Ao entardecer com o Vento Suão,
que os italianos há muito alcunharam de “Siroco”, vento sudeste que traz o
calor e as areias do Deserto do Sahara, frente quente e árida que na época
estival quase nos sufoca nas planícies do interior, pus-me a pensar sobre a
canicultura e os canicultores dos tempos que correm, também eles sufocados pelo
vento persistente da austeridade que afecta todos os portugueses e sujeita-os
às decisões de meia-dúzia de burocratas desconhecidos que mexem os cordelinhos
da UE, resultando disso a perca da independência nacional e um Parlamento
fantoche, um punhado desenrascado de políticos “vira-casacas” e o
empobrecimento geral. De um jeito ou de outro sempre andámos assim, por isso já
não estranhamos, na oscilação histórica entre o roto e o nu.
Como todos sabemos os cães
não são um produto de primeira necessidade e mais agravam as despesas dos seus
proprietários, porque não são auto-sustentáveis e exigem uma série de cuidados
mais ou menos dispendiosos, sendo por isso um vício caro sustentado pela
vaidade, simultaneamente um hobby e uma necessidade que não estão ao alcance de
qualquer um, ainda que muitos os tenham para cúmulo da sua desgraça e infortúnio
dos animais, o que torna a criação de cães uma actividade de alto risco para a
carteira dos seus mentores, pois dependem dos bons ventos da economia, podendo
ser levados pelos maus e lançados na ruína, sorte a que os criadores nacionais
parecem hoje malogradamente votados pelas vicissitudes a que se encontram
sujeitos.
Nestes momentos de
austeridade, a par com a miséria de muitos, cresce a ganância e a avareza,
valendo-se todos das mais variadas jigajogas e geringonças na procura de
vantagens, “mind games” como faz o Mourinho no futebol. Como a maioria das
pessoas não tem como comprar cães, caso pudesse não hesitaria em comprá-los,
mesmo que agora se confesse ser contra a sua venda, os canicultores vêem-se
rodeados de oportunistas que intentam comprar-lhes cães por um preço bem abaixo
do seu custo, gulosos que se aproveitam da actual crise económica para a
prevalência dos seus intentos, plebe sem escrúpulos que faz sua a máxima já
batida: ”com o mal dos outros posso eu bem!” Não sobrando outro tipo de
compradores, sempre acabam por ser bem-sucedidos, porque os criadores não podem
ficar com os cães todos e cada cão a mais agudiza a sua já difícil sobrevivência,
comprometendo a sua subsistência, a dos seus e a dos animais que mantêm ao seu
encargo.
Para combater estes
oportunistas e não comprometer o futuro da canicultura pela constante baixa de
preços resultante da menor procura, os canicultores terão que diminuir tanto os
seus efectivos quanto o número de ninhadas, que só deverão acontecer debaixo de
reserva convenientemente sinalizada, porque doutro modo terão que suportar as
possíveis desistências que sempre acontecem, para além de se sujeitarem à
abusada baixa de preços a que hoje se assiste e da qual dificilmente se verão
livres. Por outro lado, deverão desprezar a quantidade e apostar na qualidade,
porque os bons cães são como os carros topo de gama: nunca lhes faltam compradores.
E vender por vender barato, mais vale que seja a alguém que mostre o cão e que
não o esconda, servindo o animal como a melhor das publicidades para o trabalho
do seu criador. Dar preferência a compradores mais visíveis, badalados ou
colunáveis tem-se revelado uma excelente estratégia. Vender nesta ou noutras
alturas “cachorros de ensaio”, resultantes de experimentos que visam o alcance
de melhores beneficiamentos, que sempre carecem de escoamento, pode revelar-se
um desacerto grave porque poderá desprestigiar qualquer linha de criação. Assim,
estes exemplares devem ser doados a pessoas amigas e não serem vendidos.
Cresce entre a opinião
pública a revolta contra a venda dos cães, oposição que eticamente se
compreende pelo número crescente dos necessitados de adopção, mas que não se
entende face aos benefícios que a canicultura oficial entende à sociedade,
enquanto produtora de cães para os mais variados fins, sendo até ao momento
alguns deles insubstituíveis em certos serviços, considerando a saúde, o
bem-estar, protecção e salvamento das populações, efectivo menos dispendioso
para a garantia dessas mais-valias, o que obriga e obrigará os canicultores à
produção de animais de utilidade, porque só já ela justifica e justificará a
existência de cães com pedigree, fora isso já nos bastam os rafeiros, mormente
nas sociedades mais pobres ou nas mais abastadas em tempos de crise (vão-se os
anéis, ficam os dedos!), muito embora saibamos que a vaidade, que muitos
justificam como direito à diferença, tenha aqui uma importante palavra a dizer.
Erram redondamente aqueles
que pensam a ser a canicultura uma actividade muito lucrativa ou um meio de
rápido enriquecimento, porque ela jamais satisfará o investimento que lhe é
feito e sempre exigirá novos, atendendo ao propósito dos beneficiamentos. Criar
cães é uma carolice advinda da paixão, uma forma de empobrecer a dar corpo aos
sonhos, um serviço que mais serve aos outros que aos próprios, uma actividade
excêntrica para os ricos e a mais dura das penas para os remediados e pobres.
Lucrativo é transaccionar cães, comprá-los baratos e vendê-los bem acima do seu
preço de custo. Uma ninhada que nasce é o culminar de uma vida de trabalho,
dedicação e despesas, uma obra que vale pelo que é e que pouco ou nada retribui
a quem a erigiu, a não ser a alegria de havê-la feito e de ser admirada pelos
outros. Ser criador é nalguns casos investir o que se tem e não tem sem
estender a mão à caridade.
Tenho reparado que muitas
das pessoas que se dizem contra a venda de cães, acusando injustamente os
criadores de agiotas e salafrários, acabam por adoptar um mestiço, que só Deus
sabe a raça a que pertence, atribuindo-lhe uma por analogia ou em função de um
ascendente longínquo, como que a reclamar um lugar ao sol para o animal de
acordo com a sua vaidade, gente que mais valia estar calada e que, ao invés de
combater os canicultores e procurar as suas fraquezas, deveria dar combate às
suas e não se aproveitar das alheias. Ser criador de cães tem um preço que
poucos estão dispostos a suportar e tudo o que tem valor não é gratuito.
Gratuito só o Amor de Deus e talvez por isso as igrejas se encontrem vazias! E
nestas picardias dos homens, quase tão antigas quanto o mundo, a vaidade de uns
gera a inveja e cobiça dos outros (parece que andamos todos ao mesmo).
Na verdade existem por
toda a parte milhares de cães sem raça definida por adoptar, muitos rafeiros
são notoriamente mais apelativos e mais saudáveis que os ditos “puros”, mas
mesmo assim há quem prefira algum desleixado de raça, convencido que a sorte
lhe sorriu, desejo hipócrita que se repete amiúde e que leva ao desprezo pelos
filhos da selecção natural. Este “não querer ficar para trás”, lembra-me a
figura caricata de um fulano provinciano, julgo que era barbeiro, que não tendo
um carro com ar condicionado como os demais e querendo enganar os outros,
circulava com o seu de janelas fechadas, todo atabafado em pleno Verão, acabando
a suar que nem um porco!
Debaixo dos auspícios do
Vento Suão que nos acalenta, escrevemos este texto para aqueles que pretendem
ser criadores de cães, para que meditem seriamente sobre a sua opção, alertando-os
para os riscos e adiantando-lhes conselhos advindos da experiência que tivemos.
Em simultâneo importou-nos denunciar os párias mais comuns ao redor da
canicultura e publicitar o importante trabalho dos criadores de cães. Muito
mais haveria a dizer sobre o assunto, oportunidades não faltarão!