Cresci
ao lado de Cães de Água Portugueses, paixão de um primo meu que ao longo da sua
vida só teve cães destes e todos com o mesmo nome, o que levou um certo cidadão
a exclamar em determinada ocasião: “Ò Sr. Dr., o seu cão já deve ser muito
velho, nunca lhe conheci outro!” O cão a que se referia já era o 4º “Dick”, mas
o bom homem não o sabia. Enquanto adestrador tive a oportunidade de treinar uma
dúzia destes cães e agora apareceu-me mais um – o Oliver. A raça é pouco
procurada entre nós e só a ignorância justifica o seu desprezo. Teve um grande
boom quando a família presidencial Obama decidiu adquirir dois exemplares, mas
foi sol de pouca dura. O Cão de Água não é um aluno frequente nos centros de
treino caninos, não porque não possa ou não deva ser convenientemente treinado,
mas porque como cão de companhia não há melhor, um companheiro fácil de lidar que
não se mete em encrencas e por quem qualquer um se apaixona, que não necessita
de um dono experiente e versado em cães e que se adapta às pessoas e ao meio sem
grandes entraves.
Não
conheço no panorama canino nenhuma raça que se lhe equipare, porque nenhuma
delas reúne todas as suas características, sendo algumas delas bastante
incomuns. Apesar de ser um excelente cão de alarme, o Cão de Água por ser
extremamente afável com todas as crianças e adultos, quer eles sejam estranhos
ou não, não tem no seu todo personalidade para ser um cão de guarda típico,
ademais porque acusa o castigo e a repreensão em demasia, mui raramente ameaça
(rosna) e dificilmente ultrapassa as experiências negativas. Estamos perante um
cão que veio para amar e não para guerrear, cuja sociabilização entre iguais e
interespécies é natural, pelo que invariavelmente deverá ser protegido de
outros cães mais aguerridos, principalmente durante a fase de crescimento, que
o atacarão sem que esboce qualquer defesa ou resposta. Claro que há excepções e
estas servem apenas para confirmar a regra.
Apesar
de inteligente e versátil, e de requerer bastante exercício, este cão acusa a
sobrecarga no treino, detestando exercícios repetitivos e pobres contra os
quais se rebelará, pelo que o seu treino deverá assentar sobre o reforço
positivo, ser dinâmico e operado em curtas sessões de treino, porque doutro
modo perderá a alegria que o caracteriza e que não dispensa a brincadeira. Há
quem o alcunhe de “palhaço” por causa das suas desconcertantes brincadeiras,
mas o Cão de Água disso não tem nada, usando a evasão para distrair os donos e
lograr os seus intentos, uma maneira educada e divertida de dizer não me
chateies! Devido à sua timidez e insegurança, visando o seu equilíbrio e bem-estar,
este cão deverá começar a treinar mais cedo (4 meses), para que vença os seus
medos, seja mais maleável e aumente a capacidade de aprendizagem em paralelo com
a sua plasticidade anatómica. Treinar um Cão de Água e alcançar com ele altos
patamares de ensino nalgumas disciplinas cinotécnicas é um desafio à criatividade
e à perseverança dos seus donos.
Do
treino precoce deste cão aos 4 meses de idade deverão fazer parte as aulas de
natação, para que aprenda a nadar correctamente e não crie aversão à água, como
é comum acontecer com muitos dos seus exemplares, o que não deixa de ser um absurdo
atendendo ao histórico da raça. Do ponto de vista biomecânico estamos perante
um cão que desde cedo “carrega a garupa às costas” (com a garupa mais alta do
que a cernelha ou garrote), que normalmente sobrecarrega a espádua em relação à
garupa, abatendo os metacarpos e selando o dorso com relativa facilidade e,
razões que o levam a ser um atleta mediano. Transita com facilidade de
andamentos, passa automaticamente do passo para o galope e vale-se da marcha
esporadicamente em pequenas distâncias (prefere o galope) apesar de precisar
dela para muscular o dorso, levantar a espádua e aliviar as mãos. Quando bem
trabalhado e condicionado consegue atingir o “trote suspenso”, dando a nítida
sensação de esvoaçar. Para que isso aconteça é necessário que evolua em marcha
de cabeça levantada, mais-valia que poderá ser alcançada através do interesse
por um brinquedo ou doutro artificialismo.
Na obediência, este cão que tem ainda como vantagens não largar cabelo e ser hipoalergénico, pode atingir alguma notoriedade desde que os exercícios solicitados sejam breves, variados e alegres, porque acusa demasiado o travamento e por causa disso deixa-se dominar facilmente pela letargia. Tal como é, este cão que veio ao mundo para alegrar os corações das pessoas ao seu redor, um amigo leal e franco, com uma longevidade superior à média, rústico, curioso e pouco exigente. Acerca dele, sem roubar a autoria ao poeta Manuel Alegre e sem antropomorfismos, podemos dizer: “um cão para nós.”
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