Apesar da sua aparência rocambolesca, a
história que vamos contar-vos aconteceu recentemente, não será caso único e
voltará a acontecer, graças à omissão da lógica e ausência de raciocínio, na cegueira
do desejo que espera o milagre e que desconsidera os riscos. E sobre milagres,
ficamos com as palavras de um mirandês, um iletrado fustigado pelos anos que
sempre diz: “milagre é não estar só neste mundo e haver vida para além da
morte”. O patriarca de uma família numerosa, carente de espaço para a sua
gente, é surpreendido por uma boa notícia: um parente seu põe-lhe à disposição
uma quintinha lá para os lados de Sintra, notícia inesperada que muito o
alegrou e que veio ao encontro das suas expectativas e desejos. Na dita
quintinha vivem lá três cães há muito amatilhados, um labrador negro e dois
galgos, todos adultos, que ali continuarão e que recentemente trucidaram um
rafeiro incauto, por lhes ter invado o espaço, episódio que tem alimentado a antipatia
da vizinhança. O líder daquele trio é o labrador e os galgos sempre aguardam o
seu mote, escalonamento que lhe garante a unidade, tornando-o coeso para o que
der e vier.
O patriarca da nossa história tem também dois labradores, um dourado e
outro chocolate, irmãos de ninhada, também eles amatilhados entre si e já
sexualmente maduros, que foram criados no apartamento com a família. A
dominância do dourado sobre o chocolate é por demais evidente, tão evidente que
o segundo é deveras submisso, isento de iniciativa e sombra do irmão, acusando
de sobremaneira a sua ausência e escudando-se nele nos passeios ao exterior,
sendo incapaz de se defender. Apostado na sociabilização dos seus cães com o
trio residente na quinta, com quem irão dividir o mesmo espaço, e sabendo que o
dourado é mais activo e belicoso, o homem decidiu apresentar, sem mais nem
menos, o seu labrador chocolate aos cães ali acantonados, na esperança que se
todos se dessem bem, já que o seu cachorro não era uma ameaça aos olhos de ninguém.
Mal a “experiência” teve início, o labrador da quinta caiu ferozmente
sobre o cachorro, no que foi secundado pelos galgos. E não fosse a pronta acção
do dono, que o tirou daquele imbróglio, o pobre cachorro chocolate teria ficado
em fanicos! Seria de esperar outro desfecho? Obviamente que não, considerando a
matilha animal constituída e o seu histórico anterior. O consentimento doutros
cães dentro duma matilha animal já constituída não é automático nem gratuito, particularmente
entre cães adultos, já que esse agrupamento social se estabeleceu pela ausência
de liderança humana e foi escalonado, em sua substituição, a partir do cão do
cão mais forte, que sobre os outros exerce o seu domínio. Nem mesmo os cães
hierarquicamente abaixo dele verão com bons olhos o aumento da matilha,
entendendo os recém-chegados como intrusos, concorrentes e capazes de operar a
sua despromoção social, sendo por vezes os primeiros a agredi-los como garante
do seu status, perante a indiferença ou aceitação dos mais novos pelo
dominante.
Nestes casos há que fragmentar a matilha, instituir a liderança humana e
tratar cada cão individualmente, colocando todos, a seu tempo, debaixo da nova
ordem, familiarizando cada um deles com os cães novos, de preferência com os
beligerantes atrelados, o que dará maior confiança e protecção ao
recém-chegados e impedirá os instalados de os amedrontarem ou escorraçarem,
porque a sociabilização sem a prévia familiarização tende a estabelecer-se a
partir do lei do mais forte e a perpetuar-se pelo medo, o que irá obstar ao
bem-estar e desenvolvimento dos cães mais fracos, carenciados de recuperação.
Não tendo o dono perfil ou disponibilidade para a tarefa, o melhor que tem a
fazer é separá-los e alojar cada um deles num canil individual e gradualmente
ir operando a necessária familiarização debaixo de supervisão, soltando e juntando
os dois cães novos, alternadamente, com cada um dos residentes, porque o maior
número dos recém-chegados irá obrigá-los a um novo tipo de postura, porque sem
o apoio do grupo inicial, sentir-se-ão vulneráveis e alcançarão outro tipo de
relacionamento e convivência. Quando os cães se encontram separados em canis no
mesmo local, a liderança humana é facilitada e a familiarização dos animais
torna-se mais fácil, porque precisam de ser soltos e dormem lado a lado. O
êxito sempre resultará da transição da autonomia desregrada para a
condicionada, trabalho que exigirá dos donos atenção, paciência, estudo,
autoridade e reparo.
Sem comentários:
Enviar um comentário