sexta-feira, 12 de agosto de 2016

PORQUE MORDEM OS CÃES?

Talvez não haja no mundo tantos “entendidos” em cães por m2 como em Portugal (talvez por isso os etólogos não tenham aqui trabalho), onde seu número não pára de crescer e tende a superar o dos treinadores de bancada, apesar da nossa população ser muito mais citadina do que rural, os pastores se encontrarem em vias de extinção e os caçadores a caminho disso. Esta habilitação inesperada, que tende a julgar o todo pela parte, tem divulgado e levado à aceitação geral todo um conjunto de ideias falsas acerca do comportamento dos cães, destacando-se as seguintes: que todo o cão que tem medo foi objecto de maus tratos e que todo aquele que morde fá-lo por instigação dos seus donos, como se os nossos fiéis amigos resultassem de geração espontânea, caíssem aqui de pára-quedas ou fossem tanto ou mais moldáveis que o barro nas mãos dum oleiro. Com tanta ignorância chocalhada e à solta, há dias em que não se pode entrar num café.
É evidente que existem cães que nascem medrosos sem terem sido objecto de maus tratos, tanto os provenientes da selecção operada nas ruas, mais próxima da natural, como os resultantes da manipulação humana, sendo o fenómeno mais frequente nos últimos porque doutra forma os primeiros dificilmente sobreviveriam, conhecida que é a sua dependência. Do mesmo modo também há cães que nascem agressivos sem a contribuição dos donos, que a acontecer, acontece maioritariamente por ignorância e não por instigação directa. Afortunadamente os cães são cada vez mais mansos, o que nos dá algum descanso perante os tontos que persistem em adquiri-los, sabichões tendentes à asneira que invariavelmente acabam surpreendidos do alto das suas “cátedras”.
Os cães mordem porque continuam predadores e são uma subespécie doutro: o Lobo, do qual conservam ainda alguns instintos, também porque são animais sociais, competitivos e territoriais que não possuem outra arma para além do uso da sua mandíbula, tornando-se assilvestrados na ausência de regras, o que aponta como primeira causa uma razão atávica. Todos os cães podem morder e todos podem não fazê-lo, ficando isso a dever-se à maior ou menor potenciação dos impulsos herdados que sustentam a sua agressividade, particularmente os relativos à defesa, à luta e ao poder, que sendo mais típicos dos machos, são também responsáveis pelo escalonamento social canino, o que evidencia em simultâneo uma razão genética. Como o ataque à dentada é típico dos cães dominantes e não são poucos os submissos que se comportam assim, persiste nestes casos uma razão ambiental decorrente duma investidura assente sobre a experiência feliz (incentivo, certeza da vitória, captura, treino e recompensa).
Qualquer cão submisso, cobarde ou inibido, por menor que seja e escudado no dono, pode morder, como também poderá morder por ciúme ou por se ver preterido. Os cães que habitualmente permanecem no colo dos donos, por mais frágeis e indefesos que nos pareçam, não sendo contrariados, sem grande dificuldade morderão a quem deles se acercar, podendo fazê-lo deliberadamente ou por medo. Também os muito mimados e isentos de reparo tendem a assumir um comportamento agressivo para resistirem à liderança e imporem as suas próprias regras.
Felizmente, a ocorrência de ataques ofensivos caninos individuais sobre pessoas sem a contribuição directa ou indirecta dos seus donos é raríssima e carece de treino aturado, não diferindo nisto do seu ancestral silvestre. A maioria dos ataques caninos perpetrados sobre pessoas sem treino prévio são de natureza defensiva (social) e acontecem pela defesa do alimento, do território, do agregado familiar e dos bens comuns a donos e cães, sendo por norma instintivos e pouco dolosos. A transição dos ataques defensivos individuais para ofensivos é na maior parte dos casos obra da ingerência humana, que actua por aproveitamento. Contudo, a repetição de vários ataques defensivos bem-sucedidos pode transformá-los em ofensivos pela experiência havida que funcionou como treino.
Os ataques caninos em matilha podem dispensar a indução humana pelo peso do grupo e respectivo escalonamento social, alterando a sua natureza de defensiva para ofensiva pela constituição de  uma matilha de caça, particular usado e transformado em estratégia pelos adestradores que se dedicam ao treino do cão guarda, que tiram partido do exemplo de cães nisso habilitados para capacitarem os iniciados, relutantes e inexperientes. Assim como existem matilhas para caça também existem matilhas para guarda, por norma identificadas como “matilhas funcionais” para as diferenciar das animais que não obedeceram a qualquer tipo de treino e que são por norma instintivas. Nenhuma das matilhas é de fácil defesa, qualquer uma delas pode ser letal. Todavia, sempre se terá mais hipóteses diante duma matilha animal que duma funcional, porque a última foi previamente preparada para o efeito e cada um dos seus membros “sabe” como operar.
Sinteticamente podemos dizer que os cães mordem por razões genético-ambientais e que ambas estão relacionadas com o seu particular social, que uma vez procuradas e potenciadas têm tornado os cães mais perigosos que os lobos, que raramente atacam ou matam pessoas (nunca se provou que um lobo tenha morto um homem, ao invés, existem algumas fábulas assim como relatos verídicos em que os lobos serviram de pais a crianças). O manipulação de determinadas raças caninas tem produzido intencionalmente cães com maior força de mandíbula, mais massa muscular, superior sentimento territorial, notório instinto de presa, maior tenacidade na caça e portadores de fortes impulsos à luta e ao poder, animais potencialmente perigosos na possibilidade das suas arremetidas, que cada vez são menos frequentes pelo peso e carácter repressivo das leis em vigor.
As pessoas que têm medo de cães, porque podem ser interpretadas por eles como presas ao seu alcance, constituem-se natural e involuntariamente em suas vítimas. Os ataques à dentada perpetrados pelos cães sem a indução ou instigação dos seus mestres são maioritariamente de carácter defensivo e os ofensivos são na sua maioria fruto do engenho humano. Um cão biológica e inequivocamente ofensivo por si mesmo é um animal de difícil controlo, imprevisível e de pouco préstimo, dado à revolta e propenso a grande número de disparates, que exigirá um dono experiente e audaz para o subordinar.
A reeducação dos cães perigosos, processo de descodificação mais ou menos moroso e sujeito a reveses, é facilitada de início pela subordinação que obriga à troca dos seus líderes habituais e grupo, à novidade constante de territórios, à perca de regalias (despromoção social), à alteração de rotinas, ao desprezo pelos procedimentos anteriormente instalados e pela sua consequente substituição – primeiro o cão é desaprovado para depois ser aprovado. Não entre em quintais com cães que desconhece, não faça festas a cães desconhecidos, não force a sua aceitação, antes de afagar um cão solicite a autorização do dono, não corra na frente ou ameace cães que nunca viu, não fixe o seu olhar neles, troque disfarçadamente de passeio se sente medo ao cruzar-se com eles e verá que dificilmente será mordido. Como diz o povo, “os cães mordem porque têm dentes” mas os cinófobos podem ficar descansados: a esmagadora maioria dos cães actuais só usa os dentes para comer e se os usa para outra coisa é porque lhes fizeram crer nalguma história, dando-lhe um final inesperado quando verdadeiramente confrontados e sujeitos a um dolo maior ao que pretendem causar. Não se assuste se um cão lhe ladrar mas tome cuidado se ele lhe rosnar.

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