O Black é o meu
companheiro quotidiano, um camarada que me dá cabo da cabeça e que intenta
dominar-me, desafiando-me vezes sem conta e tentando impor-me a sua vontade,
apesar de nunca ser bem-sucedido. Rosna-me quando lhe mexo na comida, puxa-me à
trela como um desalmado, avança para cima de qualquer cão, tenta abocanhar os
gatos, pisa-me o canteiro no jardim, rói-me a mangueira, rouba-me as
ferramentas, escapa-se para dentro de casa sem autorização, põe-se atrás da
porta de entrada para ladrar aos outros cães e arranha-me a porta. Está a
precisar de ser treinado e eu que não conheço nenhum treinador! À parte disto,
é extremamente meigo, brincalhão, atento e valente, ainda que pouco concentrado
e com o seu quê de suicida, decididamente um espírito livre ou um escravo da
selecção que o gerou. Com o tempo quente passa os dias à sombra e à noite
deita-se a meu lado, muito embora saiba que não deve fazê-lo por causa do imenso
pêlo que larga pela casa fora. E o pior de tudo é que lhe acho graça e aprecio
a sua irreverência, educando-o contrariado, fazendo-lhe cara de pau quando me
apetece abraçá-lo. Será que os cães não podem ser quem são? Será que não os educamos
por conta dos hiatos dos seus criadores? Dá que pensar!
Um dia destes levei-o para
a serra e esperava que entrasse em correrias loucas, que nunca mais aparecesse
e que me obrigasse a ir à sua procura. Mas não, nunca se afastou de mim e
quando deixava de o ver, bastava assobiar-lhe que logo aparecia (não é maluco
de todo), desinteressando-se dos viandantes ao seu redor e regressando alegre e
desafiador, apesar de não medir os perigos e de ter andado por cima dos
telhados de velhas casernas militares desactivadas e degradadas. Acabei por lhe
tirar várias fotografias, uma delas junto a uma desusada bateria de costa e não
tive que insistir para que ficasse quieto. É realmente uma contradição: na rua
encosta-se a mim e em casa resiste à minha liderança. Eu não conheço o seu
criador e caso conhecesse teria com ele uma conversa pé-de-orelha, nem que
fosse para compreender quais os critérios que seguiu para gerar indivíduos
assim. Caros leitores e canicultores, tanto nos Pastores Alemães como em
qualquer raça, o primeiro impulso herdado a potenciar é o relativo “ao
conhecimento” e não outro! De que me vale um cão que corra muito se não o
consigo controlar, para que servirá um cão que morde a torto e a direito? Que
resiste à liderança e que sempre incorre na desobediência? Não é o Black que é
tonto mas o alienado que o criou! Estou grato a Deus por me ter vindo parar às
mãos, porque doutro modo seria irremediavelmente desleixado, catalogado de
maluco e perigoso, capaz de ter como certo um fim pouco digno e honroso. Cada
um é para o que nasce e eu nasci para ajudar o Black.
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