos cães aquilo que a genética tentou surripiar-lhes.

Espero ter respondido à sua pertinente questão e tê-lo feito compreender a importância e necessidade da precocidade laboral para o seu cachorro. Outrossim, disponho-me desde já a acompanhar o seu crescimento até chegar à altura do treino, para que tudo corra conforme o desejado. Caso o animal se desenvolva acima do expectável, poderá até chegar à escola mais cedo e enveredar pelo pré-treino, o que seria ouro sobre azul. Mande sempre!

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