Não
conseguirei antes de morrer narrar a imensidão de acontecimentos que me
ocorreram no mundo de donos e cães, relatos tristes, alegres e plenos de
paixões, desilusões, vitórias e derrotas, não faltando os trágicos, os
hilariantes e os bizarros, alguns deles já contados ao jeito de lição – os mais
velhos têm sempre muitas histórias para contar! Raramente me lembro da história
do Tozé, talvez por ser pouco comum ou algo rara. Este homem do Litoral Oeste
que granjeou com alguma justiça o nome de “O
CÃO DE CAÇA”, muito embora nunca se interessasse por
qualquer actividade cinegética e dedicasse todo o seu tempo ao mar, apesar de não
ter nascido jagoz (1), como muitos pensavam. Logo desde menino
se interessou pela natação, pela vela e pelas actividades subaquáticas. Ao
chegar à maioridade tirou a Carta de Marinheiro (2), adquiriu um pequeno barco e apaixonou-se
visceralmente pelo mergulho, sendo comum vê-lo aos domingos ao redor das
Berlengas (3).
Por mero acaso, acabou contratado por um grupo internacional que tinha como
objecto a arqueologia marinha e durante anos foi essa a sua principal
actividade. Com o passar do tempo e com o desgaste provocado pelo trabalho, começou
gradualmente a ensurdecer-se, ao ponto de só compreender o que os outros diziam
quando falavam alto e estavam virados para si.
Paralelamente,
por razões que importa à ciência explicar, a perca progressiva da audição
trouxe-lhe uma inesperada hipersensibilidade olfactiva, uma exagerada
capacidade para sentir cheiros de que os outros não se apercebiam, transtorno
que só terminou no dia em que finalmente foi operado aos ouvidos. Até lá, a sua
vida transformou-se num tremendo suplício, porque raras eram as pessoas cujo
odor suportava. O seu nariz era capaz de detectar à distância condimentos em
separado, assim como identificar diferentes fragrâncias e a composição dos
diversos perfumes, funcionando como um extractor de odores, que de
tão apurado que era, lembrava o de algumas cadelas paridas. Desesperado com
muitos dos odores que o rodeavam, foi-se isolando dos demais para evitar
dizer-lhes que se lavassem, o que seria de uma deselegância tremenda. Por
mérito do seu problema, identificado por “hiperosmia” (4),
rivalizava com os cães na detecção de animais silvestres, o que lhe valeu a
partir dali o título de “O
CÃO DE CAÇA”, vocativo jocoso de que não se agradava
nada.
Numa tarde de Agosto, quando se
encontrava a beber uma água mineral sem gás numa esplanada (o homem nunca foi de
ingerir álcool), com o vento zéfiro pelas costas, eis que repara numa menina a
chorar com os seus pais a tentar consolá-la. Aproximou-se para tentar
compreender a situação e percebeu que o cachorro da menina havia desaparecido
num bosque próximo sem deixar rasto. A família da garota tinha vindo à minha
procura naquele café, na esperança de ter um cão capaz de ajudar a localizar o
seu. Mas antes que alguém tivesse a oportunidade de me dirigir a palavra, o bom
do Tozé agarrou a criança pela mão e largou pelos campos afora. Em pouco tempo
foi o problema sanado, o cachorro voltou para os braços da menina e a alegria
inundou-lhe o rosto, tudo graças ao olfacto do Tozé, que apesar de não se
agradar da alcunha, ainda hoje é conhecido assim na aldeia onde mora, perdida
no tempo e onde nada acontece. A operação aos ouvidos parece ter levado de
vencida a hiperosmia do Tozé, hoje não cheira o que já cheirou, mas da alcunha
ainda não se livrou! Se alguém for àquele lugar e procurar pelo Tozé, logo
alguém perguntará: “Qual Tozé? O cão de Caça?
PS: Os filhos do Tozé têm hoje quase
50 anos e são conhecidos como "os filhos do cão de caça”, apesar de ainda não
serem nascidos quando tudo aconteceu. Por inerência, a família é designada no seu
todo com “família do cão de caça” ou “cães de caça”.
(1)Nome pelo qual são conhecidos os habitantes da Ericeira, vulgarmente atribuído aos seus pescadores. (2) Habilitação para navegação diurna até 10 milhas de distância do porto de abrigo e de 3 milhas da costa em embarcações de recreio até 12 metros. A idade mínima para estes limites é de 18 anos. (3) Arquipélago atlântico composto por ilhas graníticas a 5,7 milhas a oeste do Cabo Carvoeiro, dependendo administrativamente da freguesia de São Pedro em Peniche, na Região Oeste do Centro de Portugal. (4) Condição caracterizada por um olfacto mais apurado do que o encontrado na maioria das pessoas.
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