terça-feira, 15 de dezembro de 2020

NEM ESPANTALHOS NEM POLÍCIAS-SINALEIROS

 

Se Marcel Marceau, o mímico mais popular do período pós II Guerra Mundial ainda andasse por cá, provavelmente compreenderia o que vou tentar explicar nas seguintes linhas, porque é da relação necessária entre a mímica, as emoções e os sentimentos que vou tratar, enquanto mais-valia para a comunicação interespécies e ferramenta óptima para o adestramento, não pretendendo com isto escrever algum tratado (já me rendi ao de Wittgenstein) ou tornar canónico o que agora digo. Muito se tem falado acerca do “reforço positivo”, método revolucionário no adestramento canino, cujos resultados não merecem contestação ao conciliar mais gente com os seus cães. Contudo, a sofreguidão canina não pode ser resposta para tudo, porque continua a haver cães que não são gulosos, outros que não se deixam subornar e outros ainda que comem apenas o essencial sem abdicar das suas tendências ou afectos, tornando assim acessórias tanto a comida quanto a brincadeira, sendo por isso mesmo os mais carenciados de treino e de controlo.

Quando optámos por associar a linguagem gestual aos comandos verbais fizemo-lo para ajudar os condutores caninos mais inibidos ou introvertidos, os de voz mais fraca e não modelada, os menos expressivos, também para aqueles com dificuldades particulares na liderança, surgindo a mímica como reforço e complemento dos comandos verbais, o que acabou também por facilitar o entendimento das pretensões dos donos pelos cães, pondo-os em sintonia pela cumplicidade que o gesto oferece. A prová-lo está o facto de qualquer uma das linguagens poder substituir a outra.

Porém, cada gesto deverá transportar a carga emotiva necessária ao comportamento canino solicitado, porque a linguagem gestual outra coisa não é que um conjunto de sentimentos, emoções e sensações que a mímica consegue transmitir e até massificar. Compreenderão os cães essa mímica? É evidente que sim, compreendem-na até primeiro do que a linguagem verbal, porque também usam uma mímica própria para se comunicarem entre si. Se entendermos o adestramento como um acto de amor, que é assim que eu o entendo, então a mímica será o melhor dos canais para transmiti-lo aos cães, disso resultando potentes laços afectivos comuns, em tudo superiores à mais esmerada disciplina, que é por norma vã diante da afeição, mesmo nos cães!  

A maior dificuldade no adestramento não reside nos cães, mas nos donos, por não conseguirem que os seus cães os entendam, problema de comunicação gerado pelo emissor da mensagem e não pelo receptor, que só o amor poderá resolver e conectar. E, se a linguagem mímica é o melhor dos seus canais, ela terá que ser uma expressão desse e de outros sentimentos que tornarão mais célere o cumprimento das ordens que, por via disso, se transformará para os cães em código de vida. Se destituirmos cada gesto da sua própria carga emocional, para além de podermos induzir os animais ao engano, o que tantas vezes sucede, não passaremos de meros espantalhos ou de pretensos polícias-sinaleiros.

Acontece, com mais frequência que o desejável e isso não deve ser coisa nova, que grande número dos condutores caninos que recebemos parece ser insensível, apresentar sérias dificuldades em amar ou em demonstrá-lo aos animais, o que lamentavelmente acaba por condicionar o ensino dos seus cães e constituir-se numa tremenda dor de cabeça para os adestradores, que a princípio só cá estarão para treinar cães. Dificilmente alguém conseguirá ensinar outro a amar sem se envolver com ele, particularmente quando um é mestre do outro e são de sexo diferente, o que por vezes dá azo a alguma confusão, a uma “restemenga”(1) de difícil solução que tende a perpetuar-se e que não acontece só no mundo dos cães, mas que se estende aos cavalos, também ele pleno de afeições, onde sobram equitadores que saltam facilmente de uma montada para a outra sem precisar de pedir autorização (há quem lhes chame marialvas).

Tomadas as devidas salvaguardas para evitar o problema acima exposto, alunos com estas dificuldades, tantas vezes oriundas de situações de desprezo, recalcamento, más escolhas e revolta, visando a protecção da sua auto-estima, deverão ter aulas particulares para não exporem as suas dificuldades aos demais e virem a ser ridicularizados. Os gestos simples da vida, tornados linguagem no adestramento, irão fazer com que pouco a pouco descubram uma nova forma de estar, caracterizada pela alegria oriunda da fusão de sentimentos entre homens e cães, funcionando a linguagem gestual como terapia para os donos e como prática de bem-estar para os cães. Por tudo isto, não devemos surripiar o conteúdo aos gestos, antes devemos torná-los expressivos e e plenos de intencionalidade para serem entendidos imediatamente pelos cães. Como levantámos apenas a ponta do véu e o assunto é apaixonante, retomá-lo-emos oportunamente.

(1) Grande quantidade de coisas que se colhem ou que se apanham, que se ganham Ex.: Ontem fui ao laranjal e trouxe cá uma restemenga de laranjas (in blogue “Ecos da Morracha”);  

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