Enquanto houver Cavalaria
Militar conforme a conheceu o seu patrono, o Major JOAQUIM
AUGUSTO MOUSINHO DE ALBUQUERQUE, não faltarão relatos
verídicos acerca do relacionamento havido entre cavalos e cavaleiros, alguns tão
extraordinários que até parecem mentira. Eu tive o privilégio de pertencer a um
regimento a cavalo e dele guardo bastantes histórias que me fazem soltar
gargalhadas no silêncio da noite. Hoje lembrei-me do sucedido com o Zequinha e
a égua 27, cuja moral da história tem também aplicação no adestramento. Vamos à
história!
Primeiro importa dizer
quem foi um o Zequinha. Zequinha, como se calcula, não era o seu nome próprio
mas uma alcunha, nome que lhe ficou por ser um alistado(1)
pouco expedito e incomensuravelmente bronco, natural de uma aldeia nortenha que
não vem no mapa e que hoje já não reluz entre as fragas e as estevas que a
viram nascer. O nosso homem era simples e revestido de pouca ou nenhuma
maldade, o que não obscurecia a sua bravura e valentia. Como homem simples que
era, tinha reacções espontâneas que comprometiam as mais sérias instruções pelo
ridículo e que ora irritavam de sobremaneira os instrutores, ora faziam-nos
explodir de risada, sem contudo comprometerem a compostura sustentada nos seus
faustos e impenetráveis bigodes.
Por casualidade, enquanto
decorria o alistamento do Zequinha e sensivelmente à mesma hora em que se encontrava
no picadeiro, havia um Tenente que cuja promoção a Capitão estava para breve, e
como era de cavalaria, alguma coisa teria de fazer a cavalo, apesar de ter
passado alguns anos sem tocar num par de rédeas, por ter optado pela cavalaria
motorizada. Quando o alistamento se cruzava com este Oficial dentro do mesmo
picadeiro e o instrutor do pelotão de alistados dava a ordem de “Para a
esquerda, ao galope”, o Zequinha excitado gritava que nem um Paiute(2)
no Oregon, o que normalmente obrigava o Oficial a lavrar o chão do picadeiro
com o bivaque. Farto de cair do cavalo abaixo e do ridículo da situação, o
desafortunado Tenente foi queixar-se da situação ao Comandante de Instrução, um
Major que se pavoneava bem acima da pouca altura que tinha.
Solidário com o Tenente e
apostado em valer-lhe prontamente, mandou chamar de imediato o Sargento do
pelotão de alistados, dizendo-lhe que devia arranjar uma maneira de pôr o
Zequinha a andar daquele Esquadrão para fora, porque era bronco e não tinha
perfil para o serviço dele esperado, sendo por isso uma vergonha para o
Regimento. Com uma ordem directa daquelas, que para o Sargento tinha o seu
cumprimento no dia anterior, o Major obteve como resposta um inequívoco “sim”, reforçado
por um “pode Vª Senhoria ficar descansado!”
O Sargento que fazia jus
ao que da sua classe se dizia, que um bom sargento devia provir de um ruim
soldado (manhoso), passou a atribuir sempre o mesmo cavalo ao Zequinha,
enquanto os dos seus camaradas eram rotativos. Para a proeza foi escolhida uma
égua, a 27, ferrada com um “f” de exploda-se na garupa, mal vestida de carnes e
bastante guarnecida de manhas, perita em inverter o galope nas situações mais
críticas e a mandar para parte incerta quem a montasse, isto quando não deixava
o cavaleiro apeado, ao pontapear o estribo que acabava por atingir-lhe as
fuças! Não havia dúvida nenhuma, o Zequinha estava em muito maus lençóis!
Desolado com a sua
situação, o nosso “Paiute” começou a beber às escondidas, a emborrachar-se e a
dormir ao lado daquela estuporada égua. O tempo depressa passou e o alistamento
chegou ao fim. Na véspera da Cerimónia da Entrega das Esporas, o Major inquiriu
o Sargento do Alistamento acerca da situação do Zequinha dizendo: “ Então, o
maluquito já foi para casa?” O Sargento, depois de breve pausa e com os olhos
postos no Major, respondeu-lhe “ Qual maluquito?! Ele é o melhor cavaleiro
deste Esquadrão! Ele monta o que os outros não conseguem montar!” Surpreso e
desolado, o Major perguntou-lhe onde se encontrava o Zequinha, ao que o
Sargento respondeu estar a limpar um cavalo junto à cavalariça.
De certo modo danado e
apostado em correr com aquele alistado, o Major aproximou-se dele e perguntou-lhe:
“Ò militar, o que é que está a limpar: um cavalo ou um solípede?” O pobre do
Zequinha sabia o que era um cavalo, um solípede é que não, já que não era muito
chegado aos canhenhos de instrução. Porém, não se atrapalhou, pediu licença ao
Major e foi levantar o rabo ao animal, dizendo lá detrás para o Oficial: “É uma
égua meu Major!” A resposta dada caiu nas boas graças do Major, que soltou uma
valente risada. A partir daquele dia o Zequinha passou a ser tratado pelo seu
nome de família ou pelo número que lhe foi atribuído. Não fosse o diabo
tecê-las, acabou barrista na Sala das Praças, incumbência que nunca desempenhou
com grande esmero e distinção.
A
história acabou, resta-nos pronunciar sobre a sua moral e lição para o
adestramento. A primeira coisa a lembrar é que existe uma relação óptima entre
tratamento e treino e que a comunhão de vida é o que mais contribui para a
necessária cumplicidade, que nunca deveremos desistir diante das dificuldades e
que o nosso amor pelos animais não deverá morrer às mãos das adversidades que vamos
experimentando. Os problemas deste mundo são para ser resolvidos por quem cá
está, porque doutro modo teríamos que esperar pelo socorro dum anjo ou quiçá de um
alienígena.
(1)Sinónimo de recruta. (2)Membro de tribo nativa
norte-americana.
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