quarta-feira, 1 de abril de 2020

DIZER A VERDADE NO DIA DAS MENTIRAS

Tradicionalmente entre nós, o dia 1º de Abril é o “Dia das Mentiras”, data normalmente aproveitada para contar algumas petas, que mais tarde virão a ser desmentidas. Desta vez, porque a situação em que vivemos não está para graçolas, penso que a tradição vai afrouxar por serem poucos os que irão respeitá-la. Sempre que alcanço esta data, lembro-me de um 1º de Abril ocorrido na minha juventude, quando ao contar uma verdade fui tomado por mentiroso e por pouco não levei com um fervedor de leite em cima.
O dia tinha amanhecido claro, não chovia e estava frio, condições mais que suficientes para me pôr fora da cama. Depois de tomar apressadamente o pequeno-almoço, fui incumbido de ir buscar o jornal para um tio meu, o Diário de Notícias. Da casa onde então vivia até à papelaria onde se vendiam os jornais, distavam uns 500m, quilómetro que invariavelmente fazia a correr e feliz da vida. Mas naquele dia, vá-se lá saber porquê, fui a passo e inteirei-me de um drama que tinha acontecido, um homem com quarenta e poucos anos inesperadamente havia falecido.
Bem depressa consegui saber quem era o defunto, que deixou viúva e dois filhos menores, um casal, dos quais só recordo o nome do miúdo, miúdo que terá hoje seguramente mais de 50 anos. A viúva ao ver-me, pediu-me que desse a triste notícia à sua mãe (naquele tempo nem todos tinham telefone em casa), senhora que morava a 100m de mim. Deixei o jornal no consultório do meu tio e corri a anunciar a trágica notícia.
Naquele tempo, em que os extintos “negociantes de gado” se desenrascavam, saloio que se prezasse, tinha uma abegoaria (1) junto ou perto da sua habitação, onde criava bezerros para engorda, mantinha vacas de leite ou guardava o gado que não tinha conseguido vender na feira. Tal era também o caso dos pais da viúva, os últimos a largar uma cachorra puxada a cavalo naquela localidade. Abri o portão do quintal, fui direito à cozinha da habitação, chamei pela dona da casa e dei com a mãe da viúva a ferver leite acabado de ser ordenhado.
Sem perder a compostura, dei a trágica notícia à idosa, que me chamou mentiroso e disse que “com estas coisas não se brinca”, que daquela vez escapava, mas se voltasse a fazer o mesmo, que levava com fervedor do leite em cima. Perante a minha postura irredutível, mas sem tirar os olhos da cafeteira de alumínio, a boa senhora lá se convenceu do sucedido e exclamou: “ Pobre filhinha, viúva tão nova e com dois filhinhos pequenos para criar!”
As más notícias são sempre difíceis de aceitar e todos gostaríamos que não passassem de meros pesadelos ou de “verdades” do Dia das Mentiras. Ontem, um septuagenário comentador televisivo, um advogado que não consegue esconder a sua origem nobre e ascendência estrangeira, disse que cerca de 750.000 portugueses irão ser infectados pelo Covid-19, que tudo é uma questão de tempo. Quem me dera que o seu prognóstico estivesse errado e que o coronavírus desaparecesse mais rápido do que apareceu. Desta vez não falei de cães, mas daquilo que assola os homens do presente, gente abrigada na mesma trincheira que eu e a quem pretendo transmitir esperança nesta hora de incerteza, relembrando aqui um aforismo luso que que sempre se cumpriu: “Não há mal que sempre dure, nem bem que se não acabe”.
De nada vale a dúvida, o pranto, o medo e a angústia quando o mal nos cerca, porque são sentimentos que induzem à derrota e todos queremos ser vencedores. Como por norma quem teme morre, ao pôr-se à disposição do inimigo, vencerão aqueles que nunca se conformarem, que nunca se derem por vencidos e que sempre acreditarem que conseguem ultrapassar os maus vaticínios, apesar de não serem e de não se julgarem invencíveis – há vida para além do Coronavírus, voltaremos a usufruir da liberdade e a correr, como nunca, léguas infindas com os nossos cães!
(1)Sítio próprio para acomodar, preservar ou resguardar o gado, assim como os utensílios de determinada propriedade rural, também referente ao grupo de animais e apetrechos duma propriedade rural.

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