quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

UMA EXPERIÊNCIA DO ARCO-DA-VELHA

Apesar da sua aparência rocambolesca, a história que vamos contar-vos aconteceu recentemente, não será caso único e voltará a acontecer, graças à omissão da lógica e ausência de raciocínio, na cegueira do desejo que espera o milagre e que desconsidera os riscos. E sobre milagres, ficamos com as palavras de um mirandês, um iletrado fustigado pelos anos que sempre diz: “milagre é não estar só neste mundo e haver vida para além da morte”. O patriarca de uma família numerosa, carente de espaço para a sua gente, é surpreendido por uma boa notícia: um parente seu põe-lhe à disposição uma quintinha lá para os lados de Sintra, notícia inesperada que muito o alegrou e que veio ao encontro das suas expectativas e desejos. Na dita quintinha vivem lá três cães há muito amatilhados, um labrador negro e dois galgos, todos adultos, que ali continuarão e que recentemente trucidaram um rafeiro incauto, por lhes ter invado o espaço, episódio que tem alimentado a antipatia da vizinhança. O líder daquele trio é o labrador e os galgos sempre aguardam o seu mote, escalonamento que lhe garante a unidade, tornando-o coeso para o que der e vier.
O patriarca da nossa história tem também dois labradores, um dourado e outro chocolate, irmãos de ninhada, também eles amatilhados entre si e já sexualmente maduros, que foram criados no apartamento com a família. A dominância do dourado sobre o chocolate é por demais evidente, tão evidente que o segundo é deveras submisso, isento de iniciativa e sombra do irmão, acusando de sobremaneira a sua ausência e escudando-se nele nos passeios ao exterior, sendo incapaz de se defender. Apostado na sociabilização dos seus cães com o trio residente na quinta, com quem irão dividir o mesmo espaço, e sabendo que o dourado é mais activo e belicoso, o homem decidiu apresentar, sem mais nem menos, o seu labrador chocolate aos cães ali acantonados, na esperança que se todos se dessem bem, já que o seu cachorro não era uma ameaça aos olhos de ninguém.
Mal a “experiência” teve início, o labrador da quinta caiu ferozmente sobre o cachorro, no que foi secundado pelos galgos. E não fosse a pronta acção do dono, que o tirou daquele imbróglio, o pobre cachorro chocolate teria ficado em fanicos! Seria de esperar outro desfecho? Obviamente que não, considerando a matilha animal constituída e o seu histórico anterior. O consentimento doutros cães dentro duma matilha animal já constituída não é automático nem gratuito, particularmente entre cães adultos, já que esse agrupamento social se estabeleceu pela ausência de liderança humana e foi escalonado, em sua substituição, a partir do cão do cão mais forte, que sobre os outros exerce o seu domínio. Nem mesmo os cães hierarquicamente abaixo dele verão com bons olhos o aumento da matilha, entendendo os recém-chegados como intrusos, concorrentes e capazes de operar a sua despromoção social, sendo por vezes os primeiros a agredi-los como garante do seu status, perante a indiferença ou aceitação dos mais novos pelo dominante.
Nestes casos há que fragmentar a matilha, instituir a liderança humana e tratar cada cão individualmente, colocando todos, a seu tempo, debaixo da nova ordem, familiarizando cada um deles com os cães novos, de preferência com os beligerantes atrelados, o que dará maior confiança e protecção ao recém-chegados e impedirá os instalados de os amedrontarem ou escorraçarem, porque a sociabilização sem a prévia familiarização tende a estabelecer-se a partir do lei do mais forte e a perpetuar-se pelo medo, o que irá obstar ao bem-estar e desenvolvimento dos cães mais fracos, carenciados de recuperação. Não tendo o dono perfil ou disponibilidade para a tarefa, o melhor que tem a fazer é separá-los e alojar cada um deles num canil individual e gradualmente ir operando a necessária familiarização debaixo de supervisão, soltando e juntando os dois cães novos, alternadamente, com cada um dos residentes, porque o maior número dos recém-chegados irá obrigá-los a um novo tipo de postura, porque sem o apoio do grupo inicial, sentir-se-ão vulneráveis e alcançarão outro tipo de relacionamento e convivência. Quando os cães se encontram separados em canis no mesmo local, a liderança humana é facilitada e a familiarização dos animais torna-se mais fácil, porque precisam de ser soltos e dormem lado a lado. O êxito sempre resultará da transição da autonomia desregrada para a condicionada, trabalho que exigirá dos donos atenção, paciência, estudo, autoridade e reparo.

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