Todos sabemos que as actuais raças caninas se
encontram enfermas, que em muitas delas são visíveis insuficiências que
comprometem o seu bem-estar, rusticidade, saúde, versatilidade, préstimo,
resistência e longevidade, deméritos que se devem à abusiva endogamia perpetrada
pelos diversos criadores nos últimos 120 anos, dos quais alguns, teimosamente,
não arredam pé, mais por razões económicas que pelo amor e respeito aos cães, que
apesar de feitos para nos acompanhar, não devem pagar o preço da nossa loucura
pela perca da sua qualidade de vida. A dimensão do problema escapa ao cidadão
comum mas é sobejamente conhecido por quem já o experimentou ou vivencia.
Diante do disparate, equacionam-se três hipóteses para a sua solução: retornar
às origens, hibridar ou refazer as raças caninas actuais. Cada uma delas tem
alcançado seguidores e todos procuram devolver aos cães aquilo que até aqui
lhes roubámos. A clonagem não tem vindo a ser considerada e encarada como
solução, porque se encontra numa fase experimental, não está isenta de
problemas e além disso é agora muito dispendiosa. Não obstante, muito se espera
dos avanços da engenharia genética.
Retornar às origens é praticamente impossível
em algumas raças, quer pelo desaparecimento dos cães originais quer pelo
distanciamento entre eles e os seus sucedâneos, o que torna o ADN dos últimos marginal
em relação aos primeiros. Acresce ainda entre eles a ocorrência de fenótipos
que por manuseamento se tornaram dominantes por força da procura, o que de
certo modo impede o retorno à biodiversidade original que garantia o bem-estar
dos cães, por se encontrar ainda debaixo dos auspícios da selecção natural. A somar
a isto, mesmo que tal fosse possível, pergunta-se: quem estaria disposto, por
sua conta e risco, a empreender tal caminho, uma vez que não estaria ao alcance
de um vulgar criador, a jornada seria demorada, não ressarcida e por isso mesmo
mais dispendiosa. Todavia, tal é ainda possível nalgumas raças, como é o caso
do Pastor Alemão, onde ainda subsistem exemplares díspares, tanto de morfologia
como de aptidão, comummente diferenciados a grosso modo por linha de beleza e
de trabalho, assim como variedades cromáticas arredadas do estalão que
continuam a valer-lhe debaixo de alguma hipocrisia, vista grossa e secretismo (cite-se
a título de exemplo o caso dos brancos para a produção dos cinzentos e o
aparecimento de brancos muito angulados).
O recurso à hibridação, que numa primeira
fase esteve na origem das diferentes raças caninas, há muito que vem sendo
experimentado e surge agora como a hipótese mais válida, segundo alguns, contra
a menor qualidade de vida e menor grau de aptidão dos cães, visando a sua
melhor adaptação e longevidade. Se nas décadas de 40, 50, 60 e 70 do Século
passado se procurava através dela a obtenção de novas raças, estratégia que se
mantém até aos nossos dias, hoje recorrem-se a diversos cães saudáveis, de
acordo com as suas características somáticas, para valer às diferentes raças
fustigadas de vários achaques, reintegrando depois os seus descendentes nelas,
doando-lhes a saúde que não tinham até aqui. Idêntica iniciativa, ainda que
debaixo doutros propósitos, tem valido a um pequeno número de criadores, que
querendo reforçar determinadas características morfológicas menos visíveis nos
seus cães ou querendo suavizar-lhes o carácter, se servem doutros de grupos
somáticos idênticos ou até de alguns díspares, onde as características
procuradas são por demais evidentes, não raramente diante da boa-fé,
desconhecimento e ingenuidade dos juízes de raça. De qualquer modo, da
hibridação até à formação de uma raça vai um longo e por vezes penoso caminho.
Por esta mesma razão, se a formação das
distintas raças caninas obedecer aos mesmos cuidados como até aqui, refazê-las,
como quem embaralha um baralho de cartas, parte e dá, não nos parece a solução
mais plausível, até porque em termos de resultados obtidos, sempre será mais
fácil trabalhar com híbridos do que com mestiços. E se porventura daí
chegássemos ao cão virginal, melhor seria ficarmos por lá, porque isso
significaria que havíamos recriado também os ecossistemas naturais que
possibilitaram as diferenças entre os primitivos lobos familiares (cães).
Estamos em crer que tanto o retorno às origens como a hibridação e a formação
de novas raças não terão pernas para andar no futuro, que deverá passar pela
identificação das mutações dos genes causadoras de doenças, incapacidades e
menos valias, quer arredando da criação os seus portadores quer descobrindo-lhes
novas terapias, apesar de não sermos videntes, cartomantes ou profetas. E
cremos nisso por acompanhamos o desenvolvimento da ciência e sabermos desde
1998, altura em que se publicou a descoberta do mecanismo fundamental para o
controlo dos fluxos de informações genéticas, nomeadamente a "interferência
ARNi”, que valendo-se dum enzima, consegue degradar, neutralizar e reduzir ao
silêncio o seu mensageiro sem tocar no genoma, mesmo eliminando-se o gene, o que
é uma óptima notícia para os cães do presente e do futuro, quando constituída
em medicamento e posta à sua disposição. Graciosamente ainda podemos unir o
passado ao presente e contar a história do Pastor Alemão de trás para a frente,
libertando-o das mazelas que o atormentam.
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