quarta-feira, 2 de março de 2016

RAÇAS CANINAS: RETORNAR ÀS ORIGENS, HIBRIDAR OU REFAZER?

Todos sabemos que as actuais raças caninas se encontram enfermas, que em muitas delas são visíveis insuficiências que comprometem o seu bem-estar, rusticidade, saúde, versatilidade, préstimo, resistência e longevidade, deméritos que se devem à abusiva endogamia perpetrada pelos diversos criadores nos últimos 120 anos, dos quais alguns, teimosamente, não arredam pé, mais por razões económicas que pelo amor e respeito aos cães, que apesar de feitos para nos acompanhar, não devem pagar o preço da nossa loucura pela perca da sua qualidade de vida. A dimensão do problema escapa ao cidadão comum mas é sobejamente conhecido por quem já o experimentou ou vivencia. Diante do disparate, equacionam-se três hipóteses para a sua solução: retornar às origens, hibridar ou refazer as raças caninas actuais. Cada uma delas tem alcançado seguidores e todos procuram devolver aos cães aquilo que até aqui lhes roubámos. A clonagem não tem vindo a ser considerada e encarada como solução, porque se encontra numa fase experimental, não está isenta de problemas e além disso é agora muito dispendiosa. Não obstante, muito se espera dos avanços da engenharia genética.
Retornar às origens é praticamente impossível em algumas raças, quer pelo desaparecimento dos cães originais quer pelo distanciamento entre eles e os seus sucedâneos, o que torna o ADN dos últimos marginal em relação aos primeiros. Acresce ainda entre eles a ocorrência de fenótipos que por manuseamento se tornaram dominantes por força da procura, o que de certo modo impede o retorno à biodiversidade original que garantia o bem-estar dos cães, por se encontrar ainda debaixo dos auspícios da selecção natural. A somar a isto, mesmo que tal fosse possível, pergunta-se: quem estaria disposto, por sua conta e risco, a empreender tal caminho, uma vez que não estaria ao alcance de um vulgar criador, a jornada seria demorada, não ressarcida e por isso mesmo mais dispendiosa. Todavia, tal é ainda possível nalgumas raças, como é o caso do Pastor Alemão, onde ainda subsistem exemplares díspares, tanto de morfologia como de aptidão, comummente diferenciados a grosso modo por linha de beleza e de trabalho, assim como variedades cromáticas arredadas do estalão que continuam a valer-lhe debaixo de alguma hipocrisia, vista grossa e secretismo (cite-se a título de exemplo o caso dos brancos para a produção dos cinzentos e o aparecimento de brancos muito angulados).
O recurso à hibridação, que numa primeira fase esteve na origem das diferentes raças caninas, há muito que vem sendo experimentado e surge agora como a hipótese mais válida, segundo alguns, contra a menor qualidade de vida e menor grau de aptidão dos cães, visando a sua melhor adaptação e longevidade. Se nas décadas de 40, 50, 60 e 70 do Século passado se procurava através dela a obtenção de novas raças, estratégia que se mantém até aos nossos dias, hoje recorrem-se a diversos cães saudáveis, de acordo com as suas características somáticas, para valer às diferentes raças fustigadas de vários achaques, reintegrando depois os seus descendentes nelas, doando-lhes a saúde que não tinham até aqui. Idêntica iniciativa, ainda que debaixo doutros propósitos, tem valido a um pequeno número de criadores, que querendo reforçar determinadas características morfológicas menos visíveis nos seus cães ou querendo suavizar-lhes o carácter, se servem doutros de grupos somáticos idênticos ou até de alguns díspares, onde as características procuradas são por demais evidentes, não raramente diante da boa-fé, desconhecimento e ingenuidade dos juízes de raça. De qualquer modo, da hibridação até à formação de uma raça vai um longo e por vezes penoso caminho.
Por esta mesma razão, se a formação das distintas raças caninas obedecer aos mesmos cuidados como até aqui, refazê-las, como quem embaralha um baralho de cartas, parte e dá, não nos parece a solução mais plausível, até porque em termos de resultados obtidos, sempre será mais fácil trabalhar com híbridos do que com mestiços. E se porventura daí chegássemos ao cão virginal, melhor seria ficarmos por lá, porque isso significaria que havíamos recriado também os ecossistemas naturais que possibilitaram as diferenças entre os primitivos lobos familiares (cães). Estamos em crer que tanto o retorno às origens como a hibridação e a formação de novas raças não terão pernas para andar no futuro, que deverá passar pela identificação das mutações dos genes causadoras de doenças, incapacidades e menos valias, quer arredando da criação os seus portadores quer descobrindo-lhes novas terapias, apesar de não sermos videntes, cartomantes ou profetas. E cremos nisso por acompanhamos o desenvolvimento da ciência e sabermos desde 1998, altura em que se publicou a descoberta do mecanismo fundamental para o controlo dos fluxos de informações genéticas, nomeadamente a "interferência ARNi”, que valendo-se dum enzima, consegue degradar, neutralizar e reduzir ao silêncio o seu mensageiro sem tocar no genoma, mesmo eliminando-se o gene, o que é uma óptima notícia para os cães do presente e do futuro, quando constituída em medicamento e posta à sua disposição. Graciosamente ainda podemos unir o passado ao presente e contar a história do Pastor Alemão de trás para a frente, libertando-o das mazelas que o atormentam.

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