Se
Marcel Marceau, o mímico mais popular do período pós II Guerra Mundial ainda
andasse por cá, provavelmente compreenderia o que vou tentar explicar nas
seguintes linhas, porque é da relação necessária entre a mímica, as emoções e
os sentimentos que vou tratar, enquanto mais-valia para a comunicação
interespécies e ferramenta óptima para o adestramento, não pretendendo com isto
escrever algum tratado (já me rendi ao de Wittgenstein) ou tornar canónico o
que agora digo. Muito se tem falado acerca do “reforço positivo”, método
revolucionário no adestramento canino, cujos resultados não merecem contestação
ao conciliar mais gente com os seus cães. Contudo, a sofreguidão canina não
pode ser resposta para tudo, porque continua a haver cães que não são gulosos, outros
que não se deixam subornar e outros ainda que comem apenas o essencial sem
abdicar das suas tendências ou afectos, tornando assim acessórias tanto a
comida quanto a brincadeira, sendo por isso mesmo os mais carenciados de treino
e de controlo.
Quando
optámos por associar a linguagem gestual aos comandos verbais fizemo-lo para
ajudar os condutores caninos mais inibidos ou introvertidos, os de voz mais
fraca e não modelada, os menos expressivos, também para aqueles com
dificuldades particulares na liderança, surgindo a mímica como reforço e complemento
dos comandos verbais, o que acabou também por facilitar o entendimento das
pretensões dos donos pelos cães, pondo-os em sintonia pela cumplicidade que o
gesto oferece. A prová-lo está o facto de qualquer uma das linguagens poder
substituir a outra.
Porém,
cada gesto deverá transportar a carga emotiva necessária ao comportamento
canino solicitado, porque a linguagem gestual outra coisa não é que um conjunto
de sentimentos, emoções e sensações que a mímica consegue transmitir e até
massificar. Compreenderão os cães essa mímica? É evidente que sim, compreendem-na
até primeiro do que a linguagem verbal, porque também usam uma mímica própria
para se comunicarem entre si. Se entendermos o adestramento como um acto de
amor, que é assim que eu o entendo, então a mímica será o melhor dos canais
para transmiti-lo aos cães, disso resultando potentes laços afectivos comuns,
em tudo superiores à mais esmerada disciplina, que é por norma vã diante da
afeição, mesmo nos cães!
A
maior dificuldade no adestramento não reside nos cães, mas nos donos, por não
conseguirem que os seus cães os entendam, problema de comunicação gerado pelo
emissor da mensagem e não pelo receptor, que só o amor poderá resolver e conectar.
E, se a linguagem mímica é o melhor dos seus canais, ela terá que ser uma
expressão desse e de outros sentimentos que tornarão mais célere o cumprimento
das ordens que, por via disso, se transformará para os cães em código de vida.
Se destituirmos cada gesto da sua própria carga emocional, para além de
podermos induzir os animais ao engano, o que tantas vezes sucede, não
passaremos de meros espantalhos ou de pretensos polícias-sinaleiros.
Acontece,
com mais frequência que o desejável e isso não deve ser coisa nova, que grande
número dos condutores caninos que recebemos parece ser insensível, apresentar
sérias dificuldades em amar ou em demonstrá-lo aos animais, o que
lamentavelmente acaba por condicionar o ensino dos seus cães e constituir-se numa
tremenda dor de cabeça para os adestradores, que a princípio só cá estarão para
treinar cães. Dificilmente alguém conseguirá ensinar outro a amar sem se
envolver com ele, particularmente quando um é mestre do outro e são de sexo
diferente, o que por vezes dá azo a alguma confusão, a uma “restemenga”(1) de
difícil solução que tende a perpetuar-se e que não acontece só no mundo dos
cães, mas que se estende aos cavalos, também ele pleno de afeições, onde sobram
equitadores que saltam facilmente de uma montada para a outra sem precisar de
pedir autorização (há quem lhes chame marialvas).
Tomadas as devidas salvaguardas para evitar
o problema acima exposto, alunos com estas dificuldades, tantas vezes oriundas
de situações de desprezo, recalcamento, más escolhas e revolta, visando a
protecção da sua auto-estima, deverão ter aulas particulares para não exporem as
suas dificuldades aos demais e virem a ser ridicularizados. Os gestos simples
da vida, tornados linguagem no adestramento, irão fazer com que pouco a pouco
descubram uma nova forma de estar, caracterizada pela alegria oriunda da fusão
de sentimentos entre homens e cães, funcionando a linguagem gestual como terapia
para os donos e como prática de bem-estar para os cães. Por tudo isto, não devemos
surripiar o conteúdo aos gestos, antes devemos torná-los expressivos e e plenos
de intencionalidade para serem entendidos imediatamente pelos cães. Como levantámos
apenas a ponta do véu e o assunto é apaixonante, retomá-lo-emos oportunamente.
(1) Grande quantidade de coisas que se colhem ou que se apanham, que se ganham Ex.: Ontem fui ao laranjal e trouxe cá uma restemenga de laranjas (in blogue “Ecos da Morracha”);
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