Talvez não haja no mundo
tantos “entendidos” em cães por m2 como em Portugal (talvez por isso os etólogos
não tenham aqui trabalho), onde seu número não pára de crescer e tende a superar
o dos treinadores de bancada, apesar da nossa população ser muito mais citadina
do que rural, os pastores se encontrarem em vias de extinção e os caçadores a
caminho disso. Esta habilitação inesperada, que tende a julgar o todo pela
parte, tem divulgado e levado à aceitação geral todo um conjunto de ideias falsas
acerca do comportamento dos cães, destacando-se as seguintes: que todo o cão
que tem medo foi objecto de maus tratos e que todo aquele que morde fá-lo por
instigação dos seus donos, como se os nossos fiéis amigos resultassem de
geração espontânea, caíssem aqui de pára-quedas ou fossem tanto ou mais moldáveis
que o barro nas mãos dum oleiro. Com tanta ignorância chocalhada e à solta, há
dias em que não se pode entrar num café.
É evidente que existem cães
que nascem medrosos sem terem sido objecto de maus tratos, tanto os
provenientes da selecção operada nas ruas, mais próxima da natural, como os
resultantes da manipulação humana, sendo o fenómeno mais frequente nos últimos
porque doutra forma os primeiros dificilmente sobreviveriam, conhecida que é a
sua dependência. Do mesmo modo também há cães que nascem agressivos sem a contribuição
dos donos, que a acontecer, acontece maioritariamente por ignorância e não por
instigação directa. Afortunadamente os cães são cada vez mais mansos, o que nos
dá algum descanso perante os tontos que persistem em adquiri-los, sabichões
tendentes à asneira que invariavelmente acabam surpreendidos do alto das suas “cátedras”.
Os cães mordem porque continuam
predadores e são uma subespécie doutro: o Lobo, do qual conservam ainda alguns
instintos, também porque são animais sociais, competitivos e territoriais que
não possuem outra arma para além do uso da sua mandíbula, tornando-se
assilvestrados na ausência de regras, o que aponta como primeira causa uma razão atávica. Todos os cães podem
morder e todos podem não fazê-lo, ficando isso a dever-se à maior ou menor
potenciação dos impulsos herdados que sustentam a sua agressividade,
particularmente os relativos à defesa, à luta e ao poder, que sendo mais
típicos dos machos, são também responsáveis pelo escalonamento social canino, o
que evidencia em simultâneo uma razão
genética. Como o ataque à dentada é típico dos cães dominantes e não são
poucos os submissos que se comportam assim, persiste nestes casos uma razão ambiental decorrente duma
investidura assente sobre a experiência feliz (incentivo, certeza da vitória,
captura, treino e recompensa).
Qualquer cão submisso,
cobarde ou inibido, por menor que seja e escudado no dono, pode morder, como
também poderá morder por ciúme ou por se ver preterido. Os cães que
habitualmente permanecem no colo dos donos, por mais frágeis e indefesos que
nos pareçam, não sendo contrariados, sem grande dificuldade morderão a quem
deles se acercar, podendo fazê-lo deliberadamente ou por medo. Também os muito
mimados e isentos de reparo tendem a assumir um comportamento agressivo para resistirem
à liderança e imporem as suas próprias regras.
Felizmente, a ocorrência
de ataques ofensivos caninos individuais sobre pessoas sem a contribuição
directa ou indirecta dos seus donos é raríssima e carece de treino aturado, não
diferindo nisto do seu ancestral silvestre. A maioria dos ataques caninos
perpetrados sobre pessoas sem treino prévio são de natureza defensiva (social)
e acontecem pela defesa do alimento, do território, do agregado familiar e dos
bens comuns a donos e cães, sendo por norma instintivos e pouco dolosos. A
transição dos ataques defensivos individuais para ofensivos é na maior parte
dos casos obra da ingerência humana, que actua por aproveitamento. Contudo, a repetição
de vários ataques defensivos bem-sucedidos pode transformá-los em ofensivos
pela experiência havida que funcionou como treino.
Os ataques caninos em matilha
podem dispensar a indução humana pelo peso do grupo e respectivo escalonamento
social, alterando a sua natureza de defensiva para ofensiva pela constituição de
uma matilha de caça, particular usado e
transformado em estratégia pelos adestradores que se dedicam ao treino do cão
guarda, que tiram partido do exemplo de cães nisso habilitados para capacitarem
os iniciados, relutantes e inexperientes. Assim como existem matilhas para caça
também existem matilhas para guarda, por norma identificadas como “matilhas funcionais”
para as diferenciar das animais que não obedeceram a qualquer tipo de treino e
que são por norma instintivas. Nenhuma das matilhas é de fácil defesa, qualquer
uma delas pode ser letal. Todavia, sempre se terá mais hipóteses diante duma
matilha animal que duma funcional, porque a última foi previamente preparada
para o efeito e cada um dos seus membros “sabe” como operar.
Sinteticamente podemos
dizer que os cães mordem por razões genético-ambientais e que ambas estão
relacionadas com o seu particular social, que uma vez procuradas e potenciadas
têm tornado os cães mais perigosos que os lobos, que raramente atacam ou matam
pessoas (nunca se provou que um lobo tenha morto um homem, ao invés, existem
algumas fábulas assim como relatos verídicos em que os lobos serviram de pais a
crianças). O manipulação de determinadas raças caninas tem produzido
intencionalmente cães com maior força de mandíbula, mais massa muscular, superior
sentimento territorial, notório instinto de presa, maior tenacidade na caça e portadores de fortes impulsos
à luta e ao poder, animais potencialmente perigosos na possibilidade das suas arremetidas,
que cada vez são menos frequentes pelo peso e carácter repressivo das leis em
vigor.
As pessoas que têm medo de
cães, porque podem ser interpretadas por eles como presas ao seu alcance,
constituem-se natural e involuntariamente em suas vítimas. Os ataques à dentada
perpetrados pelos cães sem a indução ou instigação dos seus mestres são maioritariamente
de carácter defensivo e os ofensivos são na sua maioria fruto do engenho
humano. Um cão biológica e inequivocamente ofensivo por si mesmo é um animal de
difícil controlo, imprevisível e de pouco préstimo, dado à revolta e propenso a
grande número de disparates, que exigirá um dono experiente e audaz para o
subordinar.
A reeducação dos cães
perigosos, processo de descodificação mais ou menos moroso e sujeito a reveses,
é facilitada de início pela subordinação que obriga à troca dos seus líderes
habituais e grupo, à novidade constante de territórios, à perca de regalias
(despromoção social), à alteração de rotinas, ao desprezo pelos procedimentos
anteriormente instalados e pela sua consequente substituição – primeiro o cão é
desaprovado para depois ser aprovado. Não entre em quintais com cães que
desconhece, não faça festas a cães desconhecidos, não force a sua aceitação, antes
de afagar um cão solicite a autorização do dono, não corra na frente ou ameace
cães que nunca viu, não fixe o seu olhar neles, troque disfarçadamente de
passeio se sente medo ao cruzar-se com eles e verá que dificilmente será
mordido. Como diz o povo, “os cães mordem porque têm dentes” mas os cinófobos
podem ficar descansados: a esmagadora maioria dos cães actuais só usa os dentes
para comer e se os usa para outra coisa é porque lhes fizeram crer nalguma
história, dando-lhe um final inesperado quando verdadeiramente confrontados e
sujeitos a um dolo maior ao que pretendem causar. Não se assuste se um cão lhe
ladrar mas tome cuidado se ele lhe rosnar.
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