E porque ontem foi
Sexta-feira, lembrámo-nos de um cão a quem foi posto esse nome, um pastor
alemão lobeiro entregue para reeducação a um experimentado adestrador, um bravo
que já havia passado pelas mãos de vários treinadores sem sucesso, um cão que
não vergava de nenhum jeito, indiferente ao carinho, suborno e à cumplicidade, resistente
a qualquer regra e apenas respeitador das suas rotinas, que persistia em ser
indomável, que reagia violentamente quando contrariado, carregando
desalmadamente e sem recuos contra quem o quisesse dominar ou subjugar (nem o
podiam mandar calar), que optava pela confrontação antes da aceitação de
qualquer castigo, atacando deliberadamente sem temer as consequências,
independentemente do modo, meios e intensidade dos contra-ataques de que
pudesse vir a sofrer. Quando rosnava já não voltava atrás, evoluía directamente
da ameaça para a agressão, quer lhe resistissem ou não! Chegou num alegre
Domingo de Ramos, num ano em que muitos dos nossos leitores não eram nascidos, chamava-se
“Shenandoah” e passados cinco dias passou a chamar-se “Sexta-feira” para
sempre, rebaptismo alcançado na antevéspera de Domingo de Páscoa, obra do adestrador
que aceitou reeducá-lo em casa, um agnóstico declarado, um republicano confesso
e homem destemido.
Durante cinco dias o cão
desafiou o homem e ameaçou-o por várias vezes, incidentes de pouca monta e que
nada assustaram o reeducador, cuja paciência parecia infinda e que era tardio
em irar-se, muito embora soubesse que aquele comportamento indiciava, caso não
se alterasse, maiores problemas no futuro imediato. Tanto à trela quanto solto,
o animal ensurdecia-se para as ordens. Na rua puxava que nem um desalmado, invalidava
qualquer alinhamento, não olhava para quem o conduzia e caso o deixassem, “comia
vivo” qualquer cão que com ele se cruzasse. Por duas ocasiões, quando intentava
ensinar-lhe o “junto” na via pública, o adestrador foi parar ao chão e numa
delas viu a morte por perto, ao ficar deitado no meio duma estrada, com a
cabeça a escassos 2cm do rodado traseiro de um camião, por não lhe ter largado
a trela, quando viu um pequeno cão do outro lado do passeio.
Em casa não aceitava e escapava-se
dos lugares que lhe eram destinados, indo para outros que lhe estavam proibidos
e dos quais fazia “finca-pé” para sair de lá, ora permanecendo surdo e imóvel
ora insurgindo-se, fixando quem o tentava demover, rosnando, com as orelhas
erectas e viradas para a frente, com o pelo ao longo do dorso levantado e com a
cauda embandeirada e imóvel. Mesmo assim, porque queria educá-lo a bem e não
por medo, o homem fazia-se desentendido e a muito custo ia demovendo o cão dos
seus propósitos, sapiente dos riscos em que incorria, ainda mais porque o danado
rejeitava os afectos, era indiferente aos castigos, não acusava o isolamento e não
se agradava por nenhum petisco ou outro tipo de recompensa, como se houvesse
nascido simplesmente para ser como era: dono de si mesmo, pronto para morder e
atacar!
Mas na Sexta-feira Santa
daquele ano tudo iria mudar e o inevitável aconteceu. Com o cão solto no quintal
e perto de si, quando se encontrava a consertar um utensílio de cozinha, o
adestrador viu aproximar-se um vizinho do portão, um idoso que vinha queixar-se
do barulho que o animal fazia durante a noite e que não deixava ninguém dormir.
Apostado numa política de boa vizinhança, (quem ensina cães tem que conquistar a
anuência dos vizinhos, porque doutra forma a polícia não lhe larga a porta),
dirigiu-se ao portão para serenar os ânimos exaltados do velho senhor, que a
muito custo lá aceitou as esfarrapadas explicações. Num ápice, o cão arremeteu-se
contra o portão e meteu o focinho entre os seus varões, não rasgando a cara do vizinho
por escassos milímetros, pregando-lhe um susto de morte e fazendo-o sair dali
mais depressa do que havia chegado.
Mesmo depois do
desaparecimento do idoso, o cão continuou a ladrar e a arremeter-se contra o
portão, ao ponto de outros moradores se assomarem às janelas. Um mais atrevido
disse ironicamente: “Ò Pá! Põe-lhe uma gaita-de-beiços no focinho, porque assim
a vizinhança sempre ouve música!”. Já todos se haviam recolhido às suas casas e
o cão não se calava, ladrando ainda mais. Farto daquele espectáculo e determinado
a pôr fim ao ridículo da situação, o adestrador, segurando-o pela coleira, puxou
o cão para dentro, acção contrária à vontade do animal que de imediato se jogou
contra ele, mordendo-o repetidas vezes perante os desarmes operados. E como o
cão não desistia, também incentivado pelo sangue derramado e dolo provocado, o
adestrador já exausto e jogado ao chão, muniu-se de um regador de chapa, que
era o que tinha à mão, contra-atacando-o violentamente e de forma continuada,
golpes que inicialmente o cão não acusou. Finalmente o animal recuou, sem
contudo virar as costas e deixar de rosnar, adivinhando-se a possível retoma
das suas acções.
E antes que isso
acontecesse, apesar de esburacado e a sangrar abundantemente, o homem carregou
mais uma vez sobre o cão, sem intenções de recuar, apostado em dominá-lo e subjugá-lo
de uma vez por todas, disposto só a largá-lo quando mostrasse sinais
inequívocos de rendição, o que passados longos minutos veio a acontecer, depois
de luta encarniçada. Naquele dia o cão mudou de nome e comportamento, deixou de
ser marginal e assumiu a sua formação policial, largou a desobediência e passou
a cumprir ordens, dispondo-se a servir. Viria a morrer alguns anos mais tarde
como viveu: a lutar, na defesa da casa que lhe foi confiada, vítima de vários
golpes dum “arranca-pregos” (pé-de-cabra) desferidos por um assaltante. É certo
que não ressuscitará, mas ressurgiu na nossa memória 40 anos depois. O velho
adestrador, companheiro de tantas jornadas, descansa agora e para sempre numa
colina com vista para a um secular castelo outrora edificado pelos Alanos.
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