terça-feira, 19 de dezembro de 2017

QUE CÃO ESTÁ NAS ARMAS DE ALENQUER?

Não são muitas as nossas Vilas que têm cães no seu brasão como é o caso de Alenquer. A raridade aguçou-me a curiosidade desde muito novo e agora já sei o porquê daquele cão nas armas desta Vila pertencente ao Distrito de Lisboa, solução adiantada pela história e pela sobrevivência do povo alano e da sua cultura. Durante muito tempo deu-se mais crédito a duas lendas relativas ao cão presente naquele brasão, lendas que tentavam justificar também a razão do nome atribuído àquela terra.
Uma dizia que D. Afonso Henriques havia encontrado um grande cão chamado “Alão” que rondava as muralhas, quando se banhava pela manhã no rio e que este consentiu que o afagasse. O rei dos cristãos entendeu isso como um bom presságio e mandou iniciar o ataque dizendo: ”Alão quer”. Outra dizia que o cão “Alão” estava encarregado de levar todas as noites as chaves do castelo a casa do Governador e que os portugueses tirando partido dos instintos do animal, prenderam uma cadela com o cio debaixo de uma oliveira, manobra que levou o cão a galgar as muralhas e a entregar as chaves aos portugueses.
Apesar de não se poder negar o carácter encantado destas lendas, nenhuma delas corresponde minimamente à verdade. Tanto o cão como o nome da terra devem a sua existência a um povo que invadiu a Península Ibérica no Ano de 408, 303 anos antes da Invasão Muçulmana: Os Alanos, que fundaram as cidades de Coimbra e Alenquer e que deixaram indícios nas Muralhas dos Castelos de Torres Vedras e Almourol e até nas próprias muralhas de Lisboa, cujos vestígios ainda são visíveis debaixo da igreja de Santa Luzia.
Os alanos trouxeram consigo o seu cão: o Alaunt (Alano), conhecido pelas suas qualidades de caça e combate, que continua a ser usado como cão de caça e pastoreio no País Basco. Esta raça de cães está por detrás de várias raças caninas de diferentes grupos somáticos, subdividindo-se no princípio em três grupos distintos: Alaunt Veantre ou Vautre ("Alano que chafurda"), semelhante ao Alabai e resultante do cruzamento entre mastins e sabujos, considerado como provável predecessor do antigo Bloodhound e dos Bloodhounds Espanhol, Siberiano e Cubano, usados para perseguir e apresar de javalis e ursos; o Alaunt Boucherie ("Alano de carniceiro"), que deu origem a cães de presa do tipo mastim, fortes, pesados, robustos e de forte mordedura, utilizados também para combate e como pastores de gado bovino e o Alaunt Gentile ("Alano gentil"), percursor de cães esguios do tipo intermédio entre o mastim e o lebrel, onde a cor branca é predominante. Importa ainda dizer que o Cão Alano contribui decisivamente para a criação das modernas raças de molossos, principalmente na Península Ibérica.
Assim, o cão no brasão de Alenquer é o Alano e o nome da terra ficou a dever-se ao povo que a fundou, já que Alenquer deriva de “Alan Ker” (Templo dos Alanos). Não sei se por causalidade ou por vicissitude, a Vila voltou à ribalta pelo Presépio gigante que todos os anos pelo Natal monta na sua colina.
A presença dos alanos na Península não foi muito longa e acabaram por dirigir para o Norte de África. Destino diferente teve o seu cão, que permaneceu entre nós, deu origem a novas raças e foi pai de outras que chegaram ao Novo Mundo pela mãos dos espanhóis, cães que foram aplicar a sua terrível força de mordedura nos nativos das Américas que resistiram às conquistas da Coroa de Espanha, cães de reconhecida eficácia assassina no campo de batalha. 
Falta dizer quem eram e donde vieram os Alanos. Trata-se de um povo de origem iraniana, que junto com os Citas e os Sármatas, se instalou na zona nordeste das Montanhas do Cáucaso, criando ali uma civilização próspera nos primeiros séculos da Era Cristã. Em 360 dC, os Hunos venceram os Alanos e estes foram separados: uma parte sujeitou-se ao domínio huno, outra refugiou-se nas Montanhas do Cáucaso Central e uma terceira, comandada pelo Rei Ataces, atravessou toda a Europa e instalou-se na Península Ibérica em 408 dC, assentando arraiais na colina a norte do Mondego, por onde hoje se estende a Cidade de Coimbra, à sombra de um estandarte onde ondulava um leão.
O desejo deste rei em aumentar os seus domínios levou-o a confrontos sangrentos com as hostes do rei suevo Hermenerico, Senhor de Conimbriga, em cuja bandeira ondulava uma serpente. Segundo os historiadores da época, não foi só o desejo de expansão que acalentou o rei alano, este caucasiano de pela morena e olhos escuros apaixonou-se por Cindaz, filha do rei Hermenerico, uma linda princesa sueva, de olhos claros, cabelos loiros e de pele alva. Por ela, reduziu Conimbriga a cinzas e obrigou o rei suevo a aceitar o seu casamento com a filha. A boda selou a paz entre o leão e a serpente, animais que ainda hoje se encontram representados no brasão da cidade de Coimbra.
Onde estão hoje os descendentes directos dos Alanos? Respectivamente na Rússia e na Geórgia, nas Repúblicas da Ossétia do Norte e do Sul. Após a derrocada da União Soviética, os dirigentes da República da Ossétia do Norte acrescentaram ao seu nome “Alania”, para recordar os laços existentes entre os alanos e os ossetas, já que os “Osseti” sempre foram reconhecidos pelos georgianos como povo da Alania ou alanos, gente que fala um idioma indo-europeu da família iraniana (osseto).
Graças aos laços de sangue e história comum, os ossetas chegam a Portugal e tem uma agradável surpresa: não estranham os portugueses! Como remate ou moral da história e que não é novidade para ninguém, convém dizer que para onde foram os homens, sempre levaram consigo os cães e que o destino de uns e outros se encontra interligado desde a Pré-história até a actualidade.

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