Hoje vamos falar do Cão da Serra da Estrela, uma das raças nacionais que
continua a ser desaproveitada, o que a leva ser preterida por outras de raça
estrangeira com créditos firmados na multivariedade das prestações caninas.
Grande e pesada demais para viver dentro de apartamentos, o que a torna um pet
excepcional, os exemplares desta raça irão ser recambiados para moradias ao
redor dos grandes burgos, quintas, picadeiros, unidades pecuárias e fabris, estaleiros
de obras, stands de automóveis, quintas pedagógicas, montes no Alentejo e até
para a aldeia idílica que nos viu nascer, não tanto pelo bem-estar dos animais
mas porque são tidos como exímios guardiões, como se a presença ostensiva
bastasse e o alarme fosse a essência do ofício guardião, na tradicional
confusão entre cão de vigia e cão de guarda. Se o panorama não se alterar e
raça não chegar a outras mãos, uma vez consideradas as inaptidões para guarda
da esmagadora maioria dos Serra da Estrela e se ainda por cima nos tirarem o
Fila de S. Miguel, ficaremos irremediavelmente descamisados no que à protecção
canina diz respeito.
Os cães portugueses, intrinsecamente ligados à economia de subsistência
e aos seus afazeres, na sua maioria primitivos e rústicos, não foram objecto de
selecção aturada, da verificada nos restantes países europeus e acontecida nos alvores
do Sec. XX, sendo seleccionados por força dos seus instintos e alcançando
estalões 30 e tal anos mais tarde, o que lhes legou um carácter independente e
uma parceria condicionada às suas tendências ancestrais, porque o analfabetismo
grassava entre o povo e as obras de Darwin e Galton eram pouco conhecidas,
mesmo entre aqueles de quem se reclamaria alguma erudição. Por causa destas
condicionantes económicas e culturais, nunca criámos uma raça canina tipo pet,
anteriormente designados “por cães de luxo”, muito embora tanto o Cão de Água
como o Serra de Aires a isso se prestem e muito bem, porque são raças aqui mais
recentes e díspares das restantes. As raças caninas lusas, enquanto legado
popular, foram e continuam a ser essencialmente pastoras e caçadoras, próprias
para o trabalho que as reclamou e pouco versáteis, distantes das especialidades
clássicas do adestramento, tiradas de cães diversos e apostadas no particular
das suas mais-valias, visando o seu aprimoramento para fins específicos, mais
tangentes às necessidades contemporâneas.
Considerando o tamanho e a envergadura do Cão da Serra da Estrela,
facilmente se conclui que pouco se enquadra na categoria clássica de “pet” e que
não seja prático viver com ele dentro de casa, porque se torna dispendioso e
ocupa muito espaço, o que o afasta de imediato das condições e posses da maioria
dos cidadãos apaixonados por cães. Como dificilmente a raça sobreviverá pelo
retorno à pastorícia, terão que ser encontradas outras utilidades ao alcance
desde cão, para que não se torne obsoleto e desapareça, consiga competir com
outros, ver reconhecidos os seus méritos, proliferar e ser reclamado, porque
quem não se adapta, perde o direito à sobrevivência.
Na mudança de mão dos pastores para os canicultores, o cão sofreu
profundas alterações por via doutras preferências, talvez para apresentar
trabalhar e justificar diferenças, contrariamente ao parecer dos pastores,
generalizou-se um subtipo: o de pêlo comprido, maioritariamente vermelho, mais
sorumbático, pesado e lento, menos participativo, ágil e activo, por quem as
ovelhas teriam de esperar, caso retornasse à Serra e os lobos por lá andassem.
E como ninguém pode servir a dois senhores, a opção pelos cães de pêlo
comprido, até ali minoritários, implicou no desprezo dos cães de pêlo curto, tradicionalmente
maioritários pela sua funcionalidade, o que quase os levou à extinção, mercê da
estética que desconsiderou o trabalho, num repasto de omoletes sem ovos.
No início da década de 90 do século passado, num acesso de patriotismo
cardíaco, optámos por criar e experimentar quase todas as raças nacionais (só
não abraçámos o Perdigueiro), tornando-os criadores de Serras da Estrela e de
Filas de S. Miguel, no intuito de descobrirmos e evidenciarmos as suas
mais-valias no treino clássico, na tripla apreciação de obediência, guarda e
pistagem. Os Filas de S. Miguel, oxalá ninguém os estrague e parece que estão
em vias disso, na procura do cão de fila mais pequeno do mundo, conseguiram
desempenhos iguais e nalguns casos superiores aos mais afamados cães de raça
germânica, graças à sua prontidão, valentia e extrema dedicação aos donos. Já
os Serra, e não experimentámos assim tão poucos, ficaram aquém dos nossos
desejos e expectativas, mostrando-se fáceis na obediência estática e
resistentes na dinâmica, sendo fácil travá-los e difícil embalá-los, denotando
pouco interesse e indisponibilidade, nomeadamente na transposição de obstáculos
simples e alcançáveis pela sua biomecânica.
Depois de experimentarmos amiúde uns e
outros, confirmámos a superioridade dos exemplares de pêlo curto em relação aos
de pêlo comprido, superioridade visível na resistência às intempéries e diante
de diferentes amplitudes térmicas, na transição dos diversos andamentos
naturais, maior vigor e disponibilidade, numa cumplicidade mais activa e na menor
resistência ao trabalho. E entre estes, os que mais se destacaram foram os
raiados e os lobeiros, também os cor de marfim, já que os de cor sólida e de
tonalidade mais escura acusavam o cansaço e a saturação mais cedo. Esses
exemplares de pêlo curto, agora mais procurados, quiçá pelo menor préstimo dos
de pêlo comprido, que detestam ser importunados e que com a idade fazem
prevalecer a sua vontade, conseguiam disputar mano-a-mano os objectivos
propostos aos Rottweilers, sendo-lhes superiores no faro e nadando com mais
facilidade, apesar de ambos necessitarem de serem nisso capacitados, porque
tendem a nadar só de mãos e a circular em parafuso, atingindo a exaustão com
facilidade, o que lhes pode fatal, caso não sejam socorridos.
Assim como a tendência do Fila de S. Miguel é de morder em baixo, muito
embora aprenda com facilidade outro tipo de ataques, o que tem apanhado muitos
de surpresa, o Serra tende a atacar em cima, à linha do pescoço e pela
retaguarda, transitando gradualmente para os ataques frontais à medida que
ganha confiança. Um Serra, devidamente habilitado, pode ser um excelente cão de
salvamento e de resgate, porque dificilmente confunde o “ronda” com o “busca”,
tornar-se num cão de terapia e num guardião eficaz e silencioso. Manifestámos
aqui a nossa experiência para auxiliar os criadores mais jovens, para que ousem
criar Serras de pêlo curto, seleccionando-os para os desafios do presente,
porque a raça tem potencial e precisa de gente mais ambiciosa e fundamentada,
daquela que não se fica pela história e que faz o futuro, apelando-lhes para que
não desprezem o conhecimento erudito e que considerem como primordial na
escolha dos seus reprodutores um superior impulso ao conhecimento e maior
destreza física. Para nós, falar de Serras da Estrela, é falar de pêlo curto, raiados
e lobeiros, sem excluir nenhum dos outros, pois importa corrigir os erros
operados depois da década de 40, responsáveis pela menor funcionalidade do Cão
da Serra da Estrela e que não afectaram só esta raça, apanhar o fio à meada e
religar os cães do presente aos originais. Como o gosto estético se altera com
o tempo, que se vão os anéis mas que fiquem os dedos: precisamos de cães de
trabalho, úteis para quem deles precisa.
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