Bendita
idade que nos faz ver tudo com menos nervo, maior clareza e imparcialidade, ao
ponto de troçarmos de nós mesmos e de repararmos nos outros tal qual são, sem
as circunstâncias, as inimizades, as paixões, os pruridos e as conveniências do
tempo em que os conhecemos. Não creio que o tempo tudo faça esquecer, mas sei
que ele guarda aquilo que é importante e que realmente interessa a cada um de
nós. Olhar agora para trás e relembrar o sucedido é algo maravilhoso, tudo é
mais claro e descobre-se o seu verdadeiro sentido. Vou dividir com os meus
leitores duas experiências relativas ao controlo da agressividade de dois cães
que mais tarde sofreram com o seu desnorte.
A
primeira reporta-se a um Pastor Alemão com mais de 1 ano de idade, que atacava
pessoas e cães, que tinha sido sinalizado pela polícia como cão perigoso e
obrigado a frequentar aulas de obediência numa escola, propriedade de um
indivíduo passional que pagou o curso e que raramente lá pôs os pés, acabando
literalmente por comprá-lo. Com o cão sem mostrar progressos e a agravar as
suas investidas, chegou-me à mão para o reeducar. Passado pouco tempo já não
fazia menção de atacar pessoas, mas continuava a atacar outros cães. Não
precisei de muito tempo para compreender a causa daqueles ataques, que eram
devidos à inoperância do seu dono, que de alguma forma era conivente com aquele
comportamento. O cão estava acostumado a morder em todos os cães da escola, mas
numa noite um ripostou e pô-lo em fuga, o que deixou o seu dono profundamente
consternado. Aproveitando a ocasião, eu disse-lhe que o cão atacava os outros
com a sua conivência e que para provar isso, eu era capaz de dar uma volta a um
jardim com um perímetro de 400 m, com aquele cão preso na mesma trela a outro
igual sem que nada acontecesse. E ainda lhe disse, não o devia ter dito, quanto
é que ele queria apostar! Conforme o esperado, o cão nunca fez menção de atacar
o outro! Naquela noite dei uma grande lição, mas nunca mais vi o dono nem o
cão! Teria sido desprezado, voado de mão em mão ou condenado a viver num canil
para sempre?
A
segunda experiência diz também respeito a um Pastor Alemão, este mais jovem e
tido como campeão a morder, ainda que geneticamente fosse mal construído,
animal que aos 4 meses de idade já ficava demoradamente suspenso pelos dentes
num churro. Quando aos seus sofríveis aprumos nada pude fazer, já que me
apareceu depois de ter atingido a maturidade sexual. Antevendo a sua
perigosidade e a surdez selectiva que manifestava, operei uma cessação
peremptória de um dos seus ataques, o que o levou à subordinação e à perca de
entusiasmo do seu dono, porque se apercebeu finalmente da qualidade da “fera”
que tinha em mãos e do mito da sua invencibilidade. Partiu sem me dizer nada e
voltou para a escola donde tinha vindo, apostado em pôr o cão a morder ainda
mais. Recentemente vim a saber que o cão para cessar os seus ataques tinha que
levar com a coleira de choques eléctricos!
Quero com a narrativa destas
experiências dizer que a maioria dos cães problemáticos nunca o foi, que muitos
deles tem comportamentos violentos com ou pela anuência dos seus donos, que
sonham vir a ter em casa um Cérbero (1);
que a grande maioria dos cães destinados à segurança de pessoas e bens não apresenta
a resiliência necessária para a função, encontrando-se dependente da
experiência feliz. Daria hoje as mesmas “lições”? Penso que não me exporia e não
me daria a tanto. Contudo, não deixaria de fazer o meu reparo aos donos face ao
bem-estar colectivo.
(1)Cérbero, cão monstruoso de 3 cabeças na mitologia grega que guardava o mundo inferior – o reino subterrâneo dos mortos – que consentia que as almas lá entrassem, mas que não permitia que de lá saíssem, despedaçando os mortais que por lá se aventurassem.