sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

REBENTAR, REMEDIAR E VALER: A HISTÓRIA DOS CÃES-GUIA PARA CEGOS

Esta é uma história, como tantas outras, que se pode resumir na frase: “Deus escreve direito por linhas tortas” ou noutra: ” há males que vêm por bem”, mais apropriada para quem não crê em Deus e não acredita na Opera Dei, revelada em Cristo, em prole da Humanidade. Como há quem julgue, erroneamente, que os actuais escolas de cães-guias tiveram a sua origem pioneira nos Estados Unidos, importa esclarecer onde e porque surgiram. Assim, a primeira tentativa sistemática de produzir cães-guias, aconteceu em França, mais propriamente em Paris, no Hôpital des Quinze-Vingts, por volta de 1870. Oito anos depois, em 1878, um invisual austríaco de Viena, de nome Josef Riesinger, surpreendeu os seus conterrâneos com um Spitz Alemão que treinou para o guiar. No século XIX, no Ano de 1819, o bávaro Johann Wilhelm Klein, fundou em Viena o “Blinde-Erziehungs-Institut” (Instituto para a Educação de Cegos) e mencionou o primeiro conceito de cão-guia para cegos de que há memória, muito embora não exista qualquer registo que prove a prática das suas ideias, apesar de ter editado a obra “Lehrbuch zum Unterricht der Blinden”. O mesmo não se passou em 1847, quando Jakob Birrer, um invisual suíço, divulgou a sua experiência com um cão, que ele mesmo treinou durante cinco anos. A foto abaixo é de Johann Wilhelm Klein.
A história moderna dos cães-guia para cegos surge como resposta aos efeitos do uso do gás na I Grande Guerra, responsável pela cegueira de muitos soldados, arma venenosa que se abateu sobre as hostes de todos os contendores. A ideia partiu do Dr. Gerhard Stalling, um alemão, que ao aperceber-se que o seu cão tinha tomado conta de um soldado cego na sua ausência, decidiu criar e treinar grande número de cães para auxiliarem aqueles veteranos. Em Agosto de 1916, em Oldenburg, abriu a primeira escola de cães-guia do mundo, que cresceu rapidamente e se estendeu a outras cidades alemãs, abrindo filiais em Bona, Breslau, Dresden, Essen, Freiburgo, Hamburgo, Magdeburgo, Munique e Hanôver, treinando um total de 600 cães por ano. Ao que consta, estas escolas, para além de fornecerem cães para ex-soldados, passaram também a produzi-los para pessoas invisuais de vários países (Canadá, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Reino Unido e União Soviética). Infelizmente, essa parceria iria acabar em 1926. Sensivelmente na mesma altura e com grande sucesso, surge outra grande escola de cães-guias, perto de Berlim, em Potsdam, que mantinha permanentemente 100 cães em treino e entregava 12 por mês. Nos seus primeiros 18 anos educou cerca de 2.500 cães-guias, com uma taxa de insucesso de apenas 6%. A foto abaixo é do médico-militar Gerhard Stalling.
É aqui que entra a primeira americana na história, a Sr.ª Dorothy Harrison Eustis, e diga-se em abono da verdade, que em muito boa hora. Esta senhora, que vivia ao tempo na Suíça, onde se dedicava a treinar cães Pastores Alemães para o exército, para a polícia e para os serviços aduaneiros, encantou-se ao ouvir falar da Escola de Potsdam, meteu os pés ao caminho e por lá passou vários meses, saindo de lá tão impressionada que, em Outubro de 1927, publicou um artigo no “Sunday Evening Post”, onde descrevia o trabalho daquela escola. Outro americano, um invisual chamado Morris Frank, ao tomar conhecimento do artigo, escreveu à Sr.ª Eustis propondo-lhe parceria e ajuda para a introdução dos cães-guias nos Estados Unidos. Empreendedora como era, ela prontamente aceitou o desafio. Naquela época a raça de eleição para os cães-guia era o Pastor Alemão. Na foto seguinte podemos ver a Sr.ª Dorothy Eustis ao lado de um invisual com o seu guia canino, um Deutscher Schäferhund lobeiro. Coisas doutros tempos e que dificilmente voltarão, considerando as características dos actuais pastores alemães, menos seguros, mais irritadiços, notoriamente mais frágeis e dados a chiliques.
Desafio aceite, Eustis pôs mãos à obra e treinou o cão “Buddy”, levando ambos de seguida para a Suíça, onde Morris Frank viria a aprender a trabalhar com o animal. Tudo correu conforme o desejado e Frank regressou aos Estados Unidos com o que se acreditava ser o primeiro cão-guia da América. Hoje sabe-se e está comprovado que tal não era verdade, pois a “Scuola Nazionale Cani Guida per Ciechi”, uma organização italiana, já havia iniciado a sua actividade em 1928. A partir desse mesmo ano e animada pelo sucesso de Morris Frank com o Buddy, Dorothy Eustis abriu as suas próprias escolas em Vevey na Suíça e posteriormente nos Estados Unidos, atribuindo-lhes o nome de “L’Oeil qui Voit” (O Olho que Vê), numa alusão à passagem bíblica constante no Livro de Provérbios, Capítulo 20 e versículo 12, que diz: “O ouvido que ouve e o olho que vê, o Senhor os fez a ambos”, o que não deixa de ser curioso. As escolas de cães-guia desta americana foram as primeiras da era moderna e subsidiaram as que hoje conhecemos.
Em 1930 era chegada a vez do Reino Unido, pelo interesse das inglesas Muriel Crooke e Rosamund Bond, que ao contactarem com Dorothy Eustis, dela receberam um dos seus adestradores. Um ano depois (1931), quatro cães-guias ficaram prontos, dando origem à fundação da “Guide Dogs for the Bind Association” (Associação de Cães-Guia para Cegos). A partir dali, as escolas de cães-guias multiplicaram-se pelo mundo, libertando os invisuais e as pessoas de precária visão de alguns estigmas e da dependência exclusiva de terceiros, o que muito tem contribuído para a sua melhor aceitação e inserção social, ao dotá-los de maior independência e mobilidade, factores que somados, têm concorrido para o aumento da sua merecida dignidade. Em Portugal existe uma escola de cães-guia: a ABAADV (Associação Beira-Aguiar de Apoio ao Deficiente Visual), em Mortágua, Distrito de Viseu, projecto que remonta a 1995 e que quatro anos depois começou a dar fruto, ao formar a primeira dupla Cego-Cão Guia, então constituída pelo Augusto Hortas e pela cadela Camila. Hoje a raça canina eleita para este serviço é o Retriever do Labrador e a escola portuguesa continua em franco progresso, merecendo todo o nosso apoio e respeito.
Não sobram dúvidas sobre a origem europeia das escolas de cães-guia, assim como ninguém duvida da importância da Sr.ª Dorothy Harrison Eustis para a sua proliferação intercontinental, uma americana decidida e empreendedora, que se fez à Europa para depois valer ao Mundo. Por detrás das primeiras escolas de cães-guia esteve a I Grande Guerra (1914-1918), que ao devolver milhares de soldados cegos, obrigou ao seu socorro e possibilitou que muitos mais fossem socorridos, auxílio que perdura até hoje e que no futuro se manterá. Diante destes factos, Deus escreveu direito por linhas tortas, porque o mal de uns tantos acabou por se reverter num benefício para outros. Há quem jure que as guerras contribuem para o progresso da Humanidade, nós pensamos que não é preciso rebentar para consertar, muito embora todos aprendamos com os nossos erros. Para a semana cá estaremos com outra história sobre o préstimo canino.

Sem comentários:

Enviar um comentário