Esta é uma história, como tantas outras,
que se pode resumir na frase: “Deus escreve direito por linhas tortas” ou
noutra: ” há males que vêm por bem”, mais apropriada para quem não crê em Deus
e não acredita na Opera Dei, revelada em Cristo, em prole da Humanidade. Como
há quem julgue, erroneamente, que os actuais escolas de cães-guias tiveram a
sua origem pioneira nos Estados Unidos, importa esclarecer onde e porque
surgiram. Assim, a primeira tentativa sistemática de produzir cães-guias, aconteceu
em França, mais propriamente em Paris, no Hôpital des Quinze-Vingts, por volta
de 1870. Oito anos depois, em 1878, um invisual austríaco de Viena, de nome
Josef Riesinger, surpreendeu os seus conterrâneos com um Spitz Alemão que
treinou para o guiar. No século XIX, no Ano de 1819, o bávaro Johann Wilhelm
Klein, fundou em Viena o “Blinde-Erziehungs-Institut” (Instituto para a
Educação de Cegos) e mencionou o primeiro conceito de cão-guia para cegos de
que há memória, muito embora não exista qualquer registo que prove a prática
das suas ideias, apesar de ter editado a obra “Lehrbuch zum Unterricht der
Blinden”. O mesmo não se passou em 1847, quando Jakob Birrer, um invisual suíço,
divulgou a sua experiência com um cão, que ele mesmo treinou durante cinco
anos. A foto abaixo é de Johann Wilhelm Klein.
A história moderna dos cães-guia para cegos surge como resposta aos
efeitos do uso do gás na I Grande Guerra, responsável pela cegueira de muitos
soldados, arma venenosa que se abateu sobre as hostes de todos os contendores.
A ideia partiu do Dr. Gerhard Stalling, um alemão, que ao aperceber-se que o
seu cão tinha tomado conta de um soldado cego na sua ausência, decidiu criar e
treinar grande número de cães para auxiliarem aqueles veteranos. Em Agosto de
1916, em Oldenburg, abriu a primeira escola de cães-guia do mundo, que cresceu
rapidamente e se estendeu a outras cidades alemãs, abrindo filiais em Bona,
Breslau, Dresden, Essen, Freiburgo, Hamburgo, Magdeburgo, Munique e Hanôver,
treinando um total de 600 cães por ano. Ao que consta, estas escolas, para além
de fornecerem cães para ex-soldados, passaram também a produzi-los para pessoas
invisuais de vários países (Canadá, Espanha, Estados Unidos, França, Itália,
Reino Unido e União Soviética). Infelizmente, essa parceria iria acabar em
1926. Sensivelmente na mesma altura e com grande sucesso, surge outra grande
escola de cães-guias, perto de Berlim, em Potsdam, que mantinha permanentemente
100 cães em treino e entregava 12 por mês. Nos seus primeiros 18 anos educou
cerca de 2.500 cães-guias, com uma taxa de insucesso de apenas 6%. A foto
abaixo é do médico-militar Gerhard Stalling.
É aqui que entra a primeira americana na história, a Sr.ª Dorothy
Harrison Eustis, e diga-se em abono da verdade, que em muito boa hora. Esta
senhora, que vivia ao tempo na Suíça, onde se dedicava a treinar cães Pastores
Alemães para o exército, para a polícia e para os serviços aduaneiros,
encantou-se ao ouvir falar da Escola de Potsdam, meteu os pés ao caminho e por
lá passou vários meses, saindo de lá tão impressionada que, em Outubro de 1927,
publicou um artigo no “Sunday Evening Post”, onde descrevia o trabalho daquela
escola. Outro americano, um invisual chamado Morris Frank, ao tomar
conhecimento do artigo, escreveu à Sr.ª Eustis propondo-lhe parceria e ajuda
para a introdução dos cães-guias nos Estados Unidos. Empreendedora como era,
ela prontamente aceitou o desafio. Naquela época a raça de eleição para os
cães-guia era o Pastor Alemão. Na foto seguinte podemos ver a Sr.ª Dorothy
Eustis ao lado de um invisual com o seu guia canino, um Deutscher Schäferhund
lobeiro. Coisas doutros tempos e que dificilmente voltarão, considerando as
características dos actuais pastores alemães, menos seguros, mais irritadiços,
notoriamente mais frágeis e dados a chiliques.
Desafio aceite, Eustis pôs mãos à obra e treinou o cão “Buddy”, levando
ambos de seguida para a Suíça, onde Morris Frank viria a aprender a trabalhar
com o animal. Tudo correu conforme o desejado e Frank regressou aos Estados
Unidos com o que se acreditava ser o primeiro cão-guia da América. Hoje sabe-se
e está comprovado que tal não era verdade, pois a “Scuola Nazionale Cani Guida
per Ciechi”, uma organização italiana, já havia iniciado a sua actividade em 1928. A partir desse mesmo
ano e animada pelo sucesso de Morris Frank com o Buddy, Dorothy Eustis abriu as
suas próprias escolas em Vevey na Suíça e posteriormente nos Estados Unidos,
atribuindo-lhes o nome de “L’Oeil qui Voit” (O Olho que Vê), numa alusão à
passagem bíblica constante no Livro de Provérbios, Capítulo 20 e versículo 12,
que diz: “O ouvido que ouve e o olho que vê, o Senhor os fez a ambos”, o que
não deixa de ser curioso. As escolas de cães-guia desta americana foram as
primeiras da era moderna e subsidiaram as que hoje conhecemos.
Em 1930 era chegada a vez do Reino Unido, pelo interesse das inglesas
Muriel Crooke e Rosamund Bond, que ao contactarem com Dorothy Eustis, dela
receberam um dos seus adestradores. Um ano depois (1931), quatro cães-guias
ficaram prontos, dando origem à fundação da “Guide Dogs for the Bind
Association” (Associação de Cães-Guia para Cegos). A partir dali, as escolas de
cães-guias multiplicaram-se pelo mundo, libertando os invisuais e as pessoas de
precária visão de alguns estigmas e da dependência exclusiva de terceiros, o
que muito tem contribuído para a sua melhor aceitação e inserção social, ao
dotá-los de maior independência e mobilidade, factores que somados, têm
concorrido para o aumento da sua merecida dignidade. Em Portugal existe uma escola
de cães-guia: a ABAADV (Associação Beira-Aguiar de Apoio ao Deficiente Visual),
em Mortágua, Distrito de Viseu, projecto que remonta a 1995 e que quatro anos
depois começou a dar fruto, ao formar a primeira dupla Cego-Cão Guia, então
constituída pelo Augusto Hortas e pela cadela Camila. Hoje a raça canina eleita
para este serviço é o Retriever do Labrador e a escola portuguesa continua em
franco progresso, merecendo todo o nosso apoio e respeito.
Não sobram dúvidas sobre a origem europeia das escolas de cães-guia,
assim como ninguém duvida da importância da Sr.ª Dorothy Harrison Eustis para a
sua proliferação intercontinental, uma americana decidida e empreendedora, que
se fez à Europa para depois valer ao Mundo. Por detrás das primeiras escolas de
cães-guia esteve a I Grande Guerra (1914-1918), que ao devolver milhares de
soldados cegos, obrigou ao seu socorro e possibilitou que muitos mais fossem
socorridos, auxílio que perdura até hoje e que no futuro se manterá. Diante
destes factos, Deus escreveu direito por linhas tortas, porque o mal de uns
tantos acabou por se reverter num benefício para outros. Há quem jure que as
guerras contribuem para o progresso da Humanidade, nós pensamos que não é
preciso rebentar para consertar, muito embora todos aprendamos com os nossos
erros. Para a semana cá estaremos com outra história sobre o préstimo canino.
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