terça-feira, 21 de abril de 2020

QUANDO UNS VÃO E OUTROS FICAM

Já vi cães a morrer por sentirem a falta dos donos e nunca vi nenhum dono morrer por haver perdido o seu cão, e ainda bem que assim é. Actualmente, de tanto se ouvir falar dela, a morte dos outros tornou-se banal e fez aumentar a nossa indiferença, apesar de não nos agradar saber o número dos que partem diariamente. Quando são os animais que partem primeiro, depois de um breve luto, os seus donos ficam bem; quando são os donos que vão à frente, há cães que nunca recuperam da sua perca, conforme há muito temos notícia. A que se deverá tamanho desgosto? É disso que vamos agora tratar sucintamente, já que o assunto é tema para uma tese.
Com a perca do dono e a consequente readopção do cão, o animal entra numa profunda letargia e resistirá à novidade, porque perdeu o seu líder, sofreu alteração do seu viver social, é confrontado com um novo território, obrigado a assimilar outras rotinas e sente a sua sobrevivência ameaçada, como se tivesse entrado literalmente num mundo desconhecido, onde tudo o que conhecia deixou de fazer sentido. Todos sabemos que os cães são animais de hábitos e, caso não fossem, jamais os conseguiríamos domesticar e posteriormente adestrar. A força dos hábitos, que os cães transformam em protocolos, irá levá-los a resistir à alteração das rotinas diárias, ainda mais quando estabelecidas por um líder até ali desconhecido – um estranho.
Os hábitos são para os cães regulamento e também por isso não vêem com bons olhos a alteração das suas rotinas, mesmo que as novas sejam mais adequadas para o seu bem-estar, como por vezes acontece nos abrigos. Certa vez conheci o cão de um miserável que ia comer fora e que voltava depois para a choupana do seu dono, nunca prescindindo da sua companhia. Os cães são animais fiéis, difíceis de subornar, apesar da prática do suborno se ter transformado em método de ensino nos nossos dias. Com o passar dos anos, com a quebra do entusiasmo e com o desaparecimento dos cães actuais, é possível que os métodos de treino venham a ser reavaliados, muito embora a clonagem venha a resolver a maioria dos problemas que hoje enfrentamos.
Quando mais fiel for um cão, mais difícil será a sua adaptação a uma nova situação, por mais atenta e cuidadosa que ela seja, porque o cão é um animal social e afectuoso, naturalmente habilitado para pertencer a um grupo e resistir à invasão de outro, comportamento possivelmente herdado do lobo. Graças a este particular social e por substituição, cada cão assume respectivamente o dono e o seu agregado familiar como líder e matilha, sentindo-se no meio deles confortável e protegido, protegendo-os inclusive quando a sua existência, ordem e bem-estar forem ameaçados, porquanto se sente parte integrante do grupo.
Quando o viver social de um cão se restringe apenas à convivência com o dono, e há tantos proprietários caninos que só têm por companhia um cão, geralmente os mesmos idosos que o coronavírus fustiga, o problema é substancialmente maior porque não há dois indivíduos intimamente iguais, tornando-se a substituição do dono praticamente impossível. Infelizmente, alguns destes cães isolar-se-ão, deixarão de comer e acabarão por morrer devido à falência de um ou mais dos seus órgãos, porque não sabem a quem agradar e com o que podem contar ao depararem-se com desconhecidos. Assim como um homem fragilizado pode sucumbir diante da perca do seu animal (por sobrecarga), um animal saudável pode morrer perante o desaparecimento do dono (é tudo uma questão de dias, normalmente 2 semanas, se entretanto beber).
Por todas as razões que atrás invocámos, nesta época de azeda pandemia, assim como haverá cães que ajudarão os seus donos a recuperar-se, também haverá outros que, por profundo desgosto e inadaptação, acabarão por morrer ao verem o seu mundo desabar, vítimas colaterais de mais um flagelo humano que não poupou os seus donos. Podemos chamar heróis a cães assim? Não sei se serão heróis, mas campeões são de certeza, porque foram fiéis até à morte!  

Sem comentários:

Enviar um comentário