domingo, 21 de agosto de 2016

ABANDONO DE ANIMAIS: HERANÇA CULTURAL E MISÉRIA HISTÓRICA

Compreender quem somos e a nossa cultura não é fácil, especialmente quando nos encontramos no País, seguimos os nossos hábitos milenares, pouco ou nada estranhamos e não conseguimos isolar-nos, pelo que vale a pena sair daqui para fora, avaliar Portugal dalém das suas fronteiras e os portugueses na terra dos outros, quando inseridos nessas sociedades nos seus mais diversos patamares. Os maus tratos e o abandono dos animais a que sempre assistimos nunca se distribuíram uniformemente pelo território nacional e por todas as classes sociais, acontecendo com maior frequência nas zonas rurais, entre gente que ainda não cortou os laços com elas e que resiste a ser informada, apesar de viver hoje nas grandes urbes, ser licenciada e não dispensar o computador no seu quotidiano.
Herdámos da nossa mal escondida cultura semita, da qual ainda hoje não gostamos de falar, notadamente sincrética, um especismo que teimamos em não largar e que pouco considera o bem-estar e direitos dos animais, particularmente daqueles que não são rentáveis e que nalguns casos são até desprezíveis, como é o caso dos cães, ainda hoje associados a trabalhos desnecessários e à aspereza de vida, que terão dias melhores de acordo com a sua prestação caçadora e pastoril ou seja, quando se tornam imprescindíveis. Esta concepção cultural levou à formação de um slogan publicitário na década de 60 do século passado que dizia: “Um gato é um gato, um cão é um cão. Sumol é aquilo que os outros não são”, colocando o refrigerante publicitado acima desses animais domésticos. Só debaixo desta herança cultural e miséria histórica podemos compreender que os cães “devam” comer ossos e os gatos espinhas de peixe, que todo o cão e gato que não caçam são para pôr a andar (abandonar).
Ninguém duvida que quanto mais miserável é uma sociedade, pior trata os animais domésticos, como ninguém duvida que as sociedades mais evoluídas tratam melhor os animais ao seu redor. Portugal nunca foi um País rico e por razões sobejamente conhecidas sempre se atrasou a apanhar o comboio do progresso e, ainda hoje assim continua. Quem desejar sair de carro por essa Europa fora com a família e o seu cão, depressa se apercebe da sua chegada a França, porque dali para cima os cães são tratados de diferente maneira e objecto de maiores cuidados, podendo inclusive pernoitar com os seus donos nos hotéis, coisa que em Portugal e Espanha é quase impossível (não há como experimentar).
A chegada da Internet veio revolucionar a nossa relação com os animais domésticos, despertar-nos para os seus direitos e mais-valias, sensibilização que levou também à eleição para o nosso Parlamento de um deputado do PAN (Pessoas-Animais-Natureza) e à aplicação de sanções relativas aos maus tratos e abandono dos animais, o que nos leva a afirmar ser a revolução operada pelo conhecimento superior à conquistada pelas armas e que só a ignorância consegue pactuar com o mal-estar animal. Mesmo assim, segundo últimas notícias vindas a público, só na primeira metade deste ano foram instaurados pela GNR e PSP 282 processos-crime por abandono de animais, o que apesar da vergonha não de ser uma boa notícia. A GNR fez ainda saber que nos últimos 14 meses registou 7.734 contra-ordenações e 709 crimes relativos aos maus tratos e abandono de animais, o que dá uma média de 44 crimes mensais.
Apesar da sensibilização efectuada e da existência de sanções, quais as razões por detrás do aumento de cães abandonados? O momento de austeridade em que vivemos é responsável pelo maior número de pessoas no limiar da pobreza, pelos parcos rendimentos familiares, pela desagregação das famílias e pelo desemprego, condições que em conjunto contribuem para o fenómeno mas que não são únicas. Mais que os factores económicos, sobressai uma trágica opção emotiva que não considera o dia de amanhã, aquela que assiste aos incautos e que os leva a adquirir cães sem ter condições para tal, gente carenciada de esclarecimento e que acabará por votar os animais a uma sorte bem pior que a sua, muito embora saibamos da falibilidade da disciplina perante a afeição. Todavia, cabe a cada um de nós esclarecer e alertar as pessoas para os encargos e cuidados que a aquisição de um cão exige, levá-las a ponderar se têm ou não condições para isso, trabalho que é próprio de quem respeita pessoas e animais, combatendo deste modo a miséria histórica que se transformou em herança cultural, certos do agradecimento canino.

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