Como
que por artes mágicas, já antes da publicação da lei relativa aos cães
perigosos, o Dobermann desapareceu das moradias, quintais e quintas, das praças
e das ruas onde outrora tanto se via, um cão entendido como letal, malicioso e
implacável, com uma fama tal, que se dizia morder nos próprios donos, figura
sinistra para os cinófobos e um verdadeiro pesadelo para os prevaricadores, adiantando-se
ainda que a sua cabeça, ao atrofiar com a idade, acabava por torná-lo
incontrolável, num diabo de quatro patas e de dentes afiados. Badalava-se que
era “o cão do Hitler”, outra mentira que ninguém contestava e se atrevia a
desmentir, uns porque viam nele um “papão” e outros porque lhes interessava
essa fama, mitos que foram também responsáveis pela sua menor procura, como se
fosse meramente instintivo e vocacionado exclusivamente para matar, quando
somados ao transtorno visível nalguns exemplares. Curiosamente treinámos muitos
mas nunca vimos nenhum belzebu assim! Será que não tivemos sorte ou foi o azar
nunca nos largou? Será que nem o diabo quer nada connosco? Teria a queda dos
regimes totalitários, segregacionistas e repressivos contribuído para o
descarte deste cão alemão, uma vez que os cidadãos passaram a ser entendidos
como amigos a pôr na ordem e não como inimigos a abater? Especulações e
conjecturas não faltam!
É
verdade que no passado um número considerável de dobermans apresentava
problemas de comportamento relacionados com a excessiva agressividade e descontrolo,
fenómenos mais comuns entre os adestradores civis do que entre os militares,
como acontece com qualquer outra raça de características idênticas quando vão
parar a mãos inapropriadas, o que levou os criadores alemães a correr atrás do
prejuízo (porque ninguém cria cães para ficar com eles) e, como diz o povo:
“enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”, o Dobermann acabou por ser
preterido por outros cães eventualmente mais fiáveis, apesar do melhoramento
pretendido ter sido alcançado na raça, havendo alguns cães actuais que pecam
por excesso do cordialidade e pouco ou nada se identificam com os raros algozes
do passado, na sua maioria resgatados pelos criadores norte-americanos, que
continuaram a usá-los sem restrições, subsistindo por isso uma clara diferença
entre as linhas americana e a europeia, tanto a nível morfológico como
psicológico. Cães duros e donos macios são associações que concorrem a desfavor
dos últimos. Não nos custa acreditar, porque já cá andamos há alguns anos, que
muitos dos cães problemáticos do passado jamais o seriam se fossem parar às
mãos certas. Para todos os efeitos, um cão dominante, resoluto e valente é uma
arma e o uso das armas não pode ser extensível a todos (o Obama que o diga!),
porque os acidentes acontecem, alguns homens de arma em punho transfiguram-se
ou acabam por revelar algo que até ali oculto, contudo presente na sua natureza
(não é por acaso que se exige uma disciplina inquestionável a polícias e
militares).
Apesar
do Herr Karl Friedrich Louis Dobermann, nascido Tobermann (1834-1894), a quem a
raça deve o nome, ter logrado os seus intentos ao construir um cão para as suas
necessidades, no que foi secundado após a sua morte por Otto Goeller e Philip
Gruening, que fosse simultaneamente protector, forte, leal, inteligente e feroz
e, de logo ter sido elaborado um estalão da raça em 1899, só em 1957 ela viria
a ser reconhecida pela FCI. É por demais evidente que os tempos eram outros.
Será que não voltaram e nalguns casos se perpetuaram? Não queremos ser
apóstolos da desgraça! A novidade do Dobermann e os propósitos para que foi
criado, a partir de várias raças como o Pastor Alemão, Beauceron, Pinscher
Alemão, Rottweiler, Weimaraner, Greyhound Inglês e Manchester Terrier (a quem
muito deve, muito embora seja cativo à matriz do pinscher alemão), fizeram com que
rapidamente granjeasse fama como o melhor dos guardiões e alimentaram um sem
número de mitos que lhe vieram a ser fatais (o boom dos Dobermann aconteceu em
Portugal e no Brasil na década de 80 do Século passado). Designado inicialmente
por “Dobermann-Pinscher”, o seu segundo nome haveria de desaparecer pela
disparidade havida entre as categorias “pinscher” e “terrier”, segundo o parecer
de criadores alemães e ingleses. Dizem alguns autores, citando o mentor da
raça, que o objectivo deste era criar um cão grande com a agressividade e
combatividade presentes nos mais pequenos, nomeadamente nos terriers,
reconhecidamente cães de matança. E se assim foi, parece tê-lo alcançado!
Foi
o cinema quem mais contribui para a divulgação da raça, tanto para o melhor
como para o pior, através do filme norte-americano “The Doberman Gang”,
estreado em 1972 e da autoria de Byron Ross Chudnow, onde uma matilha de seis
cães, devidamente treinados e orientados pelo seu dono, assalta um banco.
Devido ao êxito de bilheteira, este filme viria a ser secundado por outros
dois: “The Daring Dobermans” (1973) e “The Amazing Dobermans” (1976), obras que
por toda a parte suscitaram um invulgar interesse pela raça. E se isso
aconteceu nos “States”, não foi por acaso e não ficou somente a dever-se à
indústria cinematográfica local, mas à popularidade que a raça alcançou
naquelas paragens, já que o primeiro exemplar chegou ali em 1908 e o “Doberman
Pinscher Club of América” remonta ao ano de 1921.
Não
fora o caso dos americanos terem importado um grande número de Dobermans, a
raça acabaria extinta por lá, porque foi amplamente solicitada, recrutada e
usada pelas forças militares dos Estados Unidos na II Guerra Mundial, mormente
contra os japoneses na Guerra do Pacífico, o que teve como consequência a morte
em combate de muitos daqueles cães. E como os americanos não brincam em serviço
no que ao pragmatismo diz respeito, querendo manter intactas as qualidades dos
dobermans originais, mantiveram estreito contacto com os criadores alemães nos
anos que antecederam o Segundo Grande Conflito Mundial (1939-1945), apesar de
só terem participado nele a partir de 1941.
E
como o relato vai extenso, caberá aos homens do Dobermann pronunciar-se mais
amiúde sobre o assunto. Cabe-nos a nós, enquanto treinadores de cães,
desmistificar a raça, esclarecer os interessados e a opinião pública acerca
deste cão sem paralelo e aparentemente esquecido, segundo o que nos foi e é
dado a observar. Como já atrás dissemos, em termos de aptidão, porte, peso e
agressividade, os dobermans americanos nada têm a ver com os seus congéneres
europeus, porque os últimos são notoriamente mais pequenos, menos dominantes e
mais manobráveis, havendo-os de todos os perfis psicológicos e para diferentes
aptidões, inclusive alguns que dificilmente se prestarão para qualquer dos
trabalhos típicos de guarda. Não obstante, também sobram outros, ainda que em
pequeno número, com as características incólumes para a prestação desse
serviço. Esta disparidade de comportamentos deve-se à macedónia de cães na sua
origem e à maior ou menor profusão sanguínea de algum ou de alguns dos tipos
somáticos díspares presentes na formação da raça, opção por detrás das
diferentes linhas de criação, na diferença que vai entre um galgo e um molosso
ou entre um pointer e um pastor. Compreende-se a disparidade de comportamento
existente entre os dobermans americanos e os europeus, uma vez que a Europa se
encontra pacificada e a América ainda não fez a paz consigo mesma, porque doutro
modo já teria acabado com a venda livre de armas de fogo, prática que relembra
e tende a perpetuar a lendária época dos cowboys (dos bons e dos maus).
A
possibilidade da existência de 36 subtipos de dobermans, advindos de seis tipos
principais, torna morosa a sua análise por obrigar à minúcia, pelo que nos
dispensamos imediatamente desse trabalho, já que não pretendemos maçar os
nossos leitores e não ser esse o nosso objectivo. Costuma ouvir-se que “quando
uns não querem, estão os outros estalando” e este é o nosso caso, porque nos
dedicamos ao ensino canino. Assim vamos analisar, a grosso modo e
comparativamente, o Doberman clássico, o típico guardião que não dispensa o
treino e que nele melhora a sua prestação para esse fim, tendo como modelos
comparativos o Pastor Alemão, o Rottweiler e o Pastor Belga Malinois, raças
tradicionalmente produzidas e usadas para guarda, de acordo com as suas
costumeiras prestações, considerando os seguintes itens: presença ostensiva; nível
de alerta; grau de aviso; capacidade de dissimulação; disponibilidade e velocidade
de arranque; instinto de presa; potência de mordedura; persistência na captura;
capacidade de impactar golpes; capacidade de recuperação; grau de policiamento;
prontidão de travamento; possibilidade de evolução e interacção em grupo (deliberadamente
não estamos seguir nenhum parâmetro ou ordem avaliativa das actuais provas de
guarda desportivas em vigor).
O
Doberman em termos de presença ostensiva e intimidatória não fica atrás de nenhum
dos três cães usados para comparação, tendo ainda a seu favor o respeito e
terror que que a fama lhe atribuiu. O seu nível de alerta é igual ao encontrado
no Pastor Alemão, superior ao do Rottweiler e mais fiável que o encontrado no
Malinois. Tem uma capacidade de dissimulação superior à dos três. O seu nível
de alerta é excelente e não fica atrás de nenhum. Avisa menos que o Pastor Alemão,
equipara-se ao Rottweiler e ladra mais grosso que o Malinois. A sua velocidade
no arranque é superior à encontrada nos cães alemães e ligeiramente inferior à
do Malinois. O seu instinto de presa é excelente. A sua potência de mordedura é
superior à do Pastor Alemão e do Malinois e inferior à do Rottweiler. Persegue
bem e persiste na captura porque é resistente. A sua capacidade de impactar
(suportar) golpes só é inferior à do Rottweiler e tem como vantagem a sua
agilidade, que tanto lhe permite fazer ataques superiores como desviar-se dos
golpes mais evidentes. Recupera facilmente dos esforços (não tão rápido como o
Malinois). Revista e policia exemplarmente. Cessa as acções defensivas e
ofensivas, quando ordenadas, mais rápido que o molosso alemão e o Malinois.
As
doenças mais comuns nesta raça, algumas até herdadas do pinscher, fruto de
beneficiamentos insensatos, são: cardiomiopatia (que pode causar-lhe morte súbita);
doença valvar crónica; defeito septal atrial (defeito cardíaco congénito); estenose
pulmonar; persistência do canal arterial e outros (decididamente o coração é um
órgão problemático nesta raça). Do ponto de vista ortopédico sobressaem os
seguintes problemas: Síndrome de Wobbler (variedade de anomalias que afecta a
coluna cervical); displasia da anca (praticamente irradiada); osteocondrite do
ombro e sufocar; osteodistrofia hipertrófica; panosteíte (dores de crescimento
nos ossos mais longos que cessam com a idade) e por vezes osteopatia
craniomandibular. É comum acontecer nos cachorros Doberman a flexão do carpo,
afecção que os obrigará a virar as patas para dentro quando de pé e que desaparece
por si própria. A raça é também fustigada pela doença de Willebrand (lentidão anormal
na coagulação do sangue), enfermidade que até há pouco tempo afectava 3 em cada
4 Dobermans (50% eram portadores e 30% sofriam da doença). As doenças mais
comuns do sistema hormonal são: diabetes e hipotireoidismo (14% dos Dobermans
tinham baixos níveis de tireóide). Sobram ainda algumas doenças neuromusculares
como tremores da cabeça; narcolepsia, e polineuropatia, uma doença hereditária
do sistema nervoso central, muitas vezes referida como “Doença do Doberman
Dançarino”. São muitas as doenças da pele que afectam a raça e ela é ainda
fustigada por problemas como anemia hemolítica auto-imune, deficiências de
imunoglobulinas, doença renal, insuficiência pancreática, problemas de fígado,
e hepatite crónica activa (há mais).
Com
um quadro clínico destes compreende-se o desprezo a que se viu votada a raça,
que não difere assim tanto das outras, porque todas as estandardizadas
apresentam problemas específicos ou comuns à maioria delas, mercê da
consanguinidade, da endogamia e de beneficiamentos desastrosos à luz da ciência
e contra o bem-estar, saúde e longevidade destes cães. É possível encontrar
dobermans saudáveis? É evidente que sim e os diversos clubes da raça têm
operado o despiste e a erradicação das doenças que vêm afectando este excelente
guardião alemão. Em Portugal foram poucos os dobermans que treinámos e nenhum deles
nos “encheu o olho”, sendo mais frágeis do que doentes. No Brasil encontrámos e
treinámos excelentes exemplares, nomeadamente em São Paulo (Capital). Desejamos
ter o Dobermann de volta e sabemos que breve retornará a ocupar o seu lugar,
lugar que deixou vago e que nenhum cão conseguiu ocupar. O caminho seguido por
Louis Dobermann, Otto Goeller e Philip Gruening, haveria de ser seguido algumas
décadas mais tarde pelos criadores russos do Terrier Russo Negro, que se
valeram de vários cães para o alcançar, valendo-se também dum terrier prá sua
construção (Airedale). Hoje, pela contribuição dos testes de ADN, os dobermans
vão-se libertando dos problemas que os afectaram, estão mais fortes e saudáveis
e nós queremo-los de volta!
Sem comentários:
Enviar um comentário