Porque será que a esmagadora
maioria dos cães que hoje vêm para o treino não dispensa o suborno? Como não
somos dados a conclusões precipitadas, esta dúvida tem-nos feito matutar,
porque os cães do passado pareciam dispensá-lo e o seu grosso alcançou
notoriedade pela persuasão sem a sobrecarga da coerção. Antigamente, ao fim de
três tentativas, qualquer cão aprendia um novo comando ou figura,
contrariamente aos de hoje que precisam de ser vivamente engodados só para
olharem para os seus donos ou condutores. O que terá contribuído para esta
inversão? O “método do reforço positivo” não foi certamente, porque sem ele
estaríamos hoje irremediavelmente tramados e os cães mandar-nos-iam bugiar! A
resposta não poderá ser dada exclusivamente pela cinotecnia mas em conjunto com
a canicultura que a sustenta, sendo esta influenciada bem para além da simples
arte de ensinar cães.
Ao tratarmos deste
assunto, que aos mais jovens não causa estranheza, lembramo-nos dos morangos de
outrora e dos actuais, os primeiros significativamente mais pequenos e mais
doces que os de agora, que se vendiam à beira das estradas em pequenos cestos
de verga, adornados com folhas de fetos. Quem não os provou, não sente a sua falta
e acha os actuais o máximo, como se os morangos sempre fossem assim: grandes e
sensaborões. Ora, com os cães passa-se exactamente o mesmo, porque a sua
qualidade laboral decresceu nos últimos cinquenta anos, mercê de vários
factores que seguidamente discriminaremos, decréscimo que os criadores e
adestradores contemporâneos não sentem por desconhecerem e não haverem
testemunhado a excelência dos cães do passado. Este deficit laboral na
generalidade dos cães tem sido fatal para algumas raças em particular, nomeadamente
para aquelas historicamente produzidas e destinadas ao trabalho, que
gradualmente têm menor procura, acabam desprezadas e vêem o seu lugar ocupado
por outras, já que doutro modo jamais o perderiam. Ao dizermos isto não estamos
a ser saudosistas ou a negar a evolução e o progresso visíveis na cinotecnia,
somente a constatar um facto: a menor qualidade laboral dos cães actuais.
E como importa ir ao âmago
da questão, somos obrigados a avaliar o trabalho dos criadores actuais, hoje
maioritariamente civis e amadores, mais cardíacos que conhecedores,
indubitavelmente mais chegados à estética que ao trabalho, que têm a
canicultura como um hobby e como economia paralela, gente perita em discutir
genealogias e menos propensa a seleccionar os seus cães pelas suas aptidões,
demasiado preocupada com rigores estéticos, pormenores morfológicos e pouco
dada à observação das mais-valias físicas, psicológicas, cognitivas e sociais
dos seus cães, cujo interesse primordial é vender ninhadas, muito embora esse
objectivo seja hoje “chão que já deu uvas”, isto se alguma vez deu, porque a
canicultura dificilmente se auto-sustentará.
Este enxerto entusiasta e amadorista
que vive para o galarim, despreza a observação e o estudo, é avesso ao
conhecimento erudito e carente de experiência, tem vindo a perpetuar um
conjunto de insuficiências nas raças que produz, que há muito deveriam ter sido
banidas e que a breve trecho lhes serão fatais. Enquanto horda passional, estes
criadores dificilmente virão a trabalhar algum cão, mesmo dos seus, a
experimentar a aptidão para o que foram ou deveriam ter sido criados. Não
obstante, alguns deles evidenciarão orgulhosos a presença de campeões de beleza
na genealogia dos seus rebentos. Diga-se a seu favor que dificilmente venderão
gato por lebre, um híbrido ou mestiço por um cão puro, muito embora a genuinidade
do seu produto seja por norma de pouco ou nenhum préstimo, o que nos traz imediatamente
à memória Konrad Lorenz, quando dizia que “por vezes, quando menos pedigree
melhor”.
Mas se criadores com estas
características nada acrescentam à qualidade laboral das raças, antes a
comprometem cada vez mais, ao extremo de condenarem a sua adaptação, saúde,
bem-estar e longevidade, outros há, com menos pruridos que os primeiros, ditos criadores
de cães de trabalho e que juntam à canicultura a cinotecnia, estratégia que
tende a viabilizar as duas actividades, que adulteram ou transformam as raças à
revelia do que são e dos propósitos para que foram criadas, quer
aproveitando-se de fenótipos particulares quer dando-lhes um cheirinho de outra
coisa qualquer, até porque o mundo é dos espertos e importa não perder o
comboio, justificando a afronta pela procura da qualidade laboral original,
quando na verdade são guiados por outros parâmetros e têm como modelos
indivíduos de outras raças, mormente as actualmente mais procuradas. Assim se
compreende o aparecimento de cães cuja morfologia, comportamento e mecânica são
alheios à sua raça, o que para além da mentira é caricato, já que não são uma
coisa nem outra, o que tem merecido, diga-se justamente, dos criadores de linha
estética a seguinte sentença: “para o trabalho qualquer trampa serve!”.
E como se isto não
bastasse, dentro dos cães destinados e criados para o trabalho, também a
endogamia e a consanguinidade se fazem presentes, não pela vã glória de um
prémio ou de um troféu, mas por razões económicas que impedem a aquisição de
outros e melhores reprodutores, inalcançáveis pelo baixo preço a que os
cachorros domésticos se encontram votados, limitação mais do que suficiente
para o menor desempenho dos cães, não sendo de estranhar que todos eles
descendam da mesma e única linha de criação, normalmente original de um país
para além do Espaço Schengen, onde os cães são mais baratos. Sim, as
dificuldades de aprendizagem visíveis nos actuais cães de trabalho são fruto de
uma criação desastrosa, de toda uma leva de criadores aventureiros que
desconhece os rudimentos da prestação de serviço que abraçou, que incapaz de
identificar os principais impulsos herdados nos seus cães, ao confundi-los com
os instintos, compromete assim a sua cumplicidade e parceria, remetendo-os para
um condicionamento que apela às suas necessidades mais básicas.
A extraordinária carga
instintiva visível nos cães actuais, apesar de dispensar os seus treinadores de
maior preparo, tem impedido a sua melhor prestação, porque tendencialmente agem
a modo próprio e resistem ao travamento, sendo menos curiosos e mais cativos
das suas inclinações naturais, pelo que grande número deles não escapará a
castração, medida tornada corriqueira face è lei dos cães perigosos e às
dificuldades encontradas pelos donos. Por outro lado, os actuais proprietários
caninos são pouco conhecedores dos pergaminhos das diversas raças laborais,
logo menos exigentes e fáceis de contentar, satisfazendo-se muitos deles com o simples
facto de possuírem um cão com pedigree. Hoje, quem comprar um cachorro de
utilidade, arrisca-se a um sem número de trabalhos advindos da extraordinária
potenciação dos impulsos ao movimento e à luta, causas primeiras do stresse
canino que assola os cães citadinos e os sujeitos a mais horas de separação dos
seus donos, chegando alguns a danificar
o património familiar e a automutilar-se, contrariamente aos do passado que
eram mais equilibrados, curiosos, melhor adaptados, menos reivindicativos, mais
gratos e apostados em agradar.
O
impulso ao conhecimento canino não pode ser desleixado ou subvertido como tem
vindo a ser até aqui, porque é ele que estabelece a diferença
qualitativa entre os cães, facilitando a transição natural do tratamento para a
cumplicidade e do treino para o desempenho esperado, garantido em simultâneo o
aprimoramento das habilidades fornecidas pelo condicionamento e a assimilação
de novos conteúdos de ensino. O meio mais fiável para se aquilatar do maior ou
menor impulso ao conhecimento canino é o trabalho, uma vez que nele se desnuda a
maior ou menor capacidade de aprendizagem dos indivíduos. Não havendo esta
preocupação, todos os cães terão um índice de progresso muito baixo e as raças com
uma curva de crescimento menor, logo precoces, virão a ter prestações
lamentáveis (muito aquém do esperado).
Perguntar-nos-ão: onde
foram os cães do passado buscar a sua extraordinária capacidade de aprendizagem?
Em primeiro lugar importa explicar o que entendemos por cães do passado.
Entendemos como os cães do passado os anteriores à década de 70, cujas linhas
têm sido preteridas e maioritariamente dispensadas das novas selecções, onde
foram e são visíveis as variedades recessivas presentes nas diferentes raças,
também elas responsáveis pelas suas mais-valias cognitivas advindas da
biodiversidade que as aproxima da selecção natural. A extraordinária capacidade
de aprendizagem de que são portadores resultou de critérios de selecção que
tiveram como base o trabalho, nomeadamente na prestação de algumas na I e na II
Guerras Mundiais, também de criadores profissionais que dedicaram toda a sua
vida à procura da excelência laboral, usando para isso os reprodutores mais
capacitados. Acerca desta temática e como comprovação do que acabámos de dizer,
vale a pena relembrar o que uma vez disse Lee Duncan sobre o famoso “Rin-Tin-Tin”,
que questionado acerca do treino do cão, adiantou pouco ou nada lhe ter
ensinado. Se continuarmos como até aqui a desleixar o impulso ao conhecimento
canino, a dispensar a curiosidade que induz ao querer compreender, não nos
restará outra opção: um, dois, três toma lá outra vez!