quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

TOZÉ: “O CÃO DE CAÇA”

 

Não conseguirei antes de morrer narrar a imensidão de acontecimentos que me ocorreram no mundo de donos e cães, relatos tristes, alegres e plenos de paixões, desilusões, vitórias e derrotas, não faltando os trágicos, os hilariantes e os bizarros, alguns deles já contados ao jeito de lição – os mais velhos têm sempre muitas histórias para contar! Raramente me lembro da história do Tozé, talvez por ser pouco comum ou algo rara. Este homem do Litoral Oeste que granjeou com alguma justiça o nome de “O CÃO DE CAÇA”, muito embora nunca se interessasse por qualquer actividade cinegética e dedicasse todo o seu tempo ao mar, apesar de não ter nascido jagoz (1), como muitos pensavam. Logo desde menino se interessou pela natação, pela vela e pelas actividades subaquáticas. Ao chegar à maioridade tirou a Carta de Marinheiro (2), adquiriu um pequeno barco e apaixonou-se visceralmente pelo mergulho, sendo comum vê-lo aos domingos ao redor das Berlengas (3). Por mero acaso, acabou contratado por um grupo internacional que tinha como objecto a arqueologia marinha e durante anos foi essa a sua principal actividade. Com o passar do tempo e com o desgaste provocado pelo trabalho, começou gradualmente a ensurdecer-se, ao ponto de só compreender o que os outros diziam quando falavam alto e estavam virados para si.

Paralelamente, por razões que importa à ciência explicar, a perca progressiva da audição trouxe-lhe uma inesperada hipersensibilidade olfactiva, uma exagerada capacidade para sentir cheiros de que os outros não se apercebiam, transtorno que só terminou no dia em que finalmente foi operado aos ouvidos. Até lá, a sua vida transformou-se num tremendo suplício, porque raras eram as pessoas cujo odor suportava. O seu nariz era capaz de detectar à distância condimentos em separado, assim como identificar diferentes fragrâncias e a composição dos diversos perfumes, funcionando como um extractor de odores, que de tão apurado que era, lembrava o de algumas cadelas paridas. Desesperado com muitos dos odores que o rodeavam, foi-se isolando dos demais para evitar dizer-lhes que se lavassem, o que seria de uma deselegância tremenda. Por mérito do seu problema, identificado por “hiperosmia” (4), rivalizava com os cães na detecção de animais silvestres, o que lhe valeu a partir dali o título de “O CÃO DE CAÇA”, vocativo jocoso de que não se agradava nada.

Numa tarde de Agosto, quando se encontrava a beber uma água mineral sem gás numa esplanada (o homem nunca foi de ingerir álcool), com o vento zéfiro pelas costas, eis que repara numa menina a chorar com os seus pais a tentar consolá-la. Aproximou-se para tentar compreender a situação e percebeu que o cachorro da menina havia desaparecido num bosque próximo sem deixar rasto. A família da garota tinha vindo à minha procura naquele café, na esperança de ter um cão capaz de ajudar a localizar o seu. Mas antes que alguém tivesse a oportunidade de me dirigir a palavra, o bom do Tozé agarrou a criança pela mão e largou pelos campos afora. Em pouco tempo foi o problema sanado, o cachorro voltou para os braços da menina e a alegria inundou-lhe o rosto, tudo graças ao olfacto do Tozé, que apesar de não se agradar da alcunha, ainda hoje é conhecido assim na aldeia onde mora, perdida no tempo e onde nada acontece. A operação aos ouvidos parece ter levado de vencida a hiperosmia do Tozé, hoje não cheira o que já cheirou, mas da alcunha ainda não se livrou! Se alguém for àquele lugar e procurar pelo Tozé, logo alguém perguntará: “Qual Tozé? O cão de Caça?

PS: Os filhos do Tozé têm hoje quase 50 anos e são conhecidos como "os filhos do cão de caça”, apesar de ainda não serem nascidos quando tudo aconteceu. Por inerência, a família é designada no seu todo com “família do cão de caça” ou “cães de caça”.

(1)Nome pelo qual são conhecidos os habitantes da Ericeira, vulgarmente atribuído aos seus pescadores. (2) Habilitação para navegação diurna até 10 milhas de distância do porto de abrigo e de 3 milhas da costa em embarcações de recreio até 12 metros. A idade mínima para estes limites é de 18 anos. (3) Arquipélago atlântico composto por ilhas graníticas a 5,7 milhas a oeste do Cabo Carvoeiro, dependendo administrativamente da freguesia de São Pedro em Peniche, na Região Oeste do Centro de Portugal. (4) Condição caracterizada por um olfacto mais apurado do que o encontrado na maioria das pessoas. 

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