quarta-feira, 16 de março de 2016

O CÃO PERNICIOSO

Cresce o número de cães nocivos e mal adaptados, os chamados “perniciosos”, animais que acusam em demasia o stresse, delapidam o património dos seus donos, não cessam de fazer disparates e que numa fase mais adiantada podem chegar ao ponto de se automutilarem. Normalmente ganem em demasia, parecem esquecer facilmente as reprimendas e não cessam de destruir, retomando às acções nocivas sempre que lhes dá na gana. Tendem a rebocar os donos quando atrelados, resistem à assimilação de regras e à aquisição de novas rotinas, ladrando desnecessariamente a tudo e a todos, rebelando-se sofridamente contra o isolamento e confinamento, o que tem causado dificuldades e delongas na sua adaptação doméstica. O fenómeno está a tornar-se comum entre lupinos e vulpinos, mesmo em raças que nunca manifestaram esse comportamento por evidente territorialidade, apesar de ser também observado, como sempre foi, em bracóides e cães de aponte, patologia instintiva que vem sendo combatida pela administração de ansiolíticos, antidepressivos e pela castração.
Parece evidente que esta patologia resulta de razões genéticas e é decorrente das actuais políticas de selecção presentes nas várias raças, praticamente indistintas nos diferentes grupos somáticos caninos, o que tem generalizado este tipo de comportamento. Se porventura ele estiver também associado a razões ambientais, tal se ficará a dever ou será reforçado pelo viver urbano da maioria dos proprietários caninos. De qualquer modo, como não podemos estar a produzir cães para drogá-los ou castrá-los, o que é um contra-senso e uma clara afronta aos direitos do animal, importa escalpelar o problema, suavizar os seus efeitos nos afectados e proceder à sua eliminação nas gerações futuras.
Será que excessiva endogamia, agora reforçada pela crise que assola toda a CEE, o Mundo Ocidental e a economia mundial, acrescentou às insuficiências físicas caninas problemas psicológicos e cognitivos capazes de dificultar a integração e viver social dos cães? Que critérios de selecção poderão concorrer directamente para a implosão deste problema aparentemente epidémico? Todos sabemos que por detrás de todos os grandes conflitos mundiais sobressaem razões económicas que os sustentam, que o vil metal condiciona tudo e todos, inclusive a canicultura e as actividades a ela ligadas. Ora, na actual conjectura económica, caracterizada por várias políticas de austeridade, a canicultura sofre horrores porque a vida não está para graças e a oferta é superior à procura, realidade que lhe é ingrata, mais a empobrece e que lhe impede a aquisição de bons reprodutores, vendo-se assim remetida à prata da casa e a recorrer à consanguinidade, opção forçada de danosas consequências para o futuro imediato dos cães.
À parte disto e como causa principal do problema, agiganta-se a exagerada tipificação das raças, preocupação maioritariamente estética que tem vindo a desconsiderar o bem-estar dos cães e a sua utilidade, através de critérios selectivos que têm desequilibrado a sã unidade dos impulsos herdados caninos, pela ávida potenciação de uns e o enfraquecimento de outros. E se há um impulso que tem vindo sucessivamente a ser desconsiderado, ele é o relativo ao do conhecimento, mais-valia de origem genética que induz os cães à curiosidade e ao querer compreender, essencial à sua adaptação, bem-estar social, cumplicidade e uso, o que tem tido também como consequência um maior recrutamento de mestiços e rafeiros prós diferentes serviços destinados aos cães.
Em detrimento da procura do impulso ao conhecimento, tem-se vindo a potenciar exageradamente os impulsos ao movimento, à luta, à defesa e ao poder nos lupinos e vulpinos, o que tem vindo a dificultar a sua coabitação, controlo e uso consensual, porque a exclusividade destes impulsos tende a remeter os cães para os instintos, tornando-os quase indistintos dos bracos, pese embora a diferença de alvos.
Para suavizar os efeitos deste descalabro genético nos cães afectados, torna-se imperativo ser paciente e atribuir-lhes trabalho, sair com eles à rua o maior número de vezes possível, não os isolar e dar-lhes espaço, trabalhá-los debaixo de recompensa e não os confrontar, porque não desarmam debaixo de pressão, uma vez que apresentam características silvestres e suicidas por reforço dos instintos. Como são por norma meigos, carentes de carinho e dados a euforias, há que suborná-los como manobra de estímulo e subsídio para a dependência, porque doutro modo dificilmente largarão as suas acções automáticas e prescindirão da sua autonomia desastrosa. O seu baixo poder de concentração, caracterizado pela desatenção constante, impede-os de assimilar prontamente os exercícios mais simples propostos, dificuldade só perecível por curtas e persistentes sessões de treino, que não dispensam os usuais exercícios predatórios para o que foram criados.
Como se depreende, a eliminação destes cães perniciosos passa pela alteração das políticas de selecção, que doravante deverão ter em maior consideração o impulso herdado ao conhecimento, impulso que sempre estabeleceu e estabelecerá a diferença gradativa dos cães em termos de qualidade e aptidão. Quem não tem tempo para estes cães vai passá-lo a aturar os seus múltiplos disparates, pelo que não são recomendáveis para os demasiado exigentes, inexperientes, indisponíveis, impacientes ou coléricos. São cães como estes que nos fazem sentir saudades dos cães do passado. Mas como o mundo é feito de mudança e os homens aprendem com os seus erros, resta-nos a esperança que estes problemas não se repitam no futuro.

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