Quando o instinto de presa ultrapassa o
da sobrevivência num cão ou numa raça em particular, estamos na presença de
animais terrivelmente perigosos, diante de cães suicidas cujo condicionamento
será muito difícil, jamais absoluto e que obrigará a meios e cuidados
extraordinários, considerando a gravidade do dolo causado, que poderá até levar
à morte das vítimas, segundo o carácter automático e imprevisível dos seus
ataques, a que juntam um ímpeto pouco visto. Cães assim caracterizados são verdadeiros
“kamikazes” que não cessam na procura de alvos e manifestam especial apetite
pelos mais fracos e medrosos, alcançando depois presas maiores e mais fortes
sem o concurso da experiência prévia e da provocação. Ainda que eles façam as
delícias de treinadores e proprietários insanos, devem ser castrados, porque mais cedo ou mais tarde acabarão
abatidos, não raramente depois de haverem perpetrado um inusitado, tremendo,
irreversível e irremediável disparate. Este desvio comportamental é felizmente
raro, muito embora desejado e procurado por uns poucos, gente que satisfaz as
suas patologias pelo desejo e prática do fratricídio. Mentiríamos se
disséssemos que nunca vimos cães destes e mentiríamos outra vez se negássemos
que vieram a ser abatidos.
É importante não confundir
estes cães com outros cujos impulsos inatos ao poder e à luta são em muito
superiores ao do conhecimento, apesar do seu controlo exigir maior acuidade
técnica e o seu processo pedagógico não dispensar o travamento, o que equivale
a dizer que exigem um dono resoluto e experiente, para os incentivar à
curiosidade indutora à cumplicidade e ao trabalho útil. Se os primeiros são
instintivamente mais autónomos, despoletam as suas acções à revelia dos líderes,
são dissimulados e silenciosos na fixação, perseguição e ataque dos seus alvos,
procuram os conflitos por si mesmos, a eliminação das suas vítimas e não
dispensam o ajuste de contas, os segundos carecem de maior ajuda, só evoluem
pelo treino, desnudam as suas intenções aos líderes, avisam as vítimas,
adquirem uma mímica própria para a função, cessam os seus ataques por ausência
de resistência, temem o castigo e evitam ou hesitam atacar contendores com os
quais foram malsucedidos. Ambos podem matar, os primeiros por incontido desejo
individual e os segundos para apresentar serviço, o que denota uma razão social:
o agrado dos donos, o que lembra a diferença entre um criminoso e um polícia. Os
cinófobos confundem-nos e é comum ouvir-lhes dizer: “entre uns e outros, que
venha o diabo e escolha!”.
Diante disto, convém
desambiguar o termo “rusticidade”, tantas vezes mal usado e mal compreendido
por cinófilos, canicultores e cinotécnicos. A rusticidade que se procura na
canicultura está directamente relacionada com o menor cuidado nos diferentes
estádios etários que os cães atravessam, com a maior resistência às doenças, às
agressões ambientais e com a maior longevidade. Na cinotecnia, a somar a isso, a
rusticidade procurada passa por uma melhor capacidade de adaptação, maior
autonomia individual, uma maior capacidade de resolução, uma excelente máquina
sensorial, fluência dos andamentos naturais (biomecânica típica e capaz),
versatilidade, robustez e boa capacidade atlética, desde que próprias para a
parceria e de fácil aproveitamento para fim útil.
O retorno à rusticidade visível nos cães
de outrora, anterior às selecções operadas pelo eugenismo negativo, que tantas
raças continua a vitimar, tem passado maioritariamente pelo retorno ao
atavismo, nomeadamente pela hibridação com os diversos lobos e outros canídeos
selvagens, cujos descendentes são férteis. Infelizmente essa estratégia não tem
dado os frutos desejados. Ainda que do ponto vista físico se assista uma melhoria
significativa, do ponto de vista psicológico é notório um retrocesso, devido à
sobrecarga instintiva que obsta ao aproveitamento desses animais, mais
autónomos e menos participativos, que usam a autonomia assim alcançada contra a
liderança humana, o que tem vindo a causar sérios entraves ao seu uso
consensual. Se em muitos é notório um total desencanto pelo trabalho, lembrando
condenados ou mortos-vivos, outros há (muito poucos) que se tornam extremamente
anti-sociais e perigosos, o que tem travado a sua proliferação e obrigado a um
sem número de leis persuasivas, coercivas e restritivas, visando diminuir o
percentual de sangue lobo nos cães e subtrair os riscos de dolo passíveis de
serem causados pelos híbridos sobre pessoas e animais (cite-se o exemplo dos
Estados Unidos).
Não é do lobo e dos seus híbridos que
vem o maior perigo mas dos cães assassinos que se produzem, proposital ou
acidentalmente, lobos familiares que de doméstico têm pouco e que resultam
invariavelmente dos cruzamentos entre lupinos e molossos com forte sentimento
territorial, juntando a versatilidade dos primeiros à vontade indomável presente
nos segundos. Um cão de características assassinas e suicida não deverá ser
treinado para guarda, porque dispensa motivos para atacar e qualquer convite ou
motivação mais agravará o seu despropósito e comprometerá o seu controlo, a
menos que queiramos ser “abatidos por fogo amigo” (alguns já foram). Treinar um
cão para guarda é fazê-lo debaixo da estrita dependência do dono, obter dele
uma obediência inquestionável, estabelecer-lhe regras de actuação, operar a sua
reciclagem e labutar pela sua salvaguarda, para que não caia sobre tudo o que
mexe e apenas reaja para o que foi preparado, verdades que parecem esquecidas e
omitidas. Ainda que um cão seja excelente, com um equilíbrio notável e de fácil
ensino para guarda, jamais deverá sê-lo se o seu dono for imaturo,
irresponsável, anti-social, revoltado e desequilibrado, dado a extremos
anímicos e facilmente irritável (inflamável), porque importa desarmar quem se
descontrola, quer seja cão quer seja homem. Acerca da temática vale a pena
lembrar uma cantilena da nossa infância: “se um elefante incomoda muita gente,
dois elefantes incomodam muito mais”.
Sem comentários:
Enviar um comentário