Há quem goste e quem não
goste, nós gostamos e todos os adestradores são obrigados a sociabilizar cães,
tarefa obrigatória para quem os ensina e indispensável à genuína constituição
binomial, porque ela subsidia, espelha e avalia a obediência ministrada a um
cão. Sem ela, todos os serviços destinados aos cães encontram sujeitos a
condições especiais e por isso mesmo comprometidos. Só o alcance da
sociabilização torna possível a constituição de matilhas funcionais, quer elas
sejam homogéneas ou heterogéneas. Sociabilizar contendores não é fácil nem
automático (que o digam os mediadores para a paz no Médio-Oriente e noutras
latitudes no Globo), porque existem raças caninas que mantêm instintivamente
inimizades umas com as outras, alimentadas por divergências somáticas e
psicológicas que desnudam rituais e comportamentos diferentes, passíveis de
despoletar estranheza, suspeição, aversão e de convidar até prà aniquilação
recíproca. São históricas e conhecidas (entre outras) as aversões “lupino-molosso”;
“lupino-hound”, “lupino-vulpino”, “inter-molossos” e “bracóide-lupino”.
Escrevemos este artigo a pensar
num dos monitores que formámos e que ao momento se encontra a equipar e a
instalar uma matilha funcional para guarda (heterogénea), constituída por
Pastores Alemães e Leões da Rodésia, desafio deveras estimulante mas que exige
especial cuidado, porque os elementos da matilha que se propõe formar são por
norma hostis entre si, o que irá exigir como primeira meta a sua sociabilização.
Acostumados a estas dificuldades, porque sempre demos aulas colectivas, treinámos
Pastores Alemães e nunca nos faltaram Leões da Rodésia nas classes, somos
sabedores das causas por detrás da antipatia que as raças nutrem uma pela
outra. Ambas são altamente gregárias e territoriais, dadas ao desafio,
tendentes à fixação e levadas a desconfiar, sendo por isso concorrentes. Se o
Pastor Alemão é rancoroso, o Leão da Rodésia é cismático; se o primeiro adora
policiar, o segundo opta por evoluir dissimulado. Naturalmente não tirarão os
olhos um do outro, aguardarão oportunidade, um momento em que tenham vantagem
pelo descuido do outro - são predadores! Para todos os efeitos o Leão da
Rodésia é um “hound” com corpo de molosso e o Pastor Alemão não está para ser
caçado ou surpreendido, adivinha-lhe as intenções e quer arrumá-lo de vez. Por
causa disso, nenhum deles irá dar as costas ao outro.
O que acabámos de dizer
reporta-se aos primeiros encontros entre dois machos adultos, independentemente
de já terem copulado ou não, cada um de sua raça, robustos, ambos dominantes, não-castrados,
que nunca se viram e que não foram objecto de qualquer tipo de sociabilização,
cada um com o seu dono ao lado e com mútua possibilidade de observação, já que
a aceitação das cadelas pelos machos é comum a ambos e tão natural quanto a
havida com outras cadelas, quer tenham raça ou não, sobrando por aí, por razões
menos decorosas, híbridos de ambas as raças alcunhados de “German Ridgeback”,
uns fofinhos pouco dados a brincadeiras por serem considerados altamente
perigosos, conforme se tem vindo a verificar.
Qualquer
casal de Pastores Alemães ou de Leões da Rodésia aceitará um cachorro da raça
do outro, mas nunca depois dos 10 meses de idade, o que tornará o Cão Africano
mais previsível quando criado entre Pastores e o Pastor Alemão mais subversivo
quando criado entre Leões da Rodésia. Tudo leva a crer que o nosso monitor irá
demorar mais tempo a sociabilizar aquela matilha do que a pô-la atacar, o que o
obrigará a equilibrar, numa primeira fase, a obediência com a guarda
propriamente dita, sem enfraquecer o instinto de presa e comprometer o desejo
da captura de cada um deles, porque doutro modo servir-se-ão da ocasião dos
ataques para se virarem uns contra os outros, por procurarem a liderança nas
acções e disputarem os mesmos pontos de entrada (ataque) nas cobaias.
Que ninguém duvide: uma
matilha funcional para guarda constituída por Pastores Alemães e Leões da
Rodésia é altamente eficaz e facilmente será letal, porque dela sempre
resultarão ataques praticamente indefensáveis por serem impetuosos, inesperados
e distribuídos, assim como múltiplos ataques à jugular, desde sempre
considerados assassinos (compreende-se porquê). O nosso amigo trabalhará a rogo
de quem? Provavelmente não será para uma associação filantrópica ou para alguém
que tem como missão estender o amor de Deus aos homens! Melhor seria que
somente lhes ensinasse obediência, o que impediria futuramente de vir a
sentar-se no “banco dos réus” ou o seu inevitável internamento num hospital
psiquiátrico.
Retornemos à
sociabilização. Primeiro há que dotar cada cão de uma obediência
inquestionável, ao ponto de não se mexerem, debaixo do comando de “quieto”,
mesmo que o comboio “alfa pendular” lhes passe rente ao focinho em alta
velocidade, o que equivale a dizer que a prontidão dos seus ataques deverá ser
igual à sua cessação. Depois trabalhar-se-ão as fêmeas com cada macho
isoladamente, para se objectivar o controlo dos instintos e se ir compondo
parcelarmente a matilha segundo o seu propósito. Os machos deverão ser sujeitos
a todas as manobras de sociabilização que usamos, inclusive ao “duo”, primeiro
à trela e depois em liberdade, para que a liderança animal não se sobreponha à
humana, os cães possam trabalhar em conjunto e aceitar cada um e sem reticências
o trabalho que lhe foi destinado, respeitando em simultâneo o esforço e as incumbências
dos outros.
Só depois da aprovação nas manobras de sociabilização animal é que
os machos deverão ser convidados para atacar em conjunto, ataque que deverá
cessar imediatamente caso se verifique alguma escaramuça entre eles, eventualidade
que os obrigará a retornar às ditas manobras, procedimento igualmente válido e
indicado para as fêmeas que lutam entre si, por ausência de um genuíno macho
dominante que as lidere (como o escalonamento social canino tem como líder um
macho, nenhuma cadela aceitará facilmente o domínio laboral de outra, particularmente
se for recém-chegada, mais nova ou diferente).
Resumindo, o nosso monitor
terá primeiro que pacificar (sociabilizar) os cães entre si e só depois partir
para a “guerra”, discipliná-los um a um para depois os poder controlar em
matilha. Ainda que não lhe venha a agradar, ciclicamente terá de retornar à
sociabilização, porque os níveis de confiança caninos aumentam com o número dos
ataques e alguns cães usam-nos como pretexto para um ajuste de contas. E como
se isto não bastasse, sempre que uma cadela entra em cio o escalonamento social
da matilha pode sofrer alteração, como sofrerá se algum cão ficar doente. Por
tudo isto se compreende quão exigente deve ser o treino de um cão de guarda,
uma arma de precisão que não pode disparar-se acidentalmente.
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