Não são muitas as nossas
Vilas que têm cães no seu brasão como é o caso de Alenquer. A raridade
aguçou-me a curiosidade desde muito novo e agora já sei o porquê daquele cão nas
armas desta Vila pertencente ao Distrito de Lisboa, solução adiantada pela
história e pela sobrevivência do povo alano e da sua cultura. Durante muito
tempo deu-se mais crédito a duas lendas relativas ao cão presente naquele
brasão, lendas que tentavam justificar também a razão do nome atribuído àquela
terra.
Uma dizia que D. Afonso Henriques havia encontrado um grande cão chamado “Alão” que rondava as muralhas, quando
se banhava pela manhã no rio e que este consentiu que o afagasse. O rei dos
cristãos entendeu isso como um bom presságio e mandou iniciar o ataque dizendo:
”Alão quer”. Outra dizia que o cão “Alão” estava encarregado de levar todas as
noites as chaves do castelo a casa do Governador e que os portugueses tirando
partido dos instintos do animal, prenderam uma cadela com o cio debaixo de uma
oliveira, manobra que levou o cão a galgar as muralhas e a entregar as chaves
aos portugueses.
Apesar de não se poder
negar o carácter encantado destas lendas, nenhuma delas corresponde minimamente
à verdade. Tanto o cão como o nome da terra devem a sua existência a um povo que
invadiu a Península Ibérica no Ano de 408, 303 anos antes da Invasão Muçulmana:
Os Alanos, que fundaram as cidades de Coimbra e Alenquer e que deixaram
indícios nas Muralhas dos Castelos de Torres Vedras e Almourol e até nas
próprias muralhas de Lisboa, cujos vestígios ainda são visíveis debaixo da
igreja de Santa Luzia.
Os alanos trouxeram
consigo o seu cão: o Alaunt (Alano), conhecido pelas suas qualidades de caça e
combate, que continua a ser usado como cão de caça e pastoreio no País Basco.
Esta raça de cães está por detrás de várias raças caninas de diferentes grupos
somáticos, subdividindo-se no princípio em três grupos distintos: Alaunt Veantre ou Vautre
("Alano que chafurda"), semelhante ao Alabai e resultante do
cruzamento entre mastins e sabujos, considerado como provável predecessor do
antigo Bloodhound e dos Bloodhounds Espanhol, Siberiano e Cubano, usados para perseguir
e apresar de javalis e ursos; o Alaunt
Boucherie ("Alano de carniceiro"), que deu origem a cães de
presa do tipo mastim, fortes, pesados, robustos e de forte mordedura, utilizados
também para combate e como pastores de gado bovino e o Alaunt Gentile ("Alano gentil"), percursor de cães
esguios do tipo intermédio entre o mastim e o lebrel, onde a cor branca é
predominante. Importa ainda dizer que o Cão Alano contribui decisivamente para
a criação das modernas raças de molossos, principalmente na Península Ibérica.
Assim, o cão no brasão de
Alenquer é o Alano e o nome da terra ficou a dever-se ao povo que a fundou, já
que Alenquer deriva de “Alan Ker” (Templo dos Alanos). Não sei se por
causalidade ou por vicissitude, a Vila voltou à ribalta pelo Presépio gigante
que todos os anos pelo Natal monta na sua colina.
A presença dos alanos na
Península não foi muito longa e acabaram por dirigir para o Norte de África.
Destino diferente teve o seu cão, que permaneceu entre nós, deu origem a novas
raças e foi pai de outras que chegaram ao Novo Mundo pela mãos dos espanhóis,
cães que foram aplicar a sua terrível força de mordedura nos nativos das
Américas que resistiram às conquistas da Coroa de Espanha, cães de reconhecida
eficácia assassina no campo de batalha.
Falta dizer quem eram e donde
vieram os Alanos. Trata-se de um povo de origem iraniana, que junto com os
Citas e os Sármatas, se instalou na zona nordeste das Montanhas do Cáucaso,
criando ali uma civilização próspera nos primeiros séculos da Era Cristã. Em
360 dC, os Hunos venceram os Alanos e estes foram separados: uma parte
sujeitou-se ao domínio huno, outra refugiou-se nas Montanhas do Cáucaso Central
e uma terceira, comandada pelo Rei Ataces, atravessou toda a Europa e instalou-se
na Península Ibérica em 408 dC, assentando arraiais na colina a norte do
Mondego, por onde hoje se estende a Cidade de Coimbra, à sombra de um
estandarte onde ondulava um leão.
O desejo deste rei em
aumentar os seus domínios levou-o a confrontos sangrentos com as hostes do rei
suevo Hermenerico, Senhor de Conimbriga, em cuja bandeira ondulava uma
serpente. Segundo os historiadores da época, não foi só o desejo de expansão
que acalentou o rei alano, este caucasiano de pela morena e olhos escuros
apaixonou-se por Cindaz, filha do rei Hermenerico, uma linda princesa sueva, de
olhos claros, cabelos loiros e de pele alva. Por ela, reduziu Conimbriga a
cinzas e obrigou o rei suevo a aceitar o seu casamento com a filha. A boda
selou a paz entre o leão e a serpente, animais que ainda hoje se encontram
representados no brasão da cidade de Coimbra.
Onde estão hoje os
descendentes directos dos Alanos? Respectivamente na Rússia e na Geórgia, nas
Repúblicas da Ossétia do Norte e do Sul. Após a derrocada da União Soviética, os
dirigentes da República da Ossétia do Norte acrescentaram ao seu nome “Alania”,
para recordar os laços existentes entre os alanos e os ossetas, já que os “Osseti”
sempre foram reconhecidos pelos georgianos como povo da Alania ou alanos, gente
que fala um idioma indo-europeu da família iraniana (osseto).
Graças aos laços de sangue
e história comum, os ossetas chegam a Portugal e tem uma agradável surpresa:
não estranham os portugueses! Como remate ou moral da história e que não é
novidade para ninguém, convém dizer que para onde foram os homens, sempre levaram
consigo os cães e que o destino de uns e outros se encontra interligado desde a
Pré-história até a actualidade.
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