quinta-feira, 19 de agosto de 2021

CÃO DE ÁGUA PORTUGUÊS: ÚNICO E POR ISSO ESPECIAL

 

Cresci ao lado de Cães de Água Portugueses, paixão de um primo meu que ao longo da sua vida só teve cães destes e todos com o mesmo nome, o que levou um certo cidadão a exclamar em determinada ocasião: “Ò Sr. Dr., o seu cão já deve ser muito velho, nunca lhe conheci outro!” O cão a que se referia já era o 4º “Dick”, mas o bom homem não o sabia. Enquanto adestrador tive a oportunidade de treinar uma dúzia destes cães e agora apareceu-me mais um – o Oliver. A raça é pouco procurada entre nós e só a ignorância justifica o seu desprezo. Teve um grande boom quando a família presidencial Obama decidiu adquirir dois exemplares, mas foi sol de pouca dura. O Cão de Água não é um aluno frequente nos centros de treino caninos, não porque não possa ou não deva ser convenientemente treinado, mas porque como cão de companhia não há melhor, um companheiro fácil de lidar que não se mete em encrencas e por quem qualquer um se apaixona, que não necessita de um dono experiente e versado em cães e que se adapta às pessoas e ao meio sem grandes entraves.

Não conheço no panorama canino nenhuma raça que se lhe equipare, porque nenhuma delas reúne todas as suas características, sendo algumas delas bastante incomuns. Apesar de ser um excelente cão de alarme, o Cão de Água por ser extremamente afável com todas as crianças e adultos, quer eles sejam estranhos ou não, não tem no seu todo personalidade para ser um cão de guarda típico, ademais porque acusa o castigo e a repreensão em demasia, mui raramente ameaça (rosna) e dificilmente ultrapassa as experiências negativas. Estamos perante um cão que veio para amar e não para guerrear, cuja sociabilização entre iguais e interespécies é natural, pelo que invariavelmente deverá ser protegido de outros cães mais aguerridos, principalmente durante a fase de crescimento, que o atacarão sem que esboce qualquer defesa ou resposta. Claro que há excepções e estas servem apenas para confirmar a regra.

Apesar de inteligente e versátil, e de requerer bastante exercício, este cão acusa a sobrecarga no treino, detestando exercícios repetitivos e pobres contra os quais se rebelará, pelo que o seu treino deverá assentar sobre o reforço positivo, ser dinâmico e operado em curtas sessões de treino, porque doutro modo perderá a alegria que o caracteriza e que não dispensa a brincadeira. Há quem o alcunhe de “palhaço” por causa das suas desconcertantes brincadeiras, mas o Cão de Água disso não tem nada, usando a evasão para distrair os donos e lograr os seus intentos, uma maneira educada e divertida de dizer não me chateies! Devido à sua timidez e insegurança, visando o seu equilíbrio e bem-estar, este cão deverá começar a treinar mais cedo (4 meses), para que vença os seus medos, seja mais maleável e aumente a capacidade de aprendizagem em paralelo com a sua plasticidade anatómica. Treinar um Cão de Água e alcançar com ele altos patamares de ensino nalgumas disciplinas cinotécnicas é um desafio à criatividade e à perseverança dos seus donos.

Do treino precoce deste cão aos 4 meses de idade deverão fazer parte as aulas de natação, para que aprenda a nadar correctamente e não crie aversão à água, como é comum acontecer com muitos dos seus exemplares, o que não deixa de ser um absurdo atendendo ao histórico da raça. Do ponto de vista biomecânico estamos perante um cão que desde cedo “carrega a garupa às costas” (com a garupa mais alta do que a cernelha ou garrote), que normalmente sobrecarrega a espádua em relação à garupa, abatendo os metacarpos e selando o dorso com relativa facilidade e, razões que o levam a ser um atleta mediano. Transita com facilidade de andamentos, passa automaticamente do passo para o galope e vale-se da marcha esporadicamente em pequenas distâncias (prefere o galope) apesar de precisar dela para muscular o dorso, levantar a espádua e aliviar as mãos. Quando bem trabalhado e condicionado consegue atingir o “trote suspenso”, dando a nítida sensação de esvoaçar. Para que isso aconteça é necessário que evolua em marcha de cabeça levantada, mais-valia que poderá ser alcançada através do interesse por um brinquedo ou doutro artificialismo.

Na obediência, este cão que tem ainda como vantagens não largar cabelo e ser hipoalergénico, pode atingir alguma notoriedade desde que os exercícios solicitados sejam breves, variados e alegres, porque acusa demasiado o travamento e por causa disso deixa-se dominar facilmente pela letargia. Tal como é, este cão que veio ao mundo para alegrar os corações das pessoas ao seu redor, um amigo leal e franco, com uma longevidade superior à média, rústico, curioso e pouco exigente. Acerca dele, sem roubar a autoria ao poeta Manuel Alegre e sem antropomorfismos, podemos dizer: “um cão para nós.” 

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