Compreender quem somos e a
nossa cultura não é fácil, especialmente quando nos encontramos no País,
seguimos os nossos hábitos milenares, pouco ou nada estranhamos e não
conseguimos isolar-nos, pelo que vale a pena sair daqui para fora, avaliar
Portugal dalém das suas fronteiras e os portugueses na terra dos outros, quando
inseridos nessas sociedades nos seus mais diversos patamares. Os maus tratos e
o abandono dos animais a que sempre assistimos nunca se distribuíram
uniformemente pelo território nacional e por todas as classes sociais, acontecendo
com maior frequência nas zonas rurais, entre gente que ainda não cortou os laços
com elas e que resiste a ser informada, apesar de viver hoje nas grandes urbes,
ser licenciada e não dispensar o computador no seu quotidiano.
Herdámos da nossa mal escondida
cultura semita, da qual ainda hoje não gostamos de falar, notadamente
sincrética, um especismo que teimamos em não largar e que pouco considera o
bem-estar e direitos dos animais, particularmente daqueles que não são
rentáveis e que nalguns casos são até desprezíveis, como é o caso dos cães, ainda
hoje associados a trabalhos desnecessários e à aspereza de vida, que terão dias
melhores de acordo com a sua prestação caçadora e pastoril ou seja, quando se
tornam imprescindíveis. Esta concepção cultural levou à formação de um slogan
publicitário na década de 60 do século passado que dizia: “Um gato é um gato,
um cão é um cão. Sumol é aquilo que os outros não são”, colocando o
refrigerante publicitado acima desses animais domésticos. Só debaixo desta
herança cultural e miséria histórica podemos compreender que os cães “devam”
comer ossos e os gatos espinhas de peixe, que todo o cão e gato que não caçam são
para pôr a andar (abandonar).
Ninguém duvida que quanto
mais miserável é uma sociedade, pior trata os animais domésticos, como ninguém
duvida que as sociedades mais evoluídas tratam melhor os animais ao seu redor. Portugal
nunca foi um País rico e por razões sobejamente conhecidas sempre se atrasou a
apanhar o comboio do progresso e, ainda hoje assim continua. Quem desejar sair
de carro por essa Europa fora com a família e o seu cão, depressa se apercebe
da sua chegada a França, porque dali para cima os cães são tratados de
diferente maneira e objecto de maiores cuidados, podendo inclusive pernoitar
com os seus donos nos hotéis, coisa que em Portugal e Espanha é quase
impossível (não há como experimentar).
A chegada da Internet veio
revolucionar a nossa relação com os animais domésticos, despertar-nos para os
seus direitos e mais-valias, sensibilização que levou também à eleição para o
nosso Parlamento de um deputado do PAN (Pessoas-Animais-Natureza) e à aplicação
de sanções relativas aos maus tratos e abandono dos animais, o que nos leva a
afirmar ser a revolução operada pelo conhecimento superior à conquistada pelas
armas e que só a ignorância consegue pactuar com o mal-estar animal. Mesmo
assim, segundo últimas notícias vindas a público, só na primeira metade deste
ano foram instaurados pela GNR e PSP 282 processos-crime por abandono de
animais, o que apesar da vergonha não de ser uma boa notícia. A GNR fez ainda
saber que nos últimos 14 meses registou 7.734 contra-ordenações e 709 crimes
relativos aos maus tratos e abandono de animais, o que dá uma média de 44
crimes mensais.
Apesar da sensibilização
efectuada e da existência de sanções, quais as razões por detrás do aumento de
cães abandonados? O momento de austeridade em que vivemos é responsável pelo maior
número de pessoas no limiar da pobreza, pelos parcos rendimentos familiares,
pela desagregação das famílias e pelo desemprego, condições que em conjunto
contribuem para o fenómeno mas que não são únicas. Mais que os factores
económicos, sobressai uma trágica opção emotiva que não considera o dia de
amanhã, aquela que assiste aos incautos e que os leva a adquirir cães sem ter
condições para tal, gente carenciada de esclarecimento e que acabará por votar
os animais a uma sorte bem pior que a sua, muito embora saibamos da
falibilidade da disciplina perante a afeição. Todavia, cabe a cada um de nós
esclarecer e alertar as pessoas para os encargos e cuidados que a aquisição de
um cão exige, levá-las a ponderar se têm ou não condições para isso, trabalho
que é próprio de quem respeita pessoas e animais, combatendo deste modo a miséria histórica que se transformou em herança cultural, certos do
agradecimento canino.
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