Como preâmbulo ao tema, aproveitando-o e porque importa fazer justiça,
sentimo-nos obrigados a falar sobre o Malamute do Alasca (Alaskan Malamute),
raça que conhecemos bem e da qual treinámos vários exemplares, que não goza de grande
reputação entre nós e que tem vindo a ser apelidada de primitiva, rude e de
pouco préstimo, o que a nosso ver não corresponde à verdade, pois se assim
fosse, como poderia ter contribuído de forma tão positiva para a formação do
Pastor de Shiloh?
Se há actividades humanas onde o racismo e a xenofobia se sintam em casa
e tendam a perpetuar-se, o adestramento será uma delas, porque se alicerça na eugenia
negativa que o sustenta e continua a considerar ou desconsiderar os cães em
função da sua raça, cegueira que invariavelmente não vê, a supremacia da
selecção natural sobre a artificial, resultando daí o asco aos rafeiros. Graças
à mesma filosofia e a alguns pressupostos dela advindos, o Malamute do Alasca
tem sido mal compreendido e pouco explorado, como se fosse exclusivamente uma
besta de carga, um semi-lobo ou uma fera para exposição, a despeito de ser um
companheiro leal e participativo, um compincha para as crianças, um atleta de
eleição e um guardião activo, seguro e silencioso, para além de ser rústico,
resistente e pouco exigente. Gostar das características de uma raça em
particular, não deverá ser um impedimento para apreciar outras e aquilatar do
seu potencial. Assim, estigmatizar o Malamute, é um erro crasso que não esconde
a precariedade dos adestradores e a sua demanda pelo facilitismo.
Vamos hoje falar dum massivo transporte
intercontinental de cães com fins militares, que teve como ponto de partida o
Alasca e como destino a cadeia montanhosa dos Vosges, ocorrido em 1915 e
durante a I Guerra Mundial. Não foi o maior transporte militar intercontinental
de cães já realizado, porque esse aconteceu da Alemanha nazi para o Japão, sob
os auspícios da II Guerra Mundial, quando III Reich cedeu alguns milhares de
cães ao seu aliado nipónico.
A Solução “Haas & Mouffet”, designação inicialmente pejorativa (oriunda
de alguns oficiais de cavalaria franceses) e que adiantava o nome dos seus
mentores, o Tenente René Haas e o Capitão Louis Moufflet, militares gauleses,
residentes no Alasca antes da guerra e responsáveis pelo envio de 436 cães de
trenó e seu equipamento, de Nome no Alasca para as posições francesas nos
Vosges, para substituírem o trabalho de cavalos e mulas, substancialmente mais
caros, cerca de quatro vezes mais, e menos operacionais naquelas montanhas
geladas, cujo mau estado das vias impedia a circulação de viaturas automóveis,
já que a neve chegava nos cumes aos 2m de altura. Quando aquele conflito
mundial terminou, sobreviveram apenas 189 cães (menos de 44%), sendo alguns
deles medalhados pelo seu esforço e meritório contributo militar.
Nunca o mundo havia assistido a um
recrutamento tão grande de cães para o mesmo fim, que tiveram que atravessar o
Canadá, cruzar o Atlântico, chegar a Le Havre e dali para a frente dos Vosges, passando
por Seattle e pelo Quebec, sujeitando-se a longas viagens em diferentes meios
de transporte. A parte mais temida e perigosa da viagem foi a marítima, porque
os cães, ao fazerem barulho, poderiam alertar os submarinos alemães que
infestavam o Oceano. Graciosamente, a travessia ocorreu sem acidentes e homens,
cães e material, chegaram ilesos ao continente europeu, mérito que se ficou a
dever a americano de nome Allan Scott, um exímio “musher”, que voluntário por
conta própria (os Estados Unidos ainda eram neutrais) e contra à vontade da sua
esposa, se fez ao mar e tomou parte no conflito.
Do Canadá também vieram alguns
condutores de trenó experimentados, que viriam a servir de instrutores aos
militares franceses designados para aquela missão, que a princípio sentiram
dificuldades na absorção dos comandos verbais ingleses instalados nos cães e que
achavam despropositado o recrutamento daqueles animais, de quem imediatamente
se riram, mas que mostraram ser silenciosos, dóceis e indiferentes aos
disparados perto deles, conseguindo 10 cães carregar e transportar 250kg de
carga útil, apesar de terem sido baptizados com um estrondoso e terrível
bombardeamento.
A ideia inicial era a de formar 60
equipas de 7a 9 cães, deixando de reserva 20, o que veio
a suceder. Para além dos canadianos já no terreno, dos quais constava um padre,
que fora missionário no Canadá (o padre Bérnard) e dos tripulantes que
acompanharam os cães, foram ainda recrutados soldados alpinos e alsacianos. Do
grosso daqueles cães e tripulantes foram constituídas duas secções, criadas e
às ordens do Capitão Moufflet, sendo a primeira comandada por um tenente e
constituída por 68 homens, dos quais faziam parte 4 sargentos, 46 condutores caninos,
160 cães e 25 trenós. A segunda secção, igualmente comandada por um oficial, pouco
diferia da primeira em efectivos e material. Cada atrelado podia transportar de
300 a
400kg, transitando a uma velocidade de 8kms por hora e numa extensão entre 40 a 70km diários, auxílio que
se revelou indispensável para as tropas acantonadas nas montanhas, que assim
recebiam atempadamente combustível, munições, provisões e roupas quentes. No
verão os trenós paravam, mas sempre que o serviço exigia, eram-lhes acoplados
rodas de borracha e lá partiam para as suas missões.
A visão
de dois oficiais franceses (um deles havia sido prospector de ouro no Canadá) e
à experiência dum destemido “musher” americano, acabaram por mudar o curso da
guerra, conseguindo-o através de cães de mushing, heróis forçados que se
revelaram indispensáveis no esforço de guerra e que venceram milhas por terra e
por mar, para acudir aos soldados que deles precisavam numas longínquas
montanhas, perto da Alemanha e com a Floresta Negra pela frente. Ao contar-vos
esta verdadeira epopeia de homens e cães, queremos antes de tudo, suscitar o
respeito que é devido aos cães que se prestam ao mushing, aos do passado, aos
do presente e do futuro, porque ainda hoje se encontram à nossa disposição.
Para terminar, queremos agradecer os trabalhos presentes no site
chiendetraineau.free.fr e no Le Blog de l’ULAC de Bagnolet, sem os quais não
poderíamos trazer-vos esta história, ao mesmo tempo trágica e vitoriosa, que
realça mais uma vez, o auxílio que os cães nos prestam. Seguem as fotos de
Scott Allan, Louis Moufflet e René Haas.
Para a
semana cá estaremos com outra narrativa do contributo canino, que ao perder-se
pelos tempos, merece ser relembrado.
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