Ainda que por vezes também
me apeteça, pelo tanto que me surpreendem e pelo muito que lhes devo, não tanto
por ser essa a corrente dominante nos nossos dias, resisto em atribuir aos cães
qualidades humanas e a humanizá-los, por entender que esses antropomorfismos
descabidos não servem à ciência e muito menos ao particular dos animais. O
episódio que vou narrar-vos podia intitulá-lo de “a força do amor”, “o amor
sempre triunfa” ou ainda ”o amor de mãe é único”, o que seria do agrado do
muitos e mereceria a sua aprovação e aplauso, mas não é disso que se trata, mas
sim da importância do viver social canino.
Seneca Krueger, que
suspeito ter ascendência alemã, vive na cidade de Saint Paul, capital e segunda
maior metrópole do Estado norte-americano do Minnesota, no Condado de Ramsey,
trabalhando ali como psicoterapeuta, apesar da sua verdadeira paixão passar por
ajudar os cães. Fiel a si própria especializou-se em ajudar cães que tiveram
experiências de vida traumáticas, capacitando-os para se adaptarem a uma nova
vida e família de adopção. Até à presente data, ela já reeducou 30 cães que
mais tarde foram entregues a novas famílias.
Foi dentro deste contexto
e propósito que Krueger conheceu a cadelinha “Zelda”, um caso difícil desde o
início, porque o animal viu-se obrigado a tomar ansiolíticos, drogas
normalmente utilizadas para reduzir a ansiedade excessiva ou patológica. Devido
à natureza dos seus achaques, a Zelda viveu semanas praticamente escondida de
tudo e de todos. Algum tempo depois começou a abrir-se para o mundo e graças ao
treino desenvolvido, os analgésicos puderam ter sido postos de parte. Quatro meses
depois já ladrava e brincava com outros cães, temendo somente as pessoas que
visitavam Krueger. Entretanto chegou a hora de se despedirem.
A despedida não foi fácil
para Seneca Krueger, ainda mais porque a Zelda iria viver para a casa de uma
família a 50 km de distância. Pela primeira vez em 12 anos como treinadora de
cães, foi muito difícil para Krueger separar-se de um dos seus protegidos. Dez
dias após ter sido entregue à sua nova família, a treinadora recebeu uma mensagem
que a deixou chocada: a Zelda tinha fugido! Amigos e voluntários propuseram-se
a encontrá-la e Krueger mostrava-se muito preocupada com o seu desaparecimento.
Para piorar a situação, as condições meteorológicas em Abril foram péssimas e
as temperaturas caíam abaixo de zero, o que deixava a pequena cadela
implacavelmente exposta ao frio.
Durante dois meses não
houve notícia da cadela, dando a sensação que a terra a tinha engolido. Graças
a umas fotos da Zelda que Krueger pôs nas redes sociais, alguém reconheceu
finalmente a cadelinha, que parecia já estar a meio caminho do apartamento de
Krueger! Depois dessa alegria perdeu-se-lhe o rasto novamente e depois de 97
dias na estrada e 64 km percorridos, a Zelda encontrou finalmente a sua
treinadora, que decidiu ficar com ela para sempre e que justificou assim a sua
opção: “Foi um milagre. Durante o tempo todo em que procurei por ela, ela também
procurava por mim.”
Narrei este relato
verídico para lembrar aos nossos leitores que os cães têm um viver social que
lhes possibilita criar laços afectivos e cúmplices com as suas famílias adoptivas,
que acabarão por substituir melhor ou pior as matilhas. Não é fácil para os
cães trocar de grupo, particularmente “se forem de mal a pior”, devido em parte
à não-aceitação automática de um novo e estranho escalonamento social. A
amizade canina não é desinteressada, mas é extremamente grata e ao sê-lo
torna-se incorruptível e extraordinariamente fiel. Por outro lado, e aqui não
existem dúvidas, os cães “sabem” quem gosta deles ou não e nunca esquecem quem os
auxiliou na sua curta e muitas vezes efémera existência. Terão a capacidade de
amar os homens? Há quem diga que sim, eu entendo esse apego aos donos como uma necessidade
e uma manifestação de gratidão, apesar de me parecer pouco.
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