domingo, 13 de março de 2016

QUANDO O INSTINTO DE PRESA ULTRAPASSA O DA SOBREVIVÊNCIA

Quando o instinto de presa ultrapassa o da sobrevivência num cão ou numa raça em particular, estamos na presença de animais terrivelmente perigosos, diante de cães suicidas cujo condicionamento será muito difícil, jamais absoluto e que obrigará a meios e cuidados extraordinários, considerando a gravidade do dolo causado, que poderá até levar à morte das vítimas, segundo o carácter automático e imprevisível dos seus ataques, a que juntam um ímpeto pouco visto. Cães assim caracterizados são verdadeiros “kamikazes” que não cessam na procura de alvos e manifestam especial apetite pelos mais fracos e medrosos, alcançando depois presas maiores e mais fortes sem o concurso da experiência prévia e da provocação. Ainda que eles façam as delícias de treinadores e proprietários insanos, devem ser castrados, porque mais cedo ou mais tarde acabarão abatidos, não raramente depois de haverem perpetrado um inusitado, tremendo, irreversível e irremediável disparate. Este desvio comportamental é felizmente raro, muito embora desejado e procurado por uns poucos, gente que satisfaz as suas patologias pelo desejo e prática do fratricídio. Mentiríamos se disséssemos que nunca vimos cães destes e mentiríamos outra vez se negássemos que vieram a ser abatidos.
É importante não confundir estes cães com outros cujos impulsos inatos ao poder e à luta são em muito superiores ao do conhecimento, apesar do seu controlo exigir maior acuidade técnica e o seu processo pedagógico não dispensar o travamento, o que equivale a dizer que exigem um dono resoluto e experiente, para os incentivar à curiosidade indutora à cumplicidade e ao trabalho útil. Se os primeiros são instintivamente mais autónomos, despoletam as suas acções à revelia dos líderes, são dissimulados e silenciosos na fixação, perseguição e ataque dos seus alvos, procuram os conflitos por si mesmos, a eliminação das suas vítimas e não dispensam o ajuste de contas, os segundos carecem de maior ajuda, só evoluem pelo treino, desnudam as suas intenções aos líderes, avisam as vítimas, adquirem uma mímica própria para a função, cessam os seus ataques por ausência de resistência, temem o castigo e evitam ou hesitam atacar contendores com os quais foram malsucedidos. Ambos podem matar, os primeiros por incontido desejo individual e os segundos para apresentar serviço, o que denota uma razão social: o agrado dos donos, o que lembra a diferença entre um criminoso e um polícia. Os cinófobos confundem-nos e é comum ouvir-lhes dizer: “entre uns e outros, que venha o diabo e escolha!”.
Diante disto, convém desambiguar o termo “rusticidade”, tantas vezes mal usado e mal compreendido por cinófilos, canicultores e cinotécnicos. A rusticidade que se procura na canicultura está directamente relacionada com o menor cuidado nos diferentes estádios etários que os cães atravessam, com a maior resistência às doenças, às agressões ambientais e com a maior longevidade. Na cinotecnia, a somar a isso, a rusticidade procurada passa por uma melhor capacidade de adaptação, maior autonomia individual, uma maior capacidade de resolução, uma excelente máquina sensorial, fluência dos andamentos naturais (biomecânica típica e capaz), versatilidade, robustez e boa capacidade atlética, desde que próprias para a parceria e de fácil aproveitamento para fim útil.
O retorno à rusticidade visível nos cães de outrora, anterior às selecções operadas pelo eugenismo negativo, que tantas raças continua a vitimar, tem passado maioritariamente pelo retorno ao atavismo, nomeadamente pela hibridação com os diversos lobos e outros canídeos selvagens, cujos descendentes são férteis. Infelizmente essa estratégia não tem dado os frutos desejados. Ainda que do ponto vista físico se assista uma melhoria significativa, do ponto de vista psicológico é notório um retrocesso, devido à sobrecarga instintiva que obsta ao aproveitamento desses animais, mais autónomos e menos participativos, que usam a autonomia assim alcançada contra a liderança humana, o que tem vindo a causar sérios entraves ao seu uso consensual. Se em muitos é notório um total desencanto pelo trabalho, lembrando condenados ou mortos-vivos, outros há (muito poucos) que se tornam extremamente anti-sociais e perigosos, o que tem travado a sua proliferação e obrigado a um sem número de leis persuasivas, coercivas e restritivas, visando diminuir o percentual de sangue lobo nos cães e subtrair os riscos de dolo passíveis de serem causados pelos híbridos sobre pessoas e animais (cite-se o exemplo dos Estados Unidos).
Não é do lobo e dos seus híbridos que vem o maior perigo mas dos cães assassinos que se produzem, proposital ou acidentalmente, lobos familiares que de doméstico têm pouco e que resultam invariavelmente dos cruzamentos entre lupinos e molossos com forte sentimento territorial, juntando a versatilidade dos primeiros à vontade indomável presente nos segundos. Um cão de características assassinas e suicida não deverá ser treinado para guarda, porque dispensa motivos para atacar e qualquer convite ou motivação mais agravará o seu despropósito e comprometerá o seu controlo, a menos que queiramos ser “abatidos por fogo amigo” (alguns já foram). Treinar um cão para guarda é fazê-lo debaixo da estrita dependência do dono, obter dele uma obediência inquestionável, estabelecer-lhe regras de actuação, operar a sua reciclagem e labutar pela sua salvaguarda, para que não caia sobre tudo o que mexe e apenas reaja para o que foi preparado, verdades que parecem esquecidas e omitidas. Ainda que um cão seja excelente, com um equilíbrio notável e de fácil ensino para guarda, jamais deverá sê-lo se o seu dono for imaturo, irresponsável, anti-social, revoltado e desequilibrado, dado a extremos anímicos e facilmente irritável (inflamável), porque importa desarmar quem se descontrola, quer seja cão quer seja homem. Acerca da temática vale a pena lembrar uma cantilena da nossa infância: “se um elefante incomoda muita gente, dois elefantes incomodam muito mais”. 

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