Quanto
mais conheço os cães do Leste, mais me lembro de Sócrates e de uma frase que
lhe é atribuída: “Só sei que nada sei”, porque para lá das fronteiras italiana,
austríaca e alemã existem cães que nem imaginava existirem, cuja qualidade,
robustez, rusticidade, porte, aptidão e valentia não param de me surpreender. A
minha surpresa relativa a estes cães, que abraça a maioria dos adestradores
ocidentais, deve-se essencialmente a razões políticas ligadas ao extinto “Bloco
Soviético”, onde o contacto das populações e o intercâmbio com o Ocidente era
impossível, sobrevivendo as diferentes raças caninas pela sua necessidade para
o trabalho (militar, policial e civil), contrariamente às ocidentais que desde
cedo se tornaram coqueluches e animais de companhia. Se em todos os grupos
somáticos caninos encontramos novidade, no dos molossos ela ainda é maior,
atendendo ao seu número e diversidade.
Hoje
vamos falar do Pastor Búlgaro, do Karakachan, nome que parece ter resultado das
palavras turcas “kara” e “kaçan”, que aglutinadas significam “o negro que me
fugiu” (heranças do antigo império otomano), um molosso de montanha destinado à
guarda de rebanhos, capaz de enfrentar sozinho um urso, um cão que o regime
comunista quase levou à extinção. Trata-se de um típico molosso, bem antigo,
que se supõe ser proveniente da Trácia (Balcãs), originalmente criado para
guarda e para a protecção de rebanhos (ovinos e caprinos) contra diferentes
predadores. Do ponto de vista psicológico é um cão único, porque é extremamente
atento, sempre disponível, duma lealdade a toda a prova, deveras valente e
altamente territorial, vivendo em função dos seus donos e cumprindo com esmero
os serviços que lhe são confiados, nomeadamente a guarda dos rebanhos contra
ladrões, o que tem exaltado a sua dignidade ao longo dos tempos e afastado os
larápios dos currais, tanto dentro das suas fronteiras naturais como fora
delas.
Do
ponto de vista físico há a ressaltar o seu andamento natural preferencial: o
trote, que é de longo alcance e elástico, pormenor que o torna
extraordinariamente musculado e resistente, apto para grandes caminhadas e pronto
na transição para o galope, apesar do seu tamanho e de ter pé-de-gato. A raça
apresenta dimorfismo sexual, sendo as fêmeas mais pequenas que os machos.
Segundo o padrão oficial da raça, lavrado somente em 1991 e aprovado no ano de
2005 pelo Ministério da Agricultura Búlgaro, os machos devem medir entre 63 e
75cm de altura, pesar entre 40 e 55kg e as fêmeas entre 60 e 69cm, pesando
entre 30 e 45kg. A raça comporta dois tipos de pelagem: curta e comprida.
Deseja-se que os cães sejam malhados bicolores ou tricolores, preferindo-se os
cães brancos malhados de cor escura. Toda a estrutura deste molosso rectangular,
cujo comprimento do crânio é maior que o do focinho, é forte e musculada,
apresentando a linha dorsal paralela ao solo e costelas em forma de barril.
O
Karakachan, a quem alguns persistem em chamar de “cão de ursos”, é um dos
símbolos da Bulgária, sendo comum oferecer-se um cão destes às visitas mais
proeminentes que visitam aquele país. Assim sucedeu com George W. Bush, quando
se deslocou à Bulgária em 2003 e com Vladimir Putin, actual Presidente da
Federação Russa, que recebeu do 1º Ministro búlgaro, Boyko Borisov, um cachorro
chamado “Buffy” em 2010 (na foto abaixo, agora com sensivelmente 6 anos de idade).
A
tendência actual na Bulgária é criar cachorros Karakachan menos agressivos e a
raça vem sendo usada como melhoradora de outras, tanto europeias como
asiáticas. Verdadeiro orgulho nacional, também na filatelia o Karakachan se
encontra presente.
Criámos
e treinámos vários molossos durante décadas, demos preferência aos nacionais,
encontrando nos últimos um desencanto generalizado pelo trabalho, baixos índices
atléticos e parca curiosidade, factores que uma vez somados dificultaram a
cumplicidade desejada. Honra seja feita ao Fila de S. Miguel, que apesar de ser
o mais pequeno, é sem sombra de dúvidas o maior entre eles e dos melhores que
há mundo. O que terá a ver um Karakachan com um Serra da Estrela ou com um
Rafeiro Alentejano, ainda que morfologicamente sejam idênticos? Somente isso, porque
o cão búlgaro é de longe superior! Estará a qualidade dos cães relacionada com
o saber dos seus criadores? Não será a prestação no trabalho o melhor indicador
dessa qualidade? Sim, o saber dos criadores resulta da observação do trabalho
dos cães! Com que propósito criamos hoje os nossos, quando não temos para eles
provas de trabalho que reafirmem as suas mais-valias? Como não temos resposta,
resta-nos dar os parabéns aos búlgaros pelo esforço em prole da sua cultura e
biodiversidade.
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