quarta-feira, 30 de março de 2016

UM, DOIS, TRÊS, TOMA LÁ OUTRA VEZ!

Porque será que a esmagadora maioria dos cães que hoje vêm para o treino não dispensa o suborno? Como não somos dados a conclusões precipitadas, esta dúvida tem-nos feito matutar, porque os cães do passado pareciam dispensá-lo e o seu grosso alcançou notoriedade pela persuasão sem a sobrecarga da coerção. Antigamente, ao fim de três tentativas, qualquer cão aprendia um novo comando ou figura, contrariamente aos de hoje que precisam de ser vivamente engodados só para olharem para os seus donos ou condutores. O que terá contribuído para esta inversão? O “método do reforço positivo” não foi certamente, porque sem ele estaríamos hoje irremediavelmente tramados e os cães mandar-nos-iam bugiar! A resposta não poderá ser dada exclusivamente pela cinotecnia mas em conjunto com a canicultura que a sustenta, sendo esta influenciada bem para além da simples arte de ensinar cães.
Ao tratarmos deste assunto, que aos mais jovens não causa estranheza, lembramo-nos dos morangos de outrora e dos actuais, os primeiros significativamente mais pequenos e mais doces que os de agora, que se vendiam à beira das estradas em pequenos cestos de verga, adornados com folhas de fetos. Quem não os provou, não sente a sua falta e acha os actuais o máximo, como se os morangos sempre fossem assim: grandes e sensaborões. Ora, com os cães passa-se exactamente o mesmo, porque a sua qualidade laboral decresceu nos últimos cinquenta anos, mercê de vários factores que seguidamente discriminaremos, decréscimo que os criadores e adestradores contemporâneos não sentem por desconhecerem e não haverem testemunhado a excelência dos cães do passado. Este deficit laboral na generalidade dos cães tem sido fatal para algumas raças em particular, nomeadamente para aquelas historicamente produzidas e destinadas ao trabalho, que gradualmente têm menor procura, acabam desprezadas e vêem o seu lugar ocupado por outras, já que doutro modo jamais o perderiam. Ao dizermos isto não estamos a ser saudosistas ou a negar a evolução e o progresso visíveis na cinotecnia, somente a constatar um facto: a menor qualidade laboral dos cães actuais.
E como importa ir ao âmago da questão, somos obrigados a avaliar o trabalho dos criadores actuais, hoje maioritariamente civis e amadores, mais cardíacos que conhecedores, indubitavelmente mais chegados à estética que ao trabalho, que têm a canicultura como um hobby e como economia paralela, gente perita em discutir genealogias e menos propensa a seleccionar os seus cães pelas suas aptidões, demasiado preocupada com rigores estéticos, pormenores morfológicos e pouco dada à observação das mais-valias físicas, psicológicas, cognitivas e sociais dos seus cães, cujo interesse primordial é vender ninhadas, muito embora esse objectivo seja hoje “chão que já deu uvas”, isto se alguma vez deu, porque a canicultura dificilmente se auto-sustentará.
Este enxerto entusiasta e amadorista que vive para o galarim, despreza a observação e o estudo, é avesso ao conhecimento erudito e carente de experiência, tem vindo a perpetuar um conjunto de insuficiências nas raças que produz, que há muito deveriam ter sido banidas e que a breve trecho lhes serão fatais. Enquanto horda passional, estes criadores dificilmente virão a trabalhar algum cão, mesmo dos seus, a experimentar a aptidão para o que foram ou deveriam ter sido criados. Não obstante, alguns deles evidenciarão orgulhosos a presença de campeões de beleza na genealogia dos seus rebentos. Diga-se a seu favor que dificilmente venderão gato por lebre, um híbrido ou mestiço por um cão puro, muito embora a genuinidade do seu produto seja por norma de pouco ou nenhum préstimo, o que nos traz imediatamente à memória Konrad Lorenz, quando dizia que “por vezes, quando menos pedigree melhor”.
Mas se criadores com estas características nada acrescentam à qualidade laboral das raças, antes a comprometem cada vez mais, ao extremo de condenarem a sua adaptação, saúde, bem-estar e longevidade, outros há, com menos pruridos que os primeiros, ditos criadores de cães de trabalho e que juntam à canicultura a cinotecnia, estratégia que tende a viabilizar as duas actividades, que adulteram ou transformam as raças à revelia do que são e dos propósitos para que foram criadas, quer aproveitando-se de fenótipos particulares quer dando-lhes um cheirinho de outra coisa qualquer, até porque o mundo é dos espertos e importa não perder o comboio, justificando a afronta pela procura da qualidade laboral original, quando na verdade são guiados por outros parâmetros e têm como modelos indivíduos de outras raças, mormente as actualmente mais procuradas. Assim se compreende o aparecimento de cães cuja morfologia, comportamento e mecânica são alheios à sua raça, o que para além da mentira é caricato, já que não são uma coisa nem outra, o que tem merecido, diga-se justamente, dos criadores de linha estética a seguinte sentença: “para o trabalho qualquer trampa serve!”.
E como se isto não bastasse, dentro dos cães destinados e criados para o trabalho, também a endogamia e a consanguinidade se fazem presentes, não pela vã glória de um prémio ou de um troféu, mas por razões económicas que impedem a aquisição de outros e melhores reprodutores, inalcançáveis pelo baixo preço a que os cachorros domésticos se encontram votados, limitação mais do que suficiente para o menor desempenho dos cães, não sendo de estranhar que todos eles descendam da mesma e única linha de criação, normalmente original de um país para além do Espaço Schengen, onde os cães são mais baratos. Sim, as dificuldades de aprendizagem visíveis nos actuais cães de trabalho são fruto de uma criação desastrosa, de toda uma leva de criadores aventureiros que desconhece os rudimentos da prestação de serviço que abraçou, que incapaz de identificar os principais impulsos herdados nos seus cães, ao confundi-los com os instintos, compromete assim a sua cumplicidade e parceria, remetendo-os para um condicionamento que apela às suas necessidades mais básicas.
A extraordinária carga instintiva visível nos cães actuais, apesar de dispensar os seus treinadores de maior preparo, tem impedido a sua melhor prestação, porque tendencialmente agem a modo próprio e resistem ao travamento, sendo menos curiosos e mais cativos das suas inclinações naturais, pelo que grande número deles não escapará a castração, medida tornada corriqueira face è lei dos cães perigosos e às dificuldades encontradas pelos donos. Por outro lado, os actuais proprietários caninos são pouco conhecedores dos pergaminhos das diversas raças laborais, logo menos exigentes e fáceis de contentar, satisfazendo-se muitos deles com o simples facto de possuírem um cão com pedigree. Hoje, quem comprar um cachorro de utilidade, arrisca-se a um sem número de trabalhos advindos da extraordinária potenciação dos impulsos ao movimento e à luta, causas primeiras do stresse canino que assola os cães citadinos e os sujeitos a mais horas de separação dos  seus donos, chegando alguns a danificar o património familiar e a automutilar-se, contrariamente aos do passado que eram mais equilibrados, curiosos, melhor adaptados, menos reivindicativos, mais gratos e apostados em agradar.
O impulso ao conhecimento canino não pode ser desleixado ou subvertido como tem vindo a ser até aqui, porque é ele que estabelece a diferença qualitativa entre os cães, facilitando a transição natural do tratamento para a cumplicidade e do treino para o desempenho esperado, garantido em simultâneo o aprimoramento das habilidades fornecidas pelo condicionamento e a assimilação de novos conteúdos de ensino. O meio mais fiável para se aquilatar do maior ou menor impulso ao conhecimento canino é o trabalho, uma vez que nele se desnuda a maior ou menor capacidade de aprendizagem dos indivíduos. Não havendo esta preocupação, todos os cães terão um índice de progresso muito baixo e as raças com uma curva de crescimento menor, logo precoces, virão a ter prestações lamentáveis (muito aquém do esperado).
Perguntar-nos-ão: onde foram os cães do passado buscar a sua extraordinária capacidade de aprendizagem? Em primeiro lugar importa explicar o que entendemos por cães do passado. Entendemos como os cães do passado os anteriores à década de 70, cujas linhas têm sido preteridas e maioritariamente dispensadas das novas selecções, onde foram e são visíveis as variedades recessivas presentes nas diferentes raças, também elas responsáveis pelas suas mais-valias cognitivas advindas da biodiversidade que as aproxima da selecção natural. A extraordinária capacidade de aprendizagem de que são portadores resultou de critérios de selecção que tiveram como base o trabalho, nomeadamente na prestação de algumas na I e na II Guerras Mundiais, também de criadores profissionais que dedicaram toda a sua vida à procura da excelência laboral, usando para isso os reprodutores mais capacitados. Acerca desta temática e como comprovação do que acabámos de dizer, vale a pena relembrar o que uma vez disse Lee Duncan sobre o famoso “Rin-Tin-Tin”, que questionado acerca do treino do cão, adiantou pouco ou nada lhe ter ensinado. Se continuarmos como até aqui a desleixar o impulso ao conhecimento canino, a dispensar a curiosidade que induz ao querer compreender, não nos restará outra opção: um, dois, três toma lá outra vez!    

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