O que vejo e oiço leva-me
a meditar e como a memória ainda não me atraiçoa, sempre tenho algo a
acrescentar àquilo em que reparo. Indubitavelmente somos umas eternas crianças
e por vezes gostamos de ser tratados assim, particularmente quando erramos e
não queremos ser molestados, o que de certa forma nos mantém vivos e combate o
nosso envelhecimento, porque vivemos de afectos e o uso puro e simples da razão
não nos traz felicidade (se Wittgenstein cá voltasse, dar-me-ia hoje razão).
Por isso precisamos do sonho e de acreditar noutra realidade para além daquela
que a nossa vista alcança, procuramos um mundo mágico onde as nossas limitações
cessem, uma transcendência que nos embriague, de um conjunto de ilusões que nos
equilibre e dê sentido ao nosso duro penar, daí o nosso crer em milagres e o
fascínio que a magia exerce sobre nós perante a finidade que nos atormenta e
desagrada. E neste remar contra a maré poucos nos acompanham como os cães,
animais que vivem na perspectiva do dia de ontem, que nos apaziguam e que à
partida não têm preocupações metafísicas (não estou com isto a dar razão aos
radicais muçulmanos, que vêm a convivência com os cães como uma mácula para os
crentes ou uma apostasia, muito embora consiga compreendê-los quando certos
donos endeusam os seus cães).
Quando me lembro do
adjectivo “encantador”, lembro-me logo do estereotipado “encantador de
serpentes”, dos faquires, dos ilusionistas e inevitavelmente de Ehrich Weisz
(Harry Houdini), que atraía multidões para as suas encenações, todos
transformados em artistas de circo onde por direito próprio pertencem para
gáudio das suas audiências. Se por um lado estamos a banir os animais do circo,
a técnica dos seus amestradores estende-se agora à cinotecnia e os cães
substituem as feras de outrora – o circo continua. Esta adopção transformou os
clássicos amestradores em “encantadores de cães”, indivíduos presentemente
exaltados pelo socorro de velhos truques, que encantam as suas plateias e
exploram os animais pelo suborno, não hesitando alguns, por via da dúvida e
importância do espectáculo, a sujeitarem-nos à alteração ou atraso na
distribuição dos pensos, o que os torna em encantadores de gente e não de cães,
segundo a compreensão que temos do infinitivo latino “incantare” por detrás do
verbo “encantar” que é transitivamente directo e ao mesmo tempo reflexivo. E
quando assim não fazem, à imitação dos domadores de focas, substituem o peixe
por outra iguaria (engodo).
Seguindo a máxima “THE SOHW MUST GO ONE”,
surgem por toda a parte encantadores de cães, amestradores que se transformaram
em “entertainers” e vedetas da televisão, não fora a paixão pelo circo milenar,
artistas confessos que rotineiramente concorrem a programas do tipo “BRITAIN’S GOT TALENT”.
Demorou algum tempo, tudo acontece aqui com algum atraso, mas temos finalmente
um “encantador de cães”, tornado público pela CMTV, que aos Sábados pelas 10H30
apresenta o seu espectáculo. O conteúdo do programa nada tem de erudito e o seu
propósito aponta directamente para o aumento das audiências. O “Guest Star”
luso não tem nem o carisma nem o engenho do índio mexicano que encantou os
norte-americanos, sendo um desenrasque e uma imitação barata dos programas do
César Millan – um desencanto e um desalento já esperado.
Não creio que existam
encantadores de animais e se existem sê-lo-ão exclusivamente de pessoas, muito
embora os cães se prestem para muita trapalhada, porque são facilmente iludidos
e induzidos a um sem número de investiduras pela sua humano-dependência. E
porque importa desambiguar, esclarecer e tratar o assunto com seriedade, vamos
seguidamente explicar os meandros que levam à exaltação dos cães genuinamente
adestrados, obra tantas vezes omissa dos seus mestres que não procuram riqueza
nem galarim, que entendem o seu serviço como missão e não como pretexto para a
notoriedade, porque sabem que são imperfeitos e só chegam aonde podem ir – têm
conhecimento das suas limitações, incapacidade que transformada em qualidade
levá-los-á à insatisfação e fá-los-á evoluir.
Contrariamente ao “EASY WAY”
que tanto se apregoa, nem todas as pessoas nasceram para adestradores, porque
esta actividade obriga ao desapego próprio e a descer ao nível dos cães, para
que melhor sejam compreendidos e posteriormente utilizados, despromoção que a
vaidade não vê com bons olhos e que rarissimamente traz riqueza para além do
conhecimento. A transição das respostas animais para as artificiais resulta da
transfiguração dos mestres que opera idêntica transformação nos animais pela
aquisição de uma linguagem comum, algo entendido em parte como “empatia” mas
que vai para além dela, porque há muito nos distanciámos das restantes
criaturas mercê do especismo, forçados pelo viver urbano e nem todos somos
capazes de compreendê-las no seu particular. Não sei se haverá nisto alguma
predestinação ou predisposição genética, porque os melhores adestradores que
conheci eram díspares entre si e só a humildade era-lhes comum, ainda que por
vezes fossem intratáveis entre iguais quando absortos no seu ofício. Amanhã
tudo se saberá, se fruto de algum talento, duma fragilidade ou doutra coisa
qualquer.
Esta estratégia de baixar
ao nível do cão para depois o liderar, só possível pela cumplicidade, requer coabitação,
experiência, experimento, paciência, conhecimento (da carga genética do
indivíduo, da raça e do seu histórico ambiental), observação e estudo, para que
se possa descobrir em cada um o seu particular psicológico, mais e menos valias,
temores e fobias (pontos de ruptura), nível cognitivo, aversões e propensões,
porque deverá ser o cão a indicar-nos qual o método de ensino a seguir e não
sujeitá-lo a um que mais agrave as suas impropriedades e subaproveite o seu
potencial, já que importa libertá-lo dos seus entraves e potenciar o melhor que
tem para nos dar, dotá-lo de investiduras que por si mesmo jamais alcançaria,
considerando em primeiro lugar a sua salvaguarda. A opção por um único método
de ensino para todos cães, por desconsiderar o particular dos indivíduos, acabará
por beneficiar uns e prejudicar outros, tremendo erro pedagógico muito em voga
que tem condenado à mediocridade muitos animais e declarado inaptos muitos mais
(exige-se aos seus mestres tacto e sensibilidade).
Nada há de mágico na
cinotecnia, a menos que classifiquemos o amor pelos animais de magia, o
conhecimento erudito e a experiência de ilusão e as diferentes técnicas de
inacessíveis. Um dia destes e a propósito de treinadores de futebol, alguém me
reavivou as palavras do Prof. Manuel Sérgio: “PODE
SABER-SE MUITO DE FUTEBOL MAS, QUEM SÓ SABE DE FUTEBOL, NEM DE FUTEBOL SABE!”,
verdade que se estende também à cinotecnia, considerando as ciências que a
sustentam e que abrangem homens e cães. O que transforma os maus adestradores
em encantadores é a ignorância popular, o desprezo pelo conhecimento e a
inércia que sustenta a mediocridade, que entende como sobrenatural aquilo que
não ousa despender em esforço.
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